A comunidade trans na Argentina
Há alguns anos, o novo presidente argentino, Mauricio Macri, comparou a homossexualidade a uma doença.Atualmente, seu tom é outro: ele sabe que os doze anos (2003-2015) da esquerda no poder transformaram o país, em especial no que diz respeito às identidades civis e sexuaisAngeline Montoya
Hoje é um dia de reparação. […] Desculpem por terem esperado tanto.” Essas palavras, pronunciadas no dia 2 de julho de 2012 por Cristina Fernández de Kirchner, então presidenta da Argentina, movimentaram a comunidade trans. A mandatária se referia à primeira cédula de identidade que estabelecia uma mudança de gênero: uma pessoa “atribuída como homem” no nascimento reivindicou ser registrada como “mulher”. Esse procedimento passou a ser permitido pela lei da identidade de gênero, votada no dia 9 de maio de 2012 pelo Senado (com 55 votos a favor e uma abstenção).
Na rua, nenhum protesto. Num país onde mais de 80% da população se define como católica, a Igreja praticamente não interveio nos debates. Em janeiro de 2015, Diana Sacayán,1 funcionária do Ministério do Desenvolvimento Social, que seria assassinada em outubro, relembrava a cerimônia de 2012: “Antes, o Estado nos perseguia. Hoje, nos pede perdão”.
A lei reconhece o direito de toda pessoa se autodefinir como homem ou mulher, independentemente do sexo que lhe foi “atribuído” no nascimento. Assim, tornou-se possível modificar, com uma simples declaração civil, o nome, o sexo, a foto da carteira de identidade e da certidão de nascimento. Tudo isso sem precisar justificar-se, passar por avaliações psicológicas ou bisturis de cirurgiões – como é exigido na França.
Muitos escolhem manter seus órgãos genitais de nascimento e preferem definir-se como “trans” a como homem ou mulher. A obrigação inscrita na lei argentina de escolher entre um e outro sexo é contestada por algumas pessoas, como Marlene Wayar, militante trans de 46 anos. “Não quero me definir como mulher”, explica. “Modificarei minha carteira de identidade quando puder escolher ‘trans’ ou qualquer outra opção que corresponda à minha experiência.”
“A vitória era chegar em casa vivo”
Ainda que imperfeita na visão de alguns, a lei é quase unanimidade na comunidade trans. Ela prevê, por exemplo, que o Estado custeie integralmente um eventual tratamento hormonal ou uma operação de mudança de sexo; também autoriza menores a modificar seu estado civil, com o aval dos pais. Foi assim que no dia 9 de outubro de 2013 a pequena Luana se tornou, aos 6 anos, a primeira criança a receber seus documentos com a nova identidade de gênero. Três anos após a promulgação da lei, os progressos se revelam consideráveis na vida cotidiana. “Comprar um celular, ir ao banco, realizar qualquer procedimento administrativo e ser chamado em voz alta por seu nome de nascença quando a aparência não corresponde é um drama. Hoje é diferente: apresentamos nossa carteira de identidade e acabou”, explica Lohana Berkins, da Associação de Luta pela Identidade Travesti e Transexual (Alitt). “Esse detalhe aparentemente insignificante tornou-se fundamental e começou a construir de modo mais forte entre nós a ideia de cidadania e democracia.”
As novas gerações, que não conhecerão essa transfobia cotidiana, “terão à disposição um leque de possibilidades que não tivemos”, acrescenta Berkins. “Vê-los passear na rua sem se esconder é encantador, enquanto nós não podíamos fazer isso livremente, a não ser com uma burca. A vitória era chegar em casa vivo.” Não depender mais da boa vontade de um juiz após um longo percurso de luta pelo reconhecimento legal da identidade escolhida também é visto como uma conquista. Desde 2012, 6 mil pessoas (em 41 milhões de habitantes) modificaram seus documentos.
A lei é suficiente para o avanço da situação dos trans? Segundo estudo da Alitt publicado em 2006, a expectativa de vida de uma pessoa trans não ultrapassa 35 anos. Primeira causa de morte: aids. Segunda causa: intervenções medicamentosas, como injeções de silicone, realizadas de forma artesanal em 90% dos casos. Mais de 80% dos trans não têm outra escolha de vida a não ser a prostituição. Esse índice, contudo, tem baixado à medida que o nível de educação aumenta: apenas 33% dos trans que têm diploma universitário recorrem à prostituição. Mas eles representam só 2% da comunidade. Menos de 15% concluem o ensino médio. E 76% já sofreram violência por parte da polícia – a terceira maior causa de morte.
“Tenho 40 anos, sou uma sobrevivente”, constatava Sacayán antes de seu assassinato. “Dos quinze anos em situação de prostituição, desde que saí de casa, aos 13, passei pelo menos cinco na prisão. Às vezes, ficávamos duas semanas presas, eles nos soltavam e no dia seguinte nos prendiam outra vez, invocando os decretos policiais, hoje anulados, que proibiam travestis.” Maus-tratos, violência, estupros – ela contava esses casos apenas por fragmentos, pois preferia ressaltar o que a lei modificara para ela: “Finalmente tenho a impressão de ter uma pátria. A bandeira argentina me acolhe e me protege”. Sacayán foi assassinada a punhaladas no dia 13 de outubro.
A votação da lei também implica várias evoluções institucionais: mais ministérios agora possuem suas secretarias de gênero, diversidade sexual ou seu “guia de boas práticas” em relação às pessoas LGBTQI (lésbicas, gays, bi, trans, queer, intersex). O Ministério do Trabalho, por exemplo, assina acordos com centros educativos para a inclusão de pessoas trans; subvenciona estudos, reembolsa durante um tempo parte dos salários ou de encargos sociais quando contratados. Trabalha também junto a uma intersindical de oitenta organizações para a introdução de cláusulas de não discriminação nas convenções coletivas. Em setembro de 2015, um projeto de lei foi adotado pelo Parlamento da Província de Buenos Aires, impondo uma cota de 1% de trans entre os funcionários.
Menos de 15% das pessoas trans terminaram o ensino secundário. Para tentar remediar essa situação, uma escola de preparação para a faculdade voltada para trans foi criada em 2012 graças a uma iniciativa privada: a escola Mocha-Celis. “Queríamos proporcionar um lugar para que as pessoas trans que não puderam chegar a esse patamar dos estudos não se sentissem discriminadas”, explica Francisco Quiñones, o diretor, que afirma que os estudantes trans, contudo, somam menos de 40% da escola.
A primeira turma de vinte estudantes recebeu o diploma em 15 de setembro de 2014. Pablo Gasol estava entre eles. “Essa escola me deu a possibilidade de ser eu mesmo”, declara o autor e diretor de teatro de 30 anos. Outras iniciativas se seguiram, como a da Universidade Nacional de Avellaneda, com um programa que permite aos trans terminar o ensino fundamental e médio e depois continuar na faculdade.
Como explicar que um país católico legalizou, pouco a pouco e praticamente sem debate, o casamento entre pessoas do mesmo sexo (2010), o reconhecimento do direto à identidade de gênero (2012) e a reprodução assistida por medicamentos para todas as mulheres (2013)? Advogado e membro da Frente Nacional pela Identidade de Gênero, Emiliano Litardo ensaia uma explicação: “Na Argentina, nos últimos trinta anos, as ‘avós da Praça de Maio’ construíram a ideia de que a identidade é um direito humano”, explica. “O movimento pela diversidade sexual se inspirou nesse combate, dando-lhe outro significado: o que as avós enxergam como identidade em termos biológicos e essencialistas, os trans interpretam como uma construção social e uma escolha pessoal”, completa.
Desde o fim da ditadura (1976-1983), as avós da Praça de Maio buscam as pelo menos quinhentas crianças roubadas pelos militares e criadas sem que soubessem quem eram seus verdadeiros pais. A luta se deu, em um primeiro momento, sem nenhum apoio institucional: os sucessivos presidentes concentraram-se mais em votar leis de anistia do que em esclarecer os crimes cometidos. À medida que o tempo passou e as crianças cresceram, a estratégia mudou: no início dos anos de 1990, as avós passaram a procurar e a dirigir-se a adultos por meio de cartazes e chamadas que os interpelavam diretamente: “Tem dúvidas sobre sua identidade? Contate-nos”. Uma Comissão pelo Direito à Identidade foi criada em 1992 e assim se construiu a ideia da identidade como um direito, pouco a pouco apropriada por diversos coletivos, como os povos indígenas. E por Néstor Kirchner, que desde sua chegada ao poder, em 2003 (sua esposa Cristina Fernández o sucedeu em 2007), defendeu os direitos humanos e a punição dos crimes cometidos durante a ditadura como pilares de seu governo. As leis de anistia foram anuladas e centenas de militares foram parar nos tribunais.
O reconhecimento, por Cristina Fernández, da responsabilidade do Estado na transfobia fez, dessa forma, eco à demanda de perdão de seu esposo e predecessores pelos anos de chumbo da ditadura. E essa estratégia política do recurso à identidade como um direito chegou aos parlamentares. “As avós colocaram o direito à identidade no centro do sistema normativo argentino, no sentido legal, mas também moral”, observa Mauro Cabral, codiretor da Global Action for Trans* Equality (Gate).
Para ele, a dificuldade de exportar a experiência argentina se explica pelo fato de esse direito não ser percebido da mesma forma em outros países. “A Noruega ou a Holanda, por exemplo, aparecem como os campeões dos direitos LGBT, mas a esterilização dos trans é exigida em quase vinte países europeus”, observa Cabral. “Deveria ser possível exportar essa retórica da identidade como um direito, mas esses países não têm o hábito de importar ideias. Não hesitam em apontar o dedo para os países do Sul, mas têm grande dificuldade de admitir que suas próprias políticas também contêm atentados aos direitos humanos.”
A legalização do aborto?
Os avanços dos direitos das minorias sexuais também foram facilitados pelo fato de que não abalam a dominação masculina – ao contrário da legalização do aborto, sempre criminalizado, que daria mais autonomia às mulheres. “O macho argentino continua lá. Está apenas escondido em seu covil, para quando evocarem os direitos das mulheres, em particular o aborto, sair de lá e mostrar as garras”, resumia Sacayán. O sociólogo Eric Fassin vê nesses grandes avanços promovidos por países que proíbem o aborto (Malta adotou uma lei similar em abril) uma “forma econômica de parecer moderno”.2
Além disso, se Kirchner (falecido em 2010) era um defensor dos direitos LGBTQI, Cristina Fernández martela sua oposição à legalização do aborto,3 o que parece ter servido de moeda de troca entre a Igreja e o governo. A cada avanço legislativo sobre o direito das minorias sexuais ou reprodutivos, correspondia uma mensagem tranquilizadora do Poder Executivo garantindo que a lei de criminalização do aborto não seria modificada. E se o aborto sempre foi considerado pela classe política um piantavotos (espanta votos), é exatamente o inverso para a defesa dos direitos de minorias sexuais: homens e mulheres da política rivalizam para ver quem se mostra mais aberto a essas questões.
A luta dos trans para poder viver normalmente está longe de chegar ao fim. Além do fato de a transfobia e a violência continuarem impregnadas na sociedade, inúmeras leis fundadas sobre a diferença sexual ainda precisam ser modificadas. “Será que um homem trans terá direito à licença-maternidade?”, questiona-se Berkins. De fato, em fevereiro, um trans que conservou seus órgãos reprodutores femininos obteve um subsídio para a gravidez, enquanto seus documentos indicavam que ele era homem. Ademais, um projeto de lei visa atribuir uma pensão às pessoas vítimas de violência policial em razão de sua identidade de gênero. Também nesse aspecto, os militantes trans se inspiraram nas pensões atribuídas aos ex-prisioneiros políticos da ditadura.
Os trans continuam, assim, o caminho em direção à inclusão. “Mas não podemos esquecer que a legislação do aborto é o próximo grande combate a ser travado na Argentina”, sublinhava Sacayán. “As feministas nos apoiaram, e já é tempo de retribuir para a luta delas.” E desde já não há dúvida de que uma lei que descriminaliza a interrupção voluntária da gravidez (IVG) não falará de “mulheres grávidas”, e sim de “pessoas capazes de conduzir uma gestação”, para incluir os homens trans. Esses termos já apareceram dessa forma em um texto publicado em abril de 2015 pelo Ministério da Saúde.
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BOX
Travesti: designa uma pessoa dotada de vestimentas e aparência tradicionalmente atribuídas ao outro sexo.
Trans: pessoa cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo “atribuído” a ela no nascimento e inscrito em seu documento civil. Em outros tempos chamadas “transexuais”, as pessoas trans recusam essa designação: não se trata de sexualidade, mas de identidade, argumentam. Por isso, preferem o termo “trans”.
Identidade de gênero: a maneira como o indivíduo se percebe e deseja ser reconhecido. As identidades de gênero não são binárias. Suas variedades podem ser definidas pelas iniciais LGBTQI: lésbicas, gays, bi, trans, queer (“estranho”, “bizarro”, não se reconhecem em categorias binárias de sexo), intersex (cujos órgãos genitais não são masculinos nem femininos).
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Angeline Montoya é jornalista em Buenos Aires.