A Ciência está matando as mulheres?
Ao relatar as consequências das desigualdades de gênero nas áreas médica e farmacêutica, Londa Schienbinger demonstra como o patriarcado influenciou de tal forma a ciência que levou pesquisadores a supor que as doenças de homens e mulheres eram semelhantes, quando de fato não eram; ou que as doenças de homens e mulheres eram diferentes, quando de fato eram semelhantes. Desta forma, inúmeros aspectos da saúde das mulheres têm sido pouco estudados ou até mesmo negligenciados.
As manifestações no Brasil e em todo mundo por ocasião do Dia Internacional da Mulher, que este ano se articularam em torno do movimento global “8M”, têm promovido intensas articulações para ocupar as ruas e também têm proporcionado uma variedade de debates e reflexões acerca das questões de gênero e dos feminismos na sociedade. Um dos temas mais relevantes e, talvez, um dos menos discutidos é o cerne de uma campanha lançada neste oito de março pela ONU Mulheres: “Onde estão as mulheres cientistas?”, uma iniciativa que trata sobre gênero e ciência.
Este debate envolve questões referentes às desigualdades de acesso e oportunidades para as mulheres nas diferentes áreas científicas, o teto de vidro nestas carreiras, as barreiras de acesso, a força do patriarcado, sustentado pela epistemologia positivista e pela adoção do “masculino universal” como parâmetro generalizado na maioria das pesquisas.
Em 1999 foi lançado nos Estados Unidos o livro mais emblemático sobre gênero e ciência: “O Feminismo Mudou a Ciência?”, de Londa Schienbinger (obra que chegou ao Brasil em 2001). De caráter abrangente – tratando desde a historiografia das ciências e a evolução das questões de gênero até a cultura de gênero reproduzida em diferentes ramos da ciência – o livro faz “revelações” polêmicas e problematiza até que ponto o feminismo teve um impacto transformador na construção do conhecimento científico.
Ao relatar as consequências das desigualdades de gênero nas áreas médica e farmacêutica, Schienbinger demonstra como o patriarcado influenciou de tal forma a ciência que levou pesquisadores a supor que as doenças de homens e mulheres eram semelhantes, quando de fato não eram; ou que as doenças de homens e mulheres eram diferentes, quando de fato eram semelhantes. Desta forma, inúmeros aspectos da saúde das mulheres têm sido pouco estudados ou até mesmo negligenciados.
Algumas informações apontadas na obra em questão são pertinentes ao debate acerca da participação das mulheres em todas as etapas e em todos os espaços da produção científica, bem como evidenciam a pertinência das epistemologias feministas. Ao pontuar que as mulheres foram excluídas dos estudos sobre a interação entre a terapia de estrógeno e doenças cardiovasculares; que até o início dos anos 90 as mulheres eram totalmente excluídas dos estudos conduzidos para produção de novos medicamentos nos Estados Unidos, apesar de consumirem 80% dos fármacos comercializados no país; embora pouco se soubesse na época sobre os efeitos da aspirina em doenças do coração em mulheres, mulheres na idade adulta foram encorajadas a tomar uma aspirina por dia durante décadas até que em 2014 foi concluído o primeiro estudo dos efeitos deste remédio (que foi criado em 1897) nas mulheres, e que descobriu que o uso contínuo da aspirina por mulheres abaixo dos 65 anos não é benéfico para a prevenção de doenças cardiovasculares e do câncer por aumentar os riscos de sangramento gastrointestinal.
Até o início do século XXI apenas metade das drogas pesquisadas no mundo havia sido analisada segundo diferenças relacionadas ao sexo. Uma ciência construída no âmbito do patriarcado, circunscrita à pseudoneutralidade do positivismo, será edificada a partir do masculino universal como objeto básico de pesquisa. Em tal contexto, Schienbinger constata que os corpos femininos foram considerados um desvio da norma masculina, e os estudos científicos convergiram para sua singularidade reprodutiva. Os resultados de pesquisas médicas conduzidas entre homens em todas as demais áreas são, então, aplicados às mulheres, embora as consequências para as mulheres em termos de doenças, diagnóstico, prevenção e tratamento na esfera não reprodutiva não tenham sido adequadamente estudadas. Sendo que dar remédios às mulheres, em dosagens projetadas para homens, obviamente as expõe ao risco de doses excessivas.
Os resultados da maioria dos testes com medicamentos e protocolos de atendimento foram generalizados para as mulheres, a quem se receitavam (e ainda se receitam) dosagens planejadas para o peso e metabolismo médio dos homens. As razões pelas quais o masculino universal segue como parâmetro em áreas científicas cujos produtos finais podem gerar riscos à integridade física e à qualidade de vida de metade da população mundial são basicamente duas: os interesses capitalistas da indústria farmacêutica, que se beneficia com os argumentos da neutralidade científica para conduzir estudos únicos com grupos heterogêneos de homens, o que reduz o custo de produção; e a outra razão é a cultura científica patriarcal, que durante séculos partiu de premissas equivocadas na condução de estudos e que nas últimas décadas vem sendo problematizada pelas práticas feministas e por cientistas feministas. Por isso, a resposta ao questionamento da Londa Schienbinger “O feminismo mudou a ciência?” é: estamos mudando (não sem luta), mas ainda há muito a avançar.
E tais tranformações são urgentes e necessárias porque diversos estudos, a exemplo das publicações de Schienbinger e outras pesquisadoras feministas, nos alertam para os riscos de uma ciência patriarcal que exclui as mulheres ao mesmo tempo em que apontam a insuficiência de dados sobre as mulheres em diversas áreas da produção científica ou, ainda, para a dificuldade de acesso aos dados existentes. Em suma, a autora nos coloca diante do saldo de uma produção científica androcêntrica: as mulheres sofrem desnecessariamente e morrem. Reações adversas a drogas ocorrem duas vezes mais em mulheres do que em homens. Algumas drogas que dissolvem coágulos, usadas para tratar ataques do coração, por exemplo, embora sejam benéficas a maioria dos homens, causam problemas de sangramento em muitas mulheres. Drogas típicas para tratamento da hipertensão arterial tendem a diminuir a mortalidade masculina por ataques cardíacos, mas provaram aumentar as mortes entre mulheres. No final da década de 90 surgiram indícios de que os efeitos de antidepressivos poderiam variar no decorrer do ciclo menstrual e desta maneira, uma dosagem constante poderia ser alta demais em alguns pontos do ciclo da mulher, e baixa demais em outros. Em 2014, pesquisas demonstraram que hormônios femininos e diferenças na composição corporal e no metabolismo podem tornar as mulheres de 50% a 75% mais propensas a manifestar efeitos colaterais medicamentosos.
Para além do questionamento proposto pela ONU Mulheres sobre “Onde estão as mulheres cientistas?”, precisamos nos interrogar acerca de “Quais são as pautas feministas relacionadas à ciência?”. Nos últimos anos temos alcançado no Brasil algumas conquistas importantes na área dos direitos sexuais e reprodutivos, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (de 2009) que consolidou e aperfeiçoou os avanços do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (de 1984) em áreas como clínica ginecológica, no pré-natal, parto e puerpério, no climatério, planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama etc. Mas os desafios são muitos e as pautas são extensas, afetam as mulheres em diferentes dimensões (estudos, mercado de trabalho, acesso à saúde, uso de medicamentos, etc.) e compõem a complexa amálgama das lutas dos feminismos. Entretanto, uma das questões que se destaca a partir das leituras críticas da ciência patriarcal e androcêntrica, e que talvez seja a pergunta mais difícil é: “A ciência está matando as mulheres?”. A única certeza até aqui é a de que não temos sequer os elementos necessários para uma resposta definitiva. Como nos lembra Juliet Mitchell, a revolução das mulheres é a revolução mais longa…
Luciana da Luz Silva é militante e pesquisadora feminista.
Marcelo Pires Mendonça é professor da História da Rede Pública de Ensino do Distrito Federal