A colonização do outro - Le Monde Diplomatique Brasil

Discordar é preciso

A colonização do outro

por Giane Maria de Souza
22 de julho de 2019
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Qualquer imposição de ideias, conceitos, religião e ideologia ao outro se torna fundamentalismo, autoritarismo e colonização. Homogeneidade de conhecimento não combina com aqueles que acreditam na democracia. 

Estudei praticamente a minha vida inteira em escolas públicas. Do ensino fundamental ao médio, do mestrado ao doutorado. A única exceção foi a minha graduação, já que não existia universidade pública com o curso de História em minha cidade. Meus encantos pelos livros se iniciaram na Escola Municipal Prefeito Max Colin, em Joinville, Santa Catarina. Enquanto os livros de Eleanor H. Porter Pollyana e Pollyna Moça ainda faziam sucesso entre as meninas da minha idade, eu completava a carteirinha da biblioteca com os livros da Coleção Primeiros Passos, da editora Brasiliense, lançada na década de 1970. 

Entre os títulos, lá estavam: O que é comunismo, de Arnaldo Spindel; O que é arte, de Jorge Coli; O que é Democracia, de Denis Rosenfield; O que é Revolução, de Florestan Fernandes; O que é Pênis, de José Ângelo Gaiarsa; O que é Feminismo, de Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy. Assim, transformei-me em leitora e colecionadora de livros. 

Ainda em minha juventude, em 1989, caminhávamos para a escola conversando sobre política, debatíamos no recreio sobre a polarização da corrida eleitoral entre Lula e Collor, e nossos debates adolescentes voltavam-se sempre a favor da democracia. Nesta mesma medida, desde cedo, identifiquei-me com os textos que denunciavam a injustiça social, a desigualdade econômica e a pobreza. Debatia com meus amigos e amigas adolescentes os prós e os contras do capitalismo e do socialismo. Na escola, discutíamos ideias, pensamentos e concepções de mundo. Ou seja, muitos de meus colegas, já evidenciavam suas tendências mais à direita ou mais à esquerda, sempre buscando convencer o outro a partir de bons argumentos. Ser contra ou a favor do comunismo, do capitalismo, da social democracia dependia, afinal, dos gostos teóricos mobilizados na argumentação. 

Crédito: Michal Jarmoluk/Pixabay

Meu exemplar do Manifesto Comunista, que tem o prefácio do João Amazonas, da editora Anita Garibaldi tornou-se uma obra chave na minha formação. No Colégio Estadual Governador Celso Ramos, minhas leituras e militância se aprofundaram. E, guiada pela vontade de mudar o mundo, entrei para o Grêmio Estudantil Edson Luís de Lima Souto e União da Juventude Socialista (UJS), organização ligada ao Partido Comunista do Brasil, o PcdoB, vindo a me filiar, mais tarde, ao PT – Partido dos Trabalhadores. Em 1992, fui presidente da União Joinvilense de Estudantes Secundaristas (UJES), período em que coordenei o “Fora Collor” em minha cidade. 

Como filha de pais operários, vivi as dificuldades de uma família que lutava para sobreviver a partir do seu trabalho. Desde cedo, compreendi a importância da participação política para a transformação social das comunidades empobrecidas. A experiência política fez-me divergir dos meus colegas e parentes, muitas vezes. Mas nunca desejei que eles fossem exterminados por conta disso. Nossos posicionamentos diante do mundo nos colocaram e nos colocam em posições diferentes. Ou seja, a minha militância em movimentos sociais me forneceu a compreensão de que é preciso ver o mundo com os olhos do outro. É preciso entendê-lo em sua ampla diversidade, para, enfim, transformá-lo. 

Não obstante, em direção diametralmente oposta, os regimes totalitários defendem um único ponto de vista, condenam e matam seus opositores. Regimes totalitários perseguem aqueles que pensam, agem e se organizam de forma diferente. A ditadura não gosta de opositores, da livre expressão, dos artistas, dos intelectuais, da educação, da arte, enfim, da leitura. Tomam como inimigos àqueles que não comungam com o padrão de comportamento político e pensamento imposto, provando-nos, distintamente, que nenhuma ditadura, de direita ou de esquerda, é benéfica para o bem comum.  

A colonização do outro
Para a socióloga Esther Solano, houve, no processo eleitoral de 2018, uma politização da antipolítica. Ou seja, respaldado pela antipolítica, mas posicionado ideologicamente, segue o presidente eleito acompanhado por seus séquitos. Nenhum outro político pós-redemocratização teve a coragem, enquanto parlamentar eleito democraticamente, de se colocar contrário à Declaração dos Direitos Humanos, e defender abertamente torturadores e a própria ditadura militar. Mas, para Bolsonaro e seus asseclas, quem pensa diferente é inimigo do governo. 

Sobre desfechos desta ordem, Hanna Arendt fez um cuidadoso estudo em As origens do Totalitarismo e a Condição Humana, dois livros imprescindíveis para se entender a conjuntura atual. Quer dizer, em história, nada surge por acaso. O poder pressupõe disputas pela hegemonia, e sua manutenção requer, sob a égide do autoritarismo, a eliminação, o silenciamento e a exclusão do outro, seja ele um opositor civil, um partido político, uma organização ou movimento social. Porquanto que, diante dos nossos olhos e nas múltiplas histórias vividas pela humanidade, disputas, conflitos e tensões sobre concepções políticas produziram guerras, genocídios, totalitarismos e a disseminação de inúmeras violências. 

No outro ângulo, quando líamos a Coleção Primeiros Passos, tínhamos uma curiosidade pelo mundo. Conhecer novas experiências, novas culturas, novas possibilidades de pensamento, fez com que melhorássemos a leitura sobre o outro. Assim como a belíssima música de Arnaldo Antunes, O seu olhar melhora o meu, traduz o que seja essa tão necessária empatia. 

Ainda em relação ao outro e suas percepções, José Saramago defendia que não valia a pena convencer ninguém. “O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro”. Mas Paulo Falcão acredita que esse posicionamento, ao contrário, possa ser uma propagação da indiferença pelo e para o outro. Mas é válido observar: em ambos os casos, o outro se faz destacadamente presente. 

Lembro que nas aulas da faculdade de História, discutíamos intensamente o que era consciência e ideologia. Acreditávamos que, quem não tinha o nosso pensamento era alienado; decerto, presunções de uma esquerda infantil e uma forma colonizadora de pensamento. Afinal, qualquer imposição de ideias, conceitos, religião e ideologia ao outro se torna fundamentalismo, autoritarismo e colonização. Homogeneidade de conhecimento não combina com aqueles que acreditam na democracia. 

Ou seja, as pessoas devem mudar de posição política quando não estão, de fato, convencidas de suas idiossincrasias. E sempre: é preciso ver o mundo com o olhar do outro. Por isso, a participação política é sempre um processo educativo, como refletia Carole Pateman.  

É preciso ler o mundo, nos ensinava Paulo Freire. Não somente por meio dos livros e das teorias políticas e religiosas, mas pela vivência da coletividade, do antagonismo para uma práxis pedagógica, por uma Educação que não pressupõe respostas, mas, sim, perguntas e dúvidas. Quem não entende a importância da escola pública, talvez nunca tenha estudado em uma. Quem nunca precisou efetivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), não entende o porquê da sua existência. Quem não depende de sua aposentadoria para viver, não entende como alguns necessitam desse direito incondicionalmente. 

Por isso, a participação política não está restrita aos canais institucionalizados de poder, e, tampouco, aos movimentos sociais organizados. Está nas vivências construídas por cada sujeito e suas identificações coletivas. Um conselho de uma fábrica, uma associação de moradores, um grupo de apoio, uma associação de pais e professores pode auxiliar o nosso entendimento sobre o bem público. Assim, reforça-se a importância de se pensar a cidade e o país com os olhos do outro. Esse é o exercício de alteridade necessário que devemos realizar insistentemente no cotidiano, e, com fôlego, fomentar a tão escassa empatia, mesmo que nossas histórias sejam completamente diferentes.  

Giane Maria de Souza é historiadora, mestre em Educação pela UNICAMP. Doutoranda  em História pela UFSC – Linha de Pesquisa Sociedade, Política e Cultura no Mundo Contemporâneo e bolsista do Programa UNIEDU/SC. É autora do livro A cidade onde se trabalha – a propagação do autoritarismo estadonovista em Joinville/SC pela Editora Maria do Cais, 2008.



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