A casa no morro – Parte 1
Olivia Maia
Suponhamos um crime. O cenário: um bar na Zona Oeste de São Paulo, em alguma curva escura nos arredores da estação de trem da Lapa. Seria uma hora qualquer muito próxima das duas da manhã, hora em que a dona do bar costumava fechar a casa. Ela, na verdade, a filha do dono. Uma mocinha miúda de cabelos muito encaracolados. Ela os amarrava em um rabo-de-cavalo e os escondia sob uma boina.
Interessa-nos essa moça? Sentado ao fim do balcão estaria um homem incapaz de tirar os olhos dela.
Ela sabe. Há semanas que ele faz isso. Senta-se, pede uma cerveja. Amassa com as mãos um pedaço sujo de papel. Poderia ser um guardanapo. Ela não se importa.
Depois da terceira cerveja o homem pediria qualquer bebida mais forte. E dali algum tempo se tornaria falante, conversaria com outros bêbados e reclamaria da esposa e da gritaria dos filhos que não o deixam assistir ao telejornal. Então olharia vez ou outra para a moça que serve a bebida a todos aqueles homens, e imagino que, se estivéssemos mais próximos, talvez poderíamos ouvir um suspiro. Talvez tenha algo em torno dos trinta anos. Uma barba tosca e um cavanhaque mal-aparado.
Mas naquela noite haveria um crime para acontecer. Um assassinato. Nenhum jornal se importaria com ele, e mesmo os vizinhos não perderiam tempo com aquele assunto desinteressante. O motivo? Digamos que uma história mal contada de bêbado. Porque esse homem teria uma fama de encrenqueiro e cabeça quente. De ter apontado faca em fuça alheia e ficha na polícia por tentativa disso e aquilo.
Começa que ele estivesse naquela noite resmungando sobre uma casa velha nos confins de Caieiras. Atrás dele há, então, um murmúrio de vozes:
— O Manuel está falando da casa do pai outra vez.
— Ele não vai vender aquela merda nunca!
— Chama o homem.
— Manuel!
Que Manuel seja nosso homem. Ele tira os olhos da moça e segue o som de seu nome.
— Quanto é que você quer por aquele troço?
— Cinqüenta mil!
— Rapaz, aquilo não vale vinte!
— Não vendo por menos!
— A casa não vale nada. Vende o seu carro!
— O carro dele é modelo 87, vale quanto pesa.
— Por que você não vende aquela arma velha?
— Não vendo!
Com um gesto brusco talvez Manuel se desequilibre e caia no chão. Alguns vão rir. Ele se levanta e põe-se a falar da arma; quê? Diria: uma Luger 1940 da Segunda Guerra Mundial. É relíquia, herdou do pai. Alguém poderia sugerir que a arma vale mais que a casa. Ou perguntar de onde ela veio.
Ele não conta. E não vende. Mas então um homem de outra mesa se levanta e aponta um dedo na cara de Manuel. Que a arma não existe. Porque ele já viu uma Luger alemã de 1940, mas foi nas mãos de gente importante, colecionador cheio de dinheiro. Que essa arma não aparece para qualquer imbecil com uma casa velha em Caieiras. O tipo deve ser novo na área, alguém comentaria. Não é boa idéia se meter com Manuel. Crescem os ânimos e a moça atrás do balcão anuncia com um grito que vai fechar a casa.
Porque pressentiu o pior? Vamos encerrando, ela teria dito. Uns deixam o dinheiro sobre a mesa e vão saindo. Manuel permanece imóvel. Raivoso. Os homens todos vêem o ódio lhe rasgando as veias e querem sair muito logo. O desafiante está sorrindo e encara, mas a moça os manda para fora. Eles vão. Manuel ainda olha para dentro uma vez, acompanha a porta de aço deslizando veloz e o ruído metálico que ecoa na madrugada. A rua toda vazia e ainda os outros que se afastam pela calçada porque não querem estar perto do que poderia acontecer.
Então uns gritos. Manuel respondendo ou o outro provocando. Seria preciso estar ali para saber por certo o que aconteceu. Mas ninguém estava ali. Era a rua e os gritos se esticando no silêncio da noite. Talvez passasse o trem, abafando os ruídos. E Manuel estaria armado. Faca? Não dessa vez. Ele tem um revólver, um 38 sete tiros velho para caber em sua mão enorme. O outro homem não estaria mais tão corajoso e poderia tentar uma trégua. Um pedido de desculpas. Era tudo uma brincadeira, veja bem. Ou estivesse muito bêbado. Quase tão bêbado quanto Manuel.
E com o trem recomeçando sua viagem a partir da estação da Lapa haveria três tiros, e estaria o homem estirado no chão sujando a calçada de sangue. Depois o silêncio que segue o estampido dos disparos, sempre tão mais profundo que qualquer outro silêncio.
Suponhamos então que nesse momento Manuel ouvisse um som abafado de um suspiro, ou uma respiração comedida. Mas bêbado demais para fugir. Ele sequer se lembraria onde estacionou o carro. Olha em volta, e não percebe que alguém estava escondido