A comunidade migrante acadêmica haitiana na República Dominicana
Oitavo artigo da série Haiti em foco apresenta o recente crescimento da comunidade estudantil haitiana na República Dominicana, suas causas e implicações
Este artigo é fruto da minha dissertação do mestrado em Integração Contemporânea da América Latina, que faz uma análise sobre a migração acadêmica haitiana na República Dominicana olhando para as assimetrias existentes entre ambos países, e mais especificamente no âmbito educacional. Embora o sistema internacional contemporâneo defenda um mundo justo e igualitário, a realidade de alguns territórios vem comprovando que tudo não passa de um simples discurso. As desigualdades, sejam elas socioeconômicas, políticas, culturais, são cruciais para manter a hierarquização colonial que serve para diferenciar um lugar de outro, uma pessoa de outra e determina, portanto, o lugar que cada corpo, conforme a raça, deve ocupar. Assim, sociedades formadas por pessoas negras, por exemplo, consideradas inferiores, sofrem da hipocrisia desse sistema, que de fato, não pretende defender a justiça nem a igualdade, mas fazer com que determinados territórios se tornam prova que o ser negro é um ser incapaz de se autogovernar, logo, incapaz de alcançar o desenvolvimento ou o progresso.
A situação do Haiti desde sua independência em 1804 serve como um exemplo claro de como as desigualdades estão enraizadas no racismo. A Primeira República Negra independente tem enfrentado um ciclo vicioso de crises, golpes de Estado e intervenções militares, como a ocupação norte-americana de 1915 a 1934. Essa intervenção, que afetou toda a região do Caribe, impulsionou o desenvolvimento da agricultura na República Dominicana, enquanto o povo haitiano foi forçado a migrar e atuar como mão de obra barata, superexplorada e violentada, a fim de sustentar o crescimento agrícola daquele país. Desde então, o histórico migratório haitiano evoluiu tanto em termos de destinos como de expectativas. Nas últimas décadas, países da América Latina, como Brasil e Chile, passaram a ser destinos para os haitianos, enquanto a República Dominicana se tornou um local para aqueles que buscam educação acadêmica, situação exponencialmente agravada com o terremoto de 12 de janeiro de 2010.
Contudo, a história compartilhada entre Haiti e República Dominicana é marcada por tensões, crises e genocídio, impulsionados por uma persistente haitianofobia¹ e um colonialismo ideológico que fundamentam a construção da inferioridade do negro haitiano. Nesse contexto, a presença haitiana na República Dominicana se revela como uma experiência dramática, caracterizada, sobretudo, pela racialização das relações de trabalho.

Breve historicidade da migração haitiana para a República Dominicana
A migração haitiana para a República Dominicana é um tema central nas relações internacionais, pois esses países, mesmo compartilhando uma história e uma ilha, são reconhecidos como territórios marcados por relações conflituosas. A persistência do ódio, especialmente na sociedade dominicana, transformou a migração haitiana no principal foco do discurso estatal dominicano, que frequentemente retrata os haitianos como o “Outro” (o negro inferior). Essa dinâmica reflete a tendência da República Dominicana em definir sua identidade em oposição ao Haiti, reproduzindo a lógica discriminatória presente no sistema internacional.
Muitos estudiosos apontam a ocupação dos Estados Unidos no Caribe como o marco inicial da migração em massa de haitianos para a República Dominicana, onde passaram a trabalhar na indústria açucareira do país. No entanto, apesar do declínio dessa indústria após a década de 1980, com o crescimento e a diversificação da economia da República Dominicana, os haitianos, devido à crise econômica e política prolongada no seu país de origem, continuam sendo a principal fonte de mão de obra para empresas dominicanas, tanto na colheita de cana-de-açúcar quanto em outros setores, como construção e turismo.
Em um relatório de 2022 sobre a percepção dos migrantes em relação à migração segura, ordenada e regular, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) aponta que a migração de haitianos para a República Dominicana é motivada pela necessidade de capitalização, pela falta de acesso a serviços sociais básicos, pela insegurança e pela grave crise econômica que afeta o Haiti. De fato, diante dos problemas estruturais que a sociedade haitiana enfrenta, como instabilidade socioeconômica e política, desemprego, insegurança, entre outros, a migração para outros territórios muitas vezes se torna a única alternativa para a população desse país. Assim, a precarização das condições de vida no Haiti tem impulsionado consideravelmente a migração dos haitianos para a República Dominicana, o destino mais acessível em razão da proximidade geográfica e das barreiras migratórias impostas por outros países.
A partir da década de 1990, a insegurança tornou-se um dos principais fatores que impulsionaram os haitianos a deixarem seu país e migrarem para a República Dominicana. Dois momentos cruciais foram identificados como catalisadores dessa migração: a agitação sociopolítica de 2001 a 2004 e a violência das gangues, associada à grave crise econômica e política que ainda persiste, especialmente entre 2018 e 2022. Esses fatores têm alterado a geografia das ocupações dos migrantes haitianos na República Dominicana, com destaque para os setores de hotelaria, turismo e comércio, ao mesmo tempo que muitos jovens haitianos migram para o país em busca de oportunidades educacionais.

Assim, hoje, observamos uma evolução significativa da comunidade haitiana na República Dominicana, tanto em termos numéricos como em suas categorias. O migrante haitiano nesse país não é mais apenas aquele que trabalha nos bateys ou em outras áreas periféricas. Dentro dessa comunidade, também estão aqueles que migram por outros motivos, como os estudantes.
Os estudantes como nova categoria da diáspora haitiana estudantil na República Dominicana
Antes do final da década de 1990, os estudantes não constituíam uma categoria social distinta dentro da diáspora haitiana na República Dominicana. No entanto, por causa dos problemas estruturais mencionados anteriormente, que afetam todas as áreas da sociedade haitiana, a busca por conhecimento passou a ser um dos motivos do fluxo migratório entre os dois países. Embora seja uma categoria recente, a comunidade estudantil haitiana na República Dominicana tem evoluído de maneira crescente.
Por exemplo, durante a década de 2010, mais de 20 mil haitianos estavam matriculados em diversos centros universitários na República Dominicana, o que representava 73,5% do total de estudantes estrangeiros no país. Quatro anos depois, esse número duplicou, passando para 40 mil. No ano acadêmico 2011-2012, o número de estudantes haitianos na República Dominicana era de aproximadamente 36.510, aumentando para 44.310 no ano acadêmico 2012-2013 e chegando a 55.178 em 2014-2015. Já em 2020, a estimativa era de cerca de 70 mil estudantes haitianos.
É importante destacar que essa migração tem sido uma contribuição significativa para o fortalecimento da economia da República Dominicana. De acordo com Toussaint Pierre, no artigo “Quelle université pour Haïti dans la perspective de sa reconstruction?” (Haïti Perspectives, 2013), a presença de haitianos nas universidades dominicanas teve um impacto positivo no crescimento econômico do país. As despesas anuais da comunidade estudantil haitiana são estimadas em mais de USS 220 milhões por ano, dos quais 30% são destinados ao pagamento das taxas universitárias, enquanto os 70% restantes são utilizados em outras despesas, como moradia, alimentação, transporte, entre outras.
Embora essa nova categoria da diáspora haitiana na República Dominicana traga grandes benefícios, isso não impede que os haitianos, por sua origem e raça, sejam afetados pelas discriminações históricas contra seu país na sociedade dominicana. Segundo o artigo “Migrations internationales et Développement économique: mythes et constats empiriques sur la migration haïtienne de main d’œuvre en République dominicaine” de Augustin Smith (2020), a migração acadêmica haitiana para a República Dominicana frequentemente não segue as normas adequadas para esse tipo de migração. Na maioria dos casos, esses estudantes permanecem no país sem visto de estudante, ou seja, em situação migratória irregular. Essa irregularidade pode, em algumas situações, tornar os estudantes haitianos vítimas de brutalidade policial no país vizinho. Dados coletados durante esta pesquisa indicam que cerca de 80% dos haitianos que estudam na República Dominicana não possuem visto de estudante. Embora esses estudantes representem a maior comunidade acadêmica estrangeira no país, eles são os únicos a enfrentar dificuldades para obter o visto de estudante.
A migração significativa dos haitianos para o outro lado da fronteira da Ilha Hispaniola evidencia a falência do Estado haitiano, que, apesar de ser a primeira República independente da América Latina e a segunda das Américas, enfrenta sérias dificuldades em resolver as desigualdades e injustiças que afligem a população. Enquanto isso, a República Dominicana se reforça como uma alternativa de suposto bem-estar para os haitianos, sem que o outro lado da moeda seja revelada a aceita publicamente – a importância desses migrantes para a economia dominicana.
A pergunta “o que seria a República Dominicana sem o Haiti?” expõe uma complexa teia de relações históricas, econômicas e sociais, frequentemente negada por ambos os países. A relutância em reconhecer a interdependência mútua impede a construção de soluções para os desafios compartilhados. O Haiti parece relutar em defender seus cidadãos no exterior, não exigindo que seus direitos como imigrantes, reconhecidos pelo sistema internacional, sejam respeitados, nem criando mecanismos para garantir que seus jovens possam permanecer em seu país, contribuindo para a (re)construção da nação. Por outro lado, a República Dominicana ignora que a relação entre os dois países reflete a interdependência que caracteriza o mundo contemporâneo e insiste em se distanciar do Haiti, persistindo em uma falsa superioridade em relação ao seu vizinho, em vez de investir em estratégias de colaboração que permitam a integração e legalização dos imigrantes haitianos. Isso envolve respeitar seus direitos como seres humanos e buscar soluções que promovam a superação da haitianofobia e a conscientização sobre o racismo, que prejudica os dominicanos negros que acabam sendo estrangeiros no seu próprio país, pois “confundidos” com haitianos. E, ao mesmo tempo, podemos nos perguntar: diante da constante violação dos direitos humanos dos migrantes haitianos na República Dominicana, que medidas reais o sistema internacional tem tomado para exigir igualdade e justiça por parte daquele Estado?
Judeline Exume, mulher negra haitiana, residente no Brasil desde 2015, possui mestrado no Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Foz do Iguaçu. É atualmente doutoranda no mesmo programa. E-mail: [email protected].
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O Haiti como prisma para a compreensão do passado e do presente
Nesta série especial, apresentamos estudos e reflexões sobre o contexto haitiano a partir de diferentes perspectivas (filosófica, histórica, política internacional, cultural, das migrações, etc.). E elas são tão variadas quanto os campos que reúnem os pesquisadores do grupo de pesquisa Haiti: descolonização e libertação – estudos contemporâneos e críticos. Registrado junto ao CNPq e sob a liderança da UNILA, o grupo reúne pesquisadores de diferentes instituições interessadas em investigar as lutas populares por soberania, o pensamento haitiano no contexto caribenho, continental e mundial e as migrações e a cooperação internacional.
Recentemente, o grupo publicou o livro Haiti na encruzilhada dos tempos atuais: descolonialidade, anticapitalismo e antirracismo [de acesso aberto e disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/haiti-na-encruzilhada-dos-tempos-atuais-descolonialidade-anticapitalismo-e-antirracismo/] Os capítulos publicados nessa obra são um esforço desse coletivo, que inclui pesquisadores haitianos, que se interessa e se compromete a contribuir com o conhecimento da sociedade brasileira e regional acerca da realidade haitiana, contra as intervenções estrangeiras e pelo reconhecimento da autonomia e soberania do povo haitiano. Os artigos publicados nesta série pretendem apresentar ao público brasileiro alguns achados dessas pesquisas.
Confira a seguir a relação completa de artigos da série seguida da sua data de publicação:
- Revolução, patrimônios difíceis e dignidade no Haiti, por Loudmia Amicia Pierre Louis (publicado em 8 de abril de 2025)
- Intervenções dos Estados Unidos no Haiti: a continuidade da violência sob o pretexto de paz, por Tadeu Morato Maciel e Sarah Rezende Pimentel Ferreira (publicado em 15 de abril de 2025)
- Triste lembrança e memória colonial da escravidão, tripla dívida da independência nacional, por Vogly Nahum Pongnon (publicado em 22 de abril de 2025)
- Movimento popular, mulheres, revolução haitiana e história da libertação latino-americana, por Carlos Francisco Bauer (publicado em 29 de abril de 2025)
- A cooperação internacional e o Haiti: assistência ou ingerência?, por Marina Bolfarine Caixeta e Roberto Goulart Menezes (publicado em 6 de maio de 2025)
- Soberania comunitária haitiana: alternativa contra o arranjo realista-liberal do Conselho de Segurança, por Renata de Melo Rosa (publicado em 13 de maio de 2025)
- O Movimento Constitucional Haitiano de 1801 a 1816 como precursor de um Constitucionalismo Emancipatório Amefricano, por Maria do Carmo Rebouças dos Santos (publicado em 20 de maio de 2025)
- A comunidade migrante acadêmica haitiana na República Dominicana, por Judeline Exume (publicado em 27 de maio de 2025)
- Colonialidade sem branquitude: entre dilema e desafio da integração do Haiti no Sistema-Mundo neocolonial, por Samuel Morancy (publicado em 3 de junho de 2025)