A cena rock’n’roll de Pequim
Foi-se o tempo em que os jovens amantes da música ocidental precisavam trocar escondido os discos de grupos vindos da Europa ou dos Estados Unidos. Os roqueiros mais conhecidos são cada vez mais oriundos da própria China e produzidos na cena internacional. Após se tornarem muito criativos, eles descobrem as alegrias do mercado, mas sem permanecer ao abrigo da censura
Em 30 de setembro de 2016, no Estádio dos Trabalhadores, em Pequim, Cuijian, o patrono do rock na China, fez um show para 30 mil fãs, acompanhado de uma lição de história contemporânea. Quando cantou o sucesso “Yiwusuoyou”, hino do movimento estudantil de 1989, as fotos no fundo do palco mostrando o roqueiro de boné com estrela vermelha, posando na Praça Tiananmen com sua guitarra, pareciam vindas de outra era. Assim como a cultura e a sociedade de maneira geral, o rock também passou por transformações fulgurantes nestas quase três décadas.
Entre os anos 1980, quando o heavy metal chegava escondido como um artigo de contrabando, e a revolução digital dos anos 2000, ele navegou entre a popularidade e o confinamento underground. O metal teve um breve auge no início dos anos 1990, com bandas como Black Panther, Cobra e Tang Dynasty. O álbum Sonho de um retorno à dinastia Tang, da última delas, que saiu em 1991 pelo selo Magic Stone, de Taiwan, vendeu milhões de cópias. Mas sua popularidade não durou muito: a mensagem, muito passadista, já não encontrava eco em uma juventude que pensava principalmente em enriquecer, consumir e cantar karaokê. Sem redes de difusão e confinados nas áreas cinzentas da capital, roqueiros fecharam-se em si mesmos, apesar do surgimento de um movimento punk que os meios de comunicação ocidentais celebraram durante um tempo. A paisagem fonográfica permanecia pouco variada; praticamente só a Scream Records produzia rock, enquanto os selos oficiais, controlados pelo Ministério da Cultura, limitavam-se a estilos ingênuos ou patrióticos. Contudo, a expansão do comércio internacional surpreendentemente mudou esse quadro.
Na verdade, foi graças à venda no mercado negro de toneladas de CDs não vendidos na Europa e nos Estados Unidos que milhões de jovens descobriram, confusamente, David Bowie, Guns N’ Roses, Nirvana e Beatles. Esses CDs, chamados dakou (“furado”), formaram o gosto de um novo público, inspiraram músicos e despertaram vocações. Em Pequim, centro de uma nova criatividade, apareceram selos como o de Shen Lihui, o Modern Sky, que, inaugurado em 1997 em uma velha gráfica, não tardou a dar uma imagem mais atual ao rock, com grupos como New Pants. Após os Jogos Olímpicos de 2008, apesar dos preços delirantes dos imóveis, da burocracia e da vigilância policial, a lista de casas de show de Pequim cresceu consideravelmente. Hoje, ela não tem muito a invejar de Londres ou Paris. Os principais clubes – School, Temple, Yugong Yishan, DDC ou Fruity Space – recebem toda semana bandas de punk, pós-rock, noise, folk e metal, com um público cada vez mais entendido.
Isso porque a década de 2010 assistiu ao estabelecimento da geração dos filhos únicos que pôde aproveitar a convergência dos dados on-line, os meios de produção digitais, as redes sociais e o desenvolvimento de salas de show (live houses) nas cidades médias. Tudo isso criou um ambiente propício a uma produção musical muito diversificada. Em Pequim, uma miríade de grupos de grande personalidade faz experimentações com rock, psicodelia e electro… Nova Heart, Queen Sea Big Shark, Chui Wan, Carsick Cars: nomes conhecidos do público informado. Outros, como o Hanggai, de influência mongol, ou o DaWangGang, optam por se reconectar com as tradições musicais étnicas ou fundir as músicas populares chinesas com um folk criativo. Enquanto a maioria se vincula ao Modern Sky ou ao Maybe Mars, os dois selos que disputam o melhor da cena independente, outros preferem a autoprodução.1
No desenvolvimento dessas cenas alternativas, os laowai (gíria para estrangeiros) têm seu papel: donos de clubes, agentes ou artistas, eles criaram pontes entre Pequim, Europa e Estados Unidos. Já não é raro ver em Pequim, Xangai, Chengdu e Wuhan não apenas os grandes nomes do rock, como Metallica ou Public Image Limited (PIL), mas também grupos como JC Satàn, para um público de nicho, restrito e especializado. E a cena do rock chinesa chama atenção além das fronteiras. Prova disso são as numerosas iniciativas de festivais-convenções reunindo profissionais de vários países, que começaram a florescer no país há dois ou três anos. Por meio dessas redes de intercâmbio, muitos grupos chineses agora vão a festivais como o de Glastonbury, no Reino Unido, ou os TransMusicales, na cidade francesa de Rennes – sem envolvimento ou subsídio do governo.
Raros são os músicos que abordam questões sensíveis, especialmente porque a censura, sob a forma de cancelamento de shows e problemas burocráticos, continua sendo uma ameaça. Gerente do School Bar, que ostenta o slogan “Bad education” em grandes letras vermelhas na camiseta, Liu Fei diz que mesmo os punks que tocam ali não têm letras realmente engajadas: eles falam mais de jogo e cerveja do que de corrupção. Mas há alguns desordeiros que colocam o dedo nas feridas do sonho chinês contemporâneo, como Zuo Xiaozuzhou (nascido em 1970), sem dúvida o mais turbulento e famoso de todos. Com seus textos pesados, Zuzhou chega a ser chamado de “Leonard Cohen chinês”. Ele marca posição em temas como poluição, espoliação, prisões arbitrárias etc. e já teve sua conta na rede social Weibo (o Twitter chinês), com quase 2 milhões de seguidores, bloqueada pela censura. Em Pequim, o jovem rapper MC Dawei virou o centro das atenções, com suas improvisações virulentas criticando a hipocrisia da respeitável China diante do controle do partido único e seus poemas mais sutis falando sobre a amnésia consumista na qual caiu seu povo. Seu mais recente álbum intitula-se Luxúria e cicatrizes do homem insultado.
A partir de meados dos anos 2000, a vitalidade da criação do rock foi marcada pela convergência entre o crescimento dos festivais – apesar de suas falhas, principalmente a programação mal-acabada –, o mercado digital e móvel da música e o investimento de todo tipo nessas novas indústrias. O exemplo mais impressionante desse desenvolvimento fulgurante é o festival Modern Sky: ele abriu sua programação ao pop, mirou na jovem classe média abastada com grande reforço dos patrocinadores (muito destacados) e iniciou uma corrida expansionista não apenas pelo país, mas também rumo a Nova York e Helsinque.
Nada parece deter Shen em seu projeto faraônico de “integração vertical”, em que a experiência do festival funde-se com a do consumidor on-line. Hoje, com um investimento de 130 milhões de yuans (R$ 58 milhões) de um grupo de Xangai, o “Jack Ma da música” (em referência ao riquíssimo presidente da Alibaba, gigante do comércio on-line) acaba de investir no evento britânico Liverpool Sound City, lançar aplicativos de bilheteria e acesso on-line para a transmissão de shows (streaming), tudo isso enquanto gerencia um catálogo de cerca de trinta artistas.2
A rápida introdução de capitais nesse jovem setor produz resultados contrastantes. Se os artistas dispõem de infinitamente mais oportunidades do que antes – shows, promoção, patrocinadores –, os novos financiadores, muitas vezes oriundos de indústrias tecnológicas, estão mais interessados nas necessidades dos consumidores do que na criação de um ecossistema artístico. “Nos últimos anos, alguns players da música estiveram mais implicados em finanças do que em qualquer outra coisa, e os artistas são amplamente manipulados”, comenta Yu Yang, programador do festival Midi. “Os contratos que eles assinam com as empresas são alienantes. Eles têm de ceder direitos autorais vitalícios a elas, que veem ali apenas um conteúdo sobre o qual capitalizar, e não o fruto de uma abordagem artística. Isso é terrível para a cena independente.”
Em alguns aspectos, a China dos anos 2010 se parece muito com os Estados Unidos dos anos 1990, quando a bolha da internet gerou o surgimento de uma profusão de start-ups. Algumas se tornaram empresas gigantescas, como a Tencent (redes sociais, WeChat e QQ, jogos de vídeo…) e a Alibaba. Muitas plataformas (como Kugou, NetEase e Letv) coexistem com essas gigantes e lutam para obter um pedaço do enorme mercado interno (700 milhões de internautas, 90% deles usuários de smartphones), oferecendo uma gama cada vez mais variada de serviços musicais e derivados. Essa guerra por influência digital tem a vantagem de ter impulsionado estratégias que favorecem a compra de produtos licenciados, ao mesmo tempo que introduziu a proteção dos direitos autorais de uma forma mais eficiente do que as diretrizes do governo. Atualmente, os grandes grupos disputam a exploração exclusiva dos catálogos dos selos locais e internacionais mais importantes, o que não favorece em nada o acesso dos selos pequenos aos caminhos da difusão.
Em suma, o destino dos roqueiros chineses não difere em nada da sorte dos músicos ocidentais: sua música representa um conteúdo como qualquer outro em uma galáxia dominada pela variedade; contudo, eles têm ferramentas para sair do anonimato… A indústria da música como tal continua não tendo grande desempenho na China (ocupava o 21º lugar no mundo em 2014) e ainda tenta encontrar seu modelo econômico. O internauta ainda acessa tudo gratuitamente. Quanto aos músicos independentes, eles não recebem, por assim dizer, quase nenhuma remuneração das plataformas on-line. Segundo Yin Liang, diretor da plataforma Letv, ainda levará cinco anos até que o mercado digital se torne rentável, o tempo de limpar a rede de conteúdos piratas e construir “produtos totais” para oferecer ao consumidor. A música será apenas um conteúdo entre outros, ao lado de clipes, filmes e outras experiências interativas. O mercado parece promissor…
No entanto, o cancelamento e a censura, embora pontuais, continuam sendo uma realidade, especialmente desde a chegada ao poder de Xi Jinping, em 2013. O presidente quer restaurar o que chama de “valores socialistas chineses”, e o rock, a priori, definitivamente não está entre eles. Em 2015, foram cancelados festivais muito aguardados, principalmente em Pequim, obrigando sobretudo o Midi e o Modern Sky Festival a irem para as províncias. Algumas músicas consideradas perigosas para a estabilidade do país, incluindo muitos trechos de rap norte-americanos, além de canções pop de Taiwan, foram retiradas das plataformas.
Apesar da propaganda, os valores socialistas parecem bem distantes dos jovens músicos que só conheceram a China da abertura e da internet. Fazer rock na China continua sendo um exercício particular, no qual os artistas precisam manobrar entre as sensibilidades ideológicas e as exigências do mercado.
*Léo de Boisgisson é jornalista e promotora cultural na China
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 116 – março de 2017}