A caçada aos bilhões
Ainda que a Ásia ganhe importância, o Oriente Médio continua sendo o local favorito dos mercadores de armas, principalmente dos Estados Unidos. Paralelamente, os conflitos passam pela internet (pág. 25) e falamos cada vez mais de “ciberataques” (págs. 26 e 27). Hoje, como ontem, a corrida armamentista se faz praticamePhilippe Leymarie
No início dos anos 1990, o fim da Guerra Fria deveria ter esvaziado os arsenais e colocado fim à maioria dos conflitos. Mas, ao longo da década seguinte, após um nítido declínio do complexo militar-industrial norte-americano, a “guerra ao terror”, com suas ações no Afeganistão e no Iraque, voltou a alimentá-lo. Hoje, enquanto uma nova coalizão luta contra a Organização do Estado Islâmico (OEI) na Síria, a indústria de armas russa, depois de um período de abatimento pós-soviético, volta a ganhar cor. A França “socialista” estabelece contratos de venda de armas com o Golfo e a Ásia; a Índia e a China, com seu forte dinamismo econômico, sonham ser grandes potências regionais; a Alemanha e o Japão, parcialmente livres de seu complexo de derrotados na Segunda Guerra Mundial, desejam difundir sua indústria de defesa de alto desempenho.
“Em 2014 houve mais guerras do que em qualquer outro ano desde 2000”, observa o anuário do Instituto Internacional de Estudos da Paz de Estocolmo (Sipri).1 Longe de diminuírem, os gastos militares no mundo aumentaram um terço em dez anos, atingindo, em 2014, US$ 1,7 trilhão. Eles mais que dobraram na África setentrional e na Europa oriental, e aumentaram dois terços no Oriente Médio e no Leste Asiático. Os Estados Unidos, que tinham iniciado uma redução de seu orçamento militar com a retirada das tropas do Iraque (em 2011) e do Afeganistão (processo que deve ser concluído em 2016), voltaram, em 2014, ao patamar de 2007: US$ 610 bilhões, um terço dos gastos mundiais.
O volume de vendas de armas ao longo dos últimos cinco anos é “o maior desde o fim da Guerra Fria”, detalha o Sipri. Os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar (32,8% do mercado mundial no período 2011-2015), seguidos de perto pela Rússia (25,3%). Esses dois pesos-pesados oferecem até equipamentos testados em zonas de guerra (combat proven). Bem atrás estão China (5,9%), França (5,6%) e Alemanha (4,7%).2 Quanto aos compradores, a Índia tem estado bem na frente durante esses anos, seguida por Arábia Saudita, China, Emirados Árabes Unidos e Coreia do Sul.
Agora, os países emergentes conseguem “responder, em diversos setores, às concorrências internacionais; portanto, competir com os grandes fornecedores ocidentais”, constata, sem alegria, o preâmbulo do Relatório ao Parlamento da França sobre as exportações do país em 2015.3 A China tornou-se um ator-chave na exportação. O Japão pôs fim, em 2014, a uma proibição de vendas ao exterior que datava de 1967.4 A Coreia do Sul planeja fazer de sua indústria de armas um eixo de crescimento. Israel, um dos líderes mundiais em drones e equipamentos para manutenção da ordem, mira também na cibernética. O Irã, que por mais de trinta anos ficou isolado pelas sanções internacionais, desenvolveu um complexo militar-industrial que só quer ser valorizado no exterior. Por fim, os pequenos Emirados Árabes Unidos, ansiosos em se preparar para o pós-petróleo, ambicionam desenvolver sua própria base industrial e técnica de defesa, em parceria com a Argélia e a França.
Não apenas a concorrência torna-se mais intensa, mas também os compradores exigem transferência de tecnologia. É o caso da Indonésia e da Turquia, cuja metade dos contratos deve ser realizada com empresas locais. A Índia exige compensações desse tipo em um nível de pelo menos 30% em cada negócio, o que atrasou em vários anos a conclusão de um acordo com o fabricante francês Dassault para a venda de caças Rafale.
Alguns contratos exigem uma deslocalização discreta de parte do pessoal, a associação com empresas locais e o treinamento in loco de mão de obra especializada. Isso pode favorecer a emergência de novos concorrentes e, de imediato, alimentar uma corrida pela sofisticação das armas, além de uma inflação dos custos catastrófica e perigosa para todos, por exemplo, no Golfo Pérsico5 e no Magreb.
Ao contrário do que acredita o senso comum, os sindicatos dos arsenais ou das empresas privadas de armas não são os últimos a se movimentar. As armas não são uma mercadoria como qualquer outra, reconhece prontamente Eric Brune, delegado central adjunto da Confederação Geral do Trabalho (CGT) no grupo francês Nexter: “Embora, nos dias de hoje, se aborde com certo temor a questão do emprego, não é esse o cerne do problema das exportações, que é em primeiro lugar político. […] se salvar 2 mil postos de trabalho em Roanne [um dos principais locais de produção, especializado na montagem de veículos blindados] implica 100 mil mortes em outro lugar, isso não faz sentido”, afirma.6
Com um volume de negócios anual da ordem de 15 bilhões de euros (o dobro, se incluirmos os mercados de segurança nacionais e privados), a indústria de defesa da França representa 160 mil empregos, 40 mil diretamente ligados às exportações, em empresas relativamente pouco suscetíveis à deslocalização e distribuídas por todo o território – sem contar as subcontratadas. Capaz de produzir todo o equipamento necessário para as Forças Armadas do país (com a importante exceção dos drones), ela recebe um volume constante de encomendas públicas, da ordem de 11 bilhões de euros por ano. Dois terços desse maná beneficiam cinco grupos principais: Airbus, DCNS, Thales, Safran e Dassault. Sozinhos, eles realizam três quartos do volume de negócios do setor e mais de quatro quintos das exportações.7 O conjunto da indústria também se beneficia da prioridade dada pela França à dissuasão nuclear, que tem um aspecto relacionado aos equipamentos, e também dos substanciais créditos para a pesquisa e o desenvolvimento de futuras armas.
Em grande parte graças a alguns excelentes clientes do Oriente Médio, a França tem superávit na balança comercial de armamentos, o que ajuda a reduzir seu déficit global de cerca de “cinco a oito pontos por ano no período 2008-2013”, segundo um estudo realizado pelo Ministério da Defesa e pela consultoria McKinsey.8 Em razão das primeiras vendas de exportação do caça Rafale ao Egito e ao Catar, o ano de 2015 foi triunfal, com 16 bilhões de euros de encomendas: duas vezes mais que em 2014, quatro vezes mais que em 2012. O ano de 2016 também deve registrar recordes se o contrato Rafale com a Índia for concluído.
Para uma potência média como a França, os especialistas acreditam que o controle nacional, em queda a longo prazo, não basta para financiar a pesquisa e o desenvolvimento dos quinze grandes programas necessários às Forças Armadas, cujo tempo de vida se estende por décadas (até por cinquenta anos, na Aeronáutica). Para rentabilizar os setores de produção e conter os custos, aumentou o recurso às exportações: em 2015, eles ultrapassaram pela primeira vez o montante das encomendas nacionais.
Ocorre que, de acordo com o general Vincent Desportes, ex-diretor da Escola Militar de Paris, a manutenção das “competências críticas” está cada vez mais difícil: “Há um limite a partir do qual a atividade se expatria, se adapta… ou desaparece”.9 Daí a imperativa necessidade – segundo esse general, que se tornou conselheiro da Panhard, fabricante de veículos de combate, e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris – de preservar um “núcleo de soberania industrial”. Sobretudo em um momento no qual o acesso a certas tecnologias está ameaçado por restrições como o Regulamento do Tráfico Internacional de Armas (Itar), normas editadas pelas autoridades dos Estados Unidos que podem impedir um vendedor de concluir um negócio caso o produto contenha componentes de fabricação norte-americanos. Foi assim que a venda, pela Airbus e pela Thales, de dois satélites de espionagem aos Emirados Árabes Unidos – programa Falcon Eye –, concluída em 2013, ficou bloqueada por mais de um ano pelos Estados Unidos. O general teme “a adoção forçada de modos operativos norte-americanos” e sua “visão destrutiva da guerra”; ele denuncia “a influência predatória” dos Estados Unidos no setor.
Os sindicatos, por sua vez, defendem há muito tempo a diversificação das indústrias, com foco em técnicas e produtos de aplicação “dual”, para que as empresas, privadas ou semipúblicas, não dependam exclusivamente de armas e exportação, podendo se adaptar caso o mercado (ou, um dia, o poder político) assim o decida. Algumas organizações, como a CGT, militam pela criação de um polo público da indústria de defesa, o que permitiria um direito de observação do Estado, tanto como cliente nacional quanto como regulador de um setor que toca a política externa e os valores fundamentais do país.
Tal configuração poderia talvez colocar em segundo plano as humilhantes caças aos bilhões empreendidas pelas mais altas autoridades de Estado, seja para tentar cobrir déficits comerciais abissais, seja para construir às pressas esquemas geopolíticos nos quais é mais fácil enxergar riscos que benefícios. No início de uma visita de Estado à Índia, em janeiro, o presidente François Hollande não hesitou em elogiar o Rafale da Dassault, “o melhor caça do mundo”, mas depois teve de reconhecer que o contrato acalentado há mais de quatro anos não estava fechado. Já Éric Trappier, presidente da Dassault, não deixou de agradecer ao governo, em sua primeira venda de aeronaves, para o Egito, em fevereiro de 2015, o “apoio político sem o qual não pode haver exportação militar”10 (ver artigo na pág. 24).
Foram necessárias dez visitas ministeriais no ano passado para obter um contrato para os Rafale no Catar. O governo, que agora busca, ao lado da Dassault, levar o caça para os Emirados Árabes Unidos e a Malásia, assume completamente esse papel. Para o ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, que se tornou um competente representante comercial de armamentos, “a questão da competitividade se cruza com a da soberania”.11 Há “uma divisão de tarefas entre o Estado e a indústria”, admite a Direção-Geral de Armamentos da França (DGA).
É preocupante que países como a França vendam máquinas de guerra, como o Rafale, em áreas de tensão ou conflito. Na verdade, para poder fornecer armamentos às monarquias do Golfo, o país teve de fazer muitas concessões: assinatura de acordos de defesa e parcerias estratégicas; abertura, por decisão de Nicolas Sarkozy, em 2008, de uma base das Forças Armadas em Abu Dhabi; participação do presidente Hollande como “convidado de honra” – o único ocidental – em uma cúpula extraordinária do Conselho de Cooperação do Golfo (GCC, na sigla em inglês) em Riad, em maio de 2015. Um conjunto de gestos espetaculares que, na verdade, colocam a França na linha de frente caso um conflito se estenda para essas áreas, não muito longe do Irã, Iraque, Iêmen, e que não passaram por nenhuma consulta ou debate público.
Na França, o regime das exportações continua “opaco”, avalia o Observatório do Armamento,12 que qualifica o relatório anual ao Parlamento sobre as exportações, tão aclamado pelo governo, de “folheto publicitário”, usado principalmente “para promover a excelência francesa”. O Observatório milita para que o Parlamento participe de um exame desses contratos, ainda mais neste momento em que o Executivo simplificou e flexibilizou as modalidades de controle das exportações, concedendo a algumas empresas licenças globais, sem verificações a priori.
No resto da Europa, as vendas de armas a países em situação de tensão, como a Arábia Saudita, suscita vigorosos debates, sobretudo depois que a mesma Arábia Saudita se envolveu na guerra civil no Iêmen13 e na execução, no dia 2 de janeiro, de quarenta opositores, incluindo o dignitário xiita não violento Nimr al-Nimr, o que causou a ruptura das relações diplomáticas com o Irã. Em 25 de fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução pedindo que o representante da União Europeia para os Assuntos Estrangeiros “trabalhe a fim de estabelecer um embargo europeu de armas para a Arábia Saudita, dada a gravidade das acusações que pesam sobre o país a respeito da violação dos direitos humanos no Iêmen”. Na Bélgica, Flandres exige um embargo à venda de armas a esse país. Já na Valônia, onde a indústria de armas chegou ao nível mais alto da última década, principalmente graças aos contratos sauditas, a central sindical Federação Geral do Trabalho da Bélgica (FGTB) – Metal argumenta que isso só abriria a porta para os concorrentes. A mesma polêmica se passa no Reino Unido, Suécia e Canadá, cujo ministro dos Assuntos Estrangeiros, Stéphane Dion, defendeu em janeiro um contrato estabelecido por seus antecessores com a Arábia Saudita para a construção de centenas de “veículos”. Ele argumentou que estes eram “feitos para proteger o país, e não para atirar nas pessoas”; um argumento discutível, uma vez que o jipe será blindado e equipado com mísseis antitanque ou armas leves.14
A Alemanha, por sua vez, anunciou em janeiro que vai “submeter a uma revisão crítica” todos os contratos com a Arábia Saudita, almejando ser mais restritiva a respeito de armamentos até aqui considerados essencialmente “defensivos”. Sob a influência dos sociais-democratas, que desde 2013 participam da coligação liderada por Angela Merkel, a indústria nacional de defesa já estava sob vigilância, embora ocupe o quinto lugar do mundo em vendas no exterior. O ministro da Economia, Sigmar Gabriel, presidente do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), declarou publicamente sua “vergonha de que a Alemanha esteja entre os maiores exportadores de armas do mundo”. Ele gostaria de reservar as exportações, salvo disposição em contrário, aos países-membros da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Contratos franceses com a Arábia Saudita e o Catar que envolviam materiais contendo elementos de origem alemã também foram bloqueados em 2014.15
Alguns contratos beneficiam regimes que não respeitam os direitos humanos, perseguem populações civis ou revendem as armas a países ainda menos recomendáveis. Assim, mais contribuem para alimentar os conflitos do que para extingui-los. Além disso, muitas vezes engendram práticas no limite da legalidade, facilitadas pela falta de transparência em torno da celebração dos contratos e pela complexidade das redes financeiras ligadas à “lavagem de dinheiro” de paraísos fiscais e à multiplicação de intermediários. Desse modo, as comissões, propinas e outros “custos excepcionais” podem representar até um quarto do montante dos contratos, e só vêm à tona em processos judiciais, como, na França, com o caso da venda de armas a Angola, das fragatas de Taiwan e dos submarinos de Karachi, cujas responsabilidades os juízes e advogados tentam definir, apesar dos obstáculos de segredo militar. Segundo estimativas, as vendas de armas, embora representem menos de 1% do comércio no mundo, seriam responsáveis por 40% da corrupção.16
É verdade que, nas últimas duas décadas, avanços significativos foram feitos, com um reforço das legislações nacionais: criação do Registro de Armas Convencionais da ONU (1992); promulgação do Código de Conduta da União Europeia (1998), que se tornou “posição comum” juridicamente vinculativa dez anos depois; e conclusão do Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), que entrou em vigor em dezembro de 2014. Mas muitos países não adotaram nenhuma sanção para a violação das duas dezenas de embargos sobre armas impostos pela ONU e União Europeia.17 Na França, um projeto de lei sobre a questão, aprovado em 2007 no Senado, só foi submetido à Assembleia Nacional em janeiro de 2016, o que revela a má vontade de um país que é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.