A cavalgada autoritária de Bolsonaro
Ex-paraquedista, o presidente Jair Bolsonaro sabe que uma das melhores estratégias de defesa é o ataque. Abalado pelas instituições por sua gestão calamitosa da pandemia de Covid-19, ele aproveita o episódio para acusar o Congresso, a Justiça e os governadores de oposição de desvios ditatoriais. Enquanto isso, os apelos por sua destituição se multiplicam
Em 31 de maio, o ex-capitão paraquedista Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil dezenove meses antes,1 saiu de seu palácio presidencial a fim de se juntar a um grupo que reclamava a intervenção dos militares para derrubar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância judiciária do país. Era a quarta vez que fazia isso desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS), cujos trabalhos o presidente brasileiro critica, classificou a irrupção da Covid-19 como pandemia, em 11 de março. Sem dúvida desejoso de que a cena ficasse gravada na memória de todos, Bolsonaro decidiu irromper pela Praça dos Três Poderes, em Brasília, montando um cavalo da Polícia Militar (PM).
Mesmo trajando uma simples camisa azul, sem as decorações militares que caracterizavam as fotografias equestres de Benito Mussolini, a imagem não deixava de lembrar o condottiere italiano. Não era mero acaso: pouco depois, o presidente publicava no Facebook uma citação do Duce: “Melhor viver um dia como leão que cem anos como cordeiro”.
Esse é o clima no qual o Brasil atravessou os três primeiros meses da pandemia. Até então, o país parecia viver o que o cientista político Adam Przeworski chamou de “autoritarismo furtivo”.2 Esse conceito traduz uma erosão lenta da democracia caracterizada por 1) sua natureza progressiva, 2) seu respeito formal ao estado de direito e 3) o fato de ser posta em prática por dirigentes eleitos, e não por forças exteriores ao sistema político. Portanto, nada de tanques nas ruas nem de junta militar tomando o poder.
Todavia, Bolsonaro resolveu se aproveitar da emergência sanitária para acelerar a erosão democrática. Enquanto outros dirigentes de vocação ditatorial impunham medidas de confinamento para ampliar seu poder, o presidente brasileiro apresenta a luta contra as recomendações científicas como um combate capaz de justificar a escalada autoritária. Seguindo o exemplo do presidente norte-americano, Donald Trump, Bolsonaro logo se erigiu em arauto da liberdade individual de continuar trabalhando, enquanto governadores de vários estados do país, apoiados pelo STF e pelo Congresso, instavam a população a permanecer em casa.
Radicalizando o antagonismo que o opunha aos outros poderes, o chefe de Estado demitiu dois ministros da Saúde, culpados de acatar as análises da OMS, antes de confiar a pasta a um general; promoveu a hidroxicloroquina sem prova de sua eficácia; visitou diversos locais, onde abraçou várias pessoas, sem máscara e sem respeitar as medidas de distanciamento físico; instigou seus adeptos a fazer vídeos mostrando que os hospitais dispunham de leitos vagos; e ignorou as informações sobre o avanço da epidemia.
Em suma, Bolsonaro orquestrou um caos sanitário que culminou na morte de cerca de mil pessoas por dia em junho, enquanto a Argentina conta menos de 1.500 mortos desde o início da pandemia (com uma população cinco vezes menor). Com um total de mais de 55 mil óbitos, sem que se saiba se o país já atingiu o pico epidêmico, o Brasil registra metade do número de mortos dos Estados Unidos (o mais alto do mundo).
Como pôde Bolsonaro empreender sua cavalgada protofascista? Para começar, mostrando-se audacioso. No fim de abril, destruiu a pedra angular de sua ascensão meteórica, o ex-juiz Sérgio Moro, artífice da Operação Lava Jato3 e na época ministro da Justiça. Objetivo? Influenciar a poderosa Polícia Federal (PF), na qual milhares de policiais organizam, entre outras coisas, o combate à corrupção e ao crime organizado.

“Obstrução da justiça”
Desde a volta da democracia, em 1985, os presidentes respeitaram a autonomia da instituição, que terminou por ser considerada uma estrutura do Estado, e não do governo. Em 24 de abril, proferindo seu discurso de despedida do ministério e denunciando as pressões que havia sofrido para nomear comandantes fiéis ao presidente (sobretudo no Rio de Janeiro, onde a família Bolsonaro vem sendo alvo de investigações comprometedoras), Moro se mostrou incisivo: a demissão, na véspera, do diretor-geral da PF “põe em causa […] o compromisso mais importante que deve nos ligar ao respeito à lei”.
A prisão do ex-integrante da PF Fabrício Queiroz, em 18 de junho, coloca de novo os problemas da família Bolsonaro com as autoridades judiciárias do Rio de Janeiro sob a luz dos holofotes. Queiroz – ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, um dos filhos do presidente suspeito de desvio de fundos quando era deputado estadual do Rio – foi preso pela polícia numa casa pertencente a um advogado do círculo de Bolsonaro. No momento em que são escritas estas linhas, ninguém pode avaliar as consequências desse episódio, principalmente para as relações entre o STF e o presidente.
A despeito do modo como instrumentalizou a justiça para perseguir Luiz Inácio Lula da Silva e o PT, Moro foi erigido em herói nacional pela classe média, preocupada com a luta anticorrupção. Quando ele acusa o presidente de atentar contra o estado de direito, a ideia da destituição de Bolsonaro percorre as redes sociais como rastilho de pólvora. Em alguns minutos, memes do vice-presidente Hamilton Mourão (um general) vestido de jogador de futebol prestes a entrar em campo pipocam na tela dos celulares.
Até Augusto Aras, nomeado por Bolsonaro para o cargo de procurador-geral, se viu forçado a abrir uma investigação depois das revelações de Moro. Em sua petição ao STF, Aras evocou seis delitos dos quais o presidente poderia ser culpado, entre os quais o de “obstrução da justiça”. O documento levou à divulgação do vídeo de uma reunião ministerial ocorrida 48 horas antes da saída do ministro da Justiça. Não bastasse a sequência confirmar as acusações do ex-magistrado relativamente à PF, ainda se ouve Bolsonaro sugerir o armamento da população para resistir aos governadores e prefeitos. Em um trecho em que demonstra seu perfeito domínio dos registros mais vulgares da língua portuguesa, o presidente se empolga: “Quero […] que o povo pegue em armas. É o único meio de impedir que algum filho da puta […] nos impinja uma ditadura!”, referindo-se às medidas de confinamento decididas aqui e ali.
Mas a audácia do epígono brasileiro de Mussolini não basta para explicar por que Bolsonaro se julga à altura de macaquear o Duce. Sua arrancada autoritária se vale do isolamento do Poder Judiciário, que tenta resistir, enquanto os outros atores institucionais ficam paralisados no lamaçal político do país. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, que decide se dá prosseguimento ou não aos processos de impeachment (há mais de trinta), sabe que Bolsonaro, empenhado em garantir sua retaguarda oferecendo cargos importantes aos partidos do “Centrão”, tem votos suficientes para barrar qualquer tentativa desse gênero no plenário.
Ninguém sabe até quando os parlamentares do suposto “Centrão” continuarão a se mostrar fiéis a Bolsonaro. Preocupados unicamente em tirar proveito da máquina estatal, são conhecidos por abandonar os barcos que começam a fazer água. Mas o navio bolsonarista, por ora, continua flutuando graças a um casco sólido: o apoio popular e as redes de afinidades específicas, das quais a mais importante o liga ao poder militar.
Um terço do eleitorado apoia Bolsonaro desde o primeiro turno da eleição presidencial de 2018 e continuava o apoiando, conforme a última pesquisa do Instituto Datafolha, no fim de junho. Ainda que não constitua maioria, essa base basta para manter o presidente na sela.
Entretanto, detalhes da pesquisa sugerem que o governo estaria perdendo o apoio das classes médias, um dos fatores principais – mas não o único – da emergência do bolsonarismo.
De dezembro de 2019 a junho de 2020, o presidente perdeu catorze pontos percentuais entre os eleitores que ganham de cinco a dez salários mínimos (a segunda faixa mais elevada). Esse desmoronamento foi acompanhado de um movimento oposto entre os mais pobres, que até então apoiavam Lula. Entre os que ganham menos de dois salários mínimos por mês, a aprovação de Bolsonaro subiu 9 pontos percentuais de dezembro de 2019 a maio de 2020.
Essa aprovação se explica, sem dúvida, pela ajuda emergencial concedida a perto de 50 milhões de trabalhadores sem recursos durante a pandemia, em três parcelas de R$ 600. A ajuda foi distribuída de abril a junho e podia chegar a R$ 1.200 por mês no caso de família monoparental ou quando os dois pais tinham direito a ela. Esse valor é importante, sobretudo nas regiões mais pobres. Por outro lado, como metade da população ativa está no setor informal, as declarações do governo favoráveis à retomada das atividades econômicas responderam à preocupação de numerosos brasileiros sem renda fixa: ganhar para sobreviver.
Alguns presumem que a aliança feita por Bolsonaro com poderosas congregações evangélicas pode contribuir para consolidar sua nova base popular: essas organizações religiosas, cujos adeptos passaram de cerca de 7% para 30% da população entre 1980 e 2019, concentram-se nos bairros populares. Embora permaneça católico, Bolsonaro se fez batizar por um pastor da Assembleia de Deus nas águas do Jordão, em Israel (2016). No auge da crise sanitária, ele recebeu representantes de onze igrejas evangélicas no palácio presidencial. Silas Malafaia, o pastor mais conhecido do grupo, declarou que o Brasil “não vai ser Venezuela, não vai ser destruído por ninguém, não vai falir”.4
Contudo, a adesão popular ao “bolsonarismo” talvez dure apenas enquanto durar a ajuda emergencial, que dificilmente será perenizada. Calculado de início pelo Ministério da Economia em R$ 200, o auxílio às pessoas vulneráveis foi multiplicado por três pelo Congresso. Devia ser concedido até junho, embora o ministro da Economia, Paulo Guedes, estude no momento a possibilidade de estendê-lo aos meses de julho e agosto, mas reduzido pela metade.
Num contexto de forte recessão e desemprego em massa, a política econômica a ser adotada após o fim da pandemia decidirá a sorte do presidente. Seus vínculos com o empresariado – um dos setores em que ainda conta com algum apoio – não fazem prever um aumento das despesas públicas. No começo de maio, perto de vinte organizações patronais representando os mais variados setores (do eletrônico ao têxtil) pediram ao presidente que afrouxasse as medidas de confinamento e isolamento. Bolsonaro atravessou então a Praça dos Três Poderes, rodeado por sua brigada de empresários, a fim de exigir do presidente do STF que ordenasse a flexibilização das medidas sanitárias em vigor.
Postura tutelar
Nenhum dos setores que ainda apoiam a Presidência, porém, tem tanto peso quanto o Exército. Oficiais dirigem metade dos ministérios, proporção maior até que sob a ditadura militar (1964-1985). E o vice-presidente, que em caso de destituição tomaria as rédeas do país, é um general de quatro estrelas.
Até a irrupção do coronavírus, muitos pensavam que os generais iriam conter o presidente, refreando seus instintos mais desvairados, como a ameaça de invadir a Venezuela em fevereiro de 2019. Declarada a pandemia, no entanto, os militares do governo adotaram uma postura tutelar: colocando-se “acima do conflito”, pareciam achar que seu dever era apreciar a pertinência das decisões do Executivo, mas também dos poderes Judiciário e Legislativo, dos governadores, das atividades da imprensa e da sociedade como um todo. Num artigo publicado em meados de maio, após a abertura da investigação do STF contra Bolsonaro, o vice-presidente declarou que havia a tentativa de “usurpar” as “prerrogativas do Poder Executivo”; que “os governadores, os magistrados e legisladores” haviam esquecido a teoria política segundo a qual as decisões do governo nacional eram as mais “razoáveis” no seio de uma federação; que certas personalidades eminentes dos governos anteriores tinham prejudicado “a imagem do Brasil no exterior” e que a imprensa devia “rever seus procedimentos”.5
Esse texto pode ser lido como um programa destinado a remodelar a democracia brasileira. Segundo o antropólogo Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos e especialista em Forças Armadas, os militares protegem um presidente que pode favorecer seu projeto de “refundação do Estado”, como um “para-raios sem fio terra”.6
Avançando à sombra dos cavaleiros de uniforme, Bolsonaro se aproxima do Estado autoritário que tanto almeja. E, caso seja destituído, a oposição se alarma ante a possibilidade de uma volta do Exército ao poder. Enquanto isso, em parte da população o medo e a indignação alimentam esperanças de frentes únicas e manifestações em favor da democracia. A imprensa, cujas relações com o presidente já não eram boas, definitivamente se afastou do homem a cavalo, reservando-lhe agora a mesma hostilidade que preparou as destituições de Fernando Collor de Mello (1992) e Dilma Rousseff (2016). As fileiras dessa resistência ficarão suficientemente cerradas para debelar o bloco no poder quando os terrores da pandemia forem apenas uma lembrança?
André Singer, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo, é autor de O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018). Entre outros artigos, publicou “The failure of Dilma Rousseff’s developmentalist experiment” [O fracasso da experiência desenvolvimentista de Dilma Rousseff] (Latin American Perspectives, v.47, Riverside, jan. 2020).
1 Ver Renaud Lambert, “Le Brésil est-il fasciste?” [O Brasil é fascista?], Le Monde Diplomatique, nov. 2018.
2 Adam Przeworski, Crises of democracy [Crises da democracia], Cambridge University Press, 2019.
3 Ver Perry Anderson, “Au Brésil, les arcanes d’un coup d’État judiciaire” [Os arcanos de um golpe de Estado judiciário no Brasil], Le Monde Diplomatique, set. 2019.
4 Hanrrikson de Andrade e Patrick Mesquita, “Encontro entre pastores e Bolsonaro tem oração por Congresso e STF”, UOL Notícias, São Paulo, 5 jun. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br.
5 Antônio Hamilton Martins Mourão, “Limites e responsabilidades”, O Estado de S. Paulo, 14 maio 2020.
6 Ricardo Ferraz, “Bolsonaro tem papel de ‘causar explosão’ para permitir ação ‘reparadora’ de militares, diz antropólogo”, BBC News Brasil, Londres, São Paulo, 7 jun. 2020.