A casa no morro – Parte 2
Ao fim do percurso pude ver uma casa pequena – suja como tudo mais naquela região. Com o carro parado, Iuri abriu a porta e foi até um matagal amarelado na direção oposta da casa. Daquele lado o mato seguia até onde eu podia enxergar, mas por todos os outros era tudo uma terra seca e pálida. E a casa velha. Para trás dela era possível enxergar uma parte de um carro vermelho. O EscortOlivia Maia
Ela estava sentada sobre o balcão com as pernas cruzadas e tentei imaginar sua idade. Devia ter mais de vinte e cinco anos, mas havia em sua expressão algo de revolta de moleque. Evitava nos encarar quando falava. Tirava alguma sujeira das unhas com uma faca pequena. Eu e Iuri, meu parceiro, continuávamos em pé. Todas as cadeiras estavam colocadas sobre mesas, e ela não tinha feito muita questão de indicar que poderíamos nos sentar.
— Toda noite eles brigam – ela estava dizendo. – Se ameaça quebrar coisa, mando todos pra fora.
Ela tinha os traços do rosto muito delicados e um nariz pontudo. Os cabelos eram castanho-claros e encaracolados, e estavam presos em um rabo-de-cavalo. Não fosse aquele cinismo dissimulado em desprezo, diria que era uma adolescente. E como se fazia ouvida pelos homens que freqüentavam aquele bar? Moça pequena daquelas lidando com um bando de bêbados?
Mas não.
O chamado chegou no 7º Distrito Policial por volta das três da madrugada. Caso de homicídio. A equipe plantonista atendeu e o inquérito nos foi passado quando chegamos na delegacia pela manhã. Porque estavam muito certos da autoria do crime, e não parecia necessário passar qualquer coisa para o Departamento de Homicídios. O suspeito tinha uma ficha extensa. E não parecia um tipo difícil de se encontrar.
— E a senhora imagina por que brigaram na noite passada?— Iuri perguntou.
— Não me chama de senhora.
— Responde a pergunta, por favor.
Ela deu de ombros. Limpou a faca na calça jeans e passou a lâmina na língua antes de continuar a cutucar as unhas. Senti um arrepio. Merda de criança brincando com objetos cortantes. Reparei que ela estava com as mãos machucadas. Ambas tinham bandeides nas palmas, e algumas marcas avermelhadas em volta. Talvez porque tinha esse hábito pouco saudável de cutucar as unhas com faca.
— Foi que o Manuel é meio mentiroso – ela disse, por fim.
Minha paciência se esvaía. Havíamos passado a manhã atrás de testemunhas. Mendigando memória de bêbado. Todos tinham muita certeza de que nosso suspeito – o tal Manuel – havia matado o outro. E então conversamos com a esposa. Ela não sabia dele. Não havia voltado para casa. Às vezes não voltava. O homem tinha dois filhos. “Manuel não bate bem da cabeça”, foi o que ela nos disse, “quase eu que sustento todo mundo nessa casa. Bota o homem preso e dá pro Estado sustentar esse desgraçado.”
A moça dona do bar chamava-se Joana. Deitou a faca de lado e ergueu o olhar para nos encarar. Pude ver melhor os machucados em suas mãos. Os curativos cobriam a maior parte deles, e imaginei que tivesse quebrado um copo. Talvez o expediente no bar a deixasse irritada. E então ela quebrava copos. Deixou formar um sorriso em seu rosto. Em segundos, ele não existia mais.
— O que foi que ele disse? – Iuri perguntou.
— Não se acredita em nada que o homem diz.
— Ontem à noite ele falou alguma coisa?
— Fica falando sempre. Mas mente muito. Parece que alguém foi duvidar.
Era o que já havíamos escutado. Nenhum dos sujeitos ouvidos chegou a chamar o homem de mentiroso, mas a história era a mesma. A vítima duvidou de qualquer coisa que Manuel havia dito. Alguém havia mencionado uma casa em Caieiras. Segundo a esposa, era um imóvel velho e abandonado que Manuel queria vender. E por que alguém duvidaria de uma casa velha?
Mais que isso, por que se irritar por causa de uma casa velha?
A esposa não soube dizer. Deu-nos o endereço da casa e nos explicou como chegar. Então fomos conversar com a dona do bar.
Iuri se aproximou e apoiou o corpo no balcão. Ele era alto. Devia ter quase um metro e noventa, era muito branco e tinha os cabelos de um castanho muito escuro. Ao meu lado parecia ainda maior e ao lado de Joana parecia um gigante. Ela não se intimidou.
— O bar é seu?
— Do meu pai.
— Onde ele está?
— Em casa. Ele não vem mais aqui.
Mantinha-me calado porque sempre foi acordo tácito que Iuri fizesse as perguntas. Eu tinha a paciência curta e, diziam, irritava-me com pouca bobagem. Por mim, tanto melhor.
Olhei o relógio. Passava do meio-dia e eu estava com fome. Iuri percebeu meu gesto e talvez pensasse que de nada adiantava continuar pressionando a moça. Ela fazia do rosto bonito o reflexo de uma ingenuidade inexistente.
A mim não enganava.
* *
O trânsito na Bandeirantes estava manso. Iuri havia ligado a sirene na marginal Tietê, mas na rodovia a viatura ia a 120 sem precisar de alarde. O vento gelado entrava assobiando pela fresta da janela aberta. A cidade de São Paulo era um inverno indeciso que alternava o frio gelado com dias de sol forte.
Eu devia ter sido meteorologista, devia pagar melhor que a polícia.
— O posto de gasolina que ela falou.
— Qual era a saída?
— É a próxima, fica à direita.
— Tem que fazer o retorno, Pedro.
— O retorno é ali. Essa aqui, entra. Entra nessa.
Iuri virou à direita numa curva abrupta. Fizemos o retorno e voltamos à rodovia.
— Que município é esse?
— Faz diferença?
Ele estava de mau-humor e o dia ia ser longo. Mas que fosse então o óbvio: encontraríamos Manuel escondido na casa abandonada, ele confessaria o crime – e por que não? – e depois era preciso cuidar da papelada e suportar o delegado reclamando da quantidade de serviço. Nada que não houvéssemos visto antes.
— Não era Cajamar?
— Cajamar é pra outro lado, Pedro. Presta atenção. Qual a entrada?
— A mulher falou que tem uma placa apontando o bairro. Depois do posto de gasolina.
— Se ela chama esse chiqueiro de posto de gasolina…
— Ali, entra na próxima.
A esposa de Manuel havia explicado o caminho e era preciso confiar em minha memória. Disse que falássemos com Jônatas, o dono da borracharia, que ele sabia explicar como chegava na droga da casa. Rodamos por alguns minutos até que alcançamos uma borracharia ao pé de um morro. Parecia ser a última construção da região. Subia uma poeira desgraçada e tive que fechar o vidro. O asfalto da rua se escondia sob uma camada de terra seca até que desaparecia onde o morro começava.
Iuri estacionou a viatura e desceu do carro, fazendo cara feia para o homem de bigode que estava sentado em uma cadeira de praia, em frente à borracharia, ouvindo rádio. Abri a porta, mas continuei sentado.
— Boa tarde – o homem disse.
— O senhor trabalha aqui?
— Trabalho.
— Só o senhor ou tem mais alguém?
— Tem um rapaz que me ajuda quando precisa.
O ar estava muito seco. Eu havia reparado que a região tinha um aspecto meio alaranjado. Desbotado. Tudo parecia cheio de poeira vermelha. Saí do carro. Olhei para Iuri e vi que seu rosto estava ficando cor-de-rosa.
— O senhor conhece um Manuel que tem uma casa por aqui?
— Manuel Aguiar?
— Isso.
— Conheço.
— Sabe dizer pra gente como chega na casa dele?
O homem se mexeu na cadeira. Ergueu o olhar na direção do morro e apontou uma direção imprecisa com a cabeça.
Porra.
— Se não souber explicar a gente te põe na viatura e você vem dar uma volta com a gente – falei.
— Não precisa isso, senhor.
— Então faz favor.
Ele desligou o rádio e coçou o bigode. Levantou-se com alguma dificuldade. Ele também parecia alaranjado e cheio de pó. A camiseta branca – supus que fosse branca – estava amarelada. Ia começar uma explicação mas parou o movimento e fez uma careta. Estava olhando para Iuri. Virei-me e vi que meu parceiro estava com o rosto e os olhos muito vermelhos. A íris havia perdido a cor.
— O senhor está bem? – o borracheiro perguntou.
Iuri colocou a mão na frente do nariz e sacudiu a cabeça. Fez um gesto para que eu continuasse e entrou no carro. Voltei-me ao homem.
— Tem uma fábrica de tijolo aqui perto – ele falou. – Lá em cima. Perto da casa do Manuel.
— Você é Jônatas?
— Sou eu, sim senhor.
— Me diz como chega na casa.
— A casa está abandonada. Ninguém nem quer comprar aquele terreno. É muito perto da fábrica e longe de tudo o resto. Diz que a terra também não presta.
— E onde é que fica essa merda?
— Segue esse caminho aqui – ele apontou. – Quando bifurcar pega pra direita. Vai passar uma casa azul e tem uma entrada pra esquerda. Aí sobe o caminho até o fim. Tem nem portão.
— Quando é que você viu o Manuel pela última vez?
Ele coçou a cabeça. Apontou a viatura.
— Seu amigo não está muito bem.
— Me arruma um copo d’água, faz favor.
Ele entrou na borracharia. Voltei ao carro e enfiei a cabeça para dentro. Iuri estava com a cabeça apoiada no volante. Perguntei o que estava acontecendo.
— Crise alérgica.
— Parece que tem uma fábrica de tijolo aqui perto. Quer ir embora? Eu te levo num hospital.
— Não. Resolve essa porcaria logo, Pedro.
Jônatas voltou com a água e Iuri bebeu.
Repeti minha última pergunta. O homem hesitou. Coçou a barriga e eu já sabia que se preparava para mentir. Não esperava menos. Manuel estava naquela casa, e se aquele borracheiro sujo não tivesse nos ensinado um caminho errado, não havia dúvida do que encontraríamos. De qualquer forma, não parecia lógico que Manuel contasse ao outro que estava fugindo da polícia. Ou mesmo que havia cometido um assassinato. Ou.
Ele afirmou com a cabeça. Havia visto passar o carro de Manuel durante a noite. Mas é porque faz muito barulho, disse. E só viu o carro. Um Escort 87. Vermelho.
— Uma lata velha – completou. – Faz um barulho da porra. Era tarde, mas não durmo. Desde que minha esposa faleceu, não durmo.
Quis saber em que Manuel havia se metido. Respondi que era coisa pouca, que talvez ele pudesse nos ajudar com um outro caso. História de bar. O borracheiro pareceu satisfeito. Tentou um sorriso. Devolvi-lhe o copo e parei com as perguntas. Entrei na viatura.
— A casa é perto da fábrica. Você agüenta?
Iuri ligou o carro e acelerou. Mantinha as sobrancelhas muito franzidas e a boca aberta, como se buscando por ar. Quis tomar-lhe o volante e voltar para São Paulo. Mas eu não tinha vocação para ser mãe de homem da minha idade. Expliquei o caminho e calei-me.
Ao fim do percurso pude ver uma casa pequena – suja como tudo mais naquela região. Com o carro parado, Iuri abriu a porta e foi até um matagal amarelado na direção oposta da casa. Daquele lado o mato seguia até onde eu podia enxergar, mas por todos os outros era tudo uma terra seca e pálida. E a casa velha. Para trás dela era possível enxergar uma parte de um carro vermelho. O Escort.
A tinta da casa estava toda descascando, e subia nas paredes um pó laranja, da mesma cor da terra. Uma trilha de pneu fazia o caminho até o carro estacionado. E o resto era um silêncio. Onde diabos estava aquela fábrica de tijolos? Manuel podia ter ouvido a viatura se aproximando. Sem dúvida ouviria. Mas para onde fugir? Atrás da casa era só um descampado, e então a encosta do morro que continuava subindo.
— Iuri, porra! – chamei, em um grito abafado.
Ele estava afastado, procurando na distância qualquer chance de um ar mais puro. Ergueu uma das mãos e me mostrou o dedo do meio. Voltei-me para a casa. Ainda o silêncio, como se não houvesse ali o que ser perturbado. A área parecia toda muito estática, como só pode ser o que está abandonado há muito tempo. Quis colocar na cabeça que era ilusão. Que era aquele ar seco e a poeira suspensa. Manuel não