A Covid-19 e alguns retratos da internacionalização do ensino superior
Para além das três missões tradicionais da educação superior – ensino, pesquisa e extensão –, uma quarta missão emergente na literatura nacional e internacional, talvez tenha sido o escopo de atuação mais afetado nas universidades pela pandemia de Covid-19: a internacionalização. E o que mais demorará a se recuperar e a retomar a intensidade de patamares prévios à crise…
Discentes estão em casa, professores estão em casa e as aulas agora são ministradas por videoconferência – ou foram canceladas. A pandemia de Covid-19 impôs novas realidades e limites ao contato social tradicional do ensino superior, no Brasil e no mundo. Além das classes terem sido afetadas, diversos serviços e organismos que têm sua vida ligada ao movimento de estudantes, como bibliotecas, restaurantes universitários, papelarias, bares e ambulantes, estão parados ou tiveram forte impacto negativo em seu dia a dia.
É nesse contexto que as três missões tradicionais do ensino superior – o ensino, a pesquisa e a extensão – sofreram transformações substanciais. No Brasil, ainda que algumas universidades tenham optado por seguir seu calendário com cursos na modalidade online, muitas interromperam completamente suas atividades. De acordo com o portal Coronavírus – Monitoramento das Instituições de Ensino Superior do Ministério da Educação (MEC), de um total de 41 institutos federais de ensino superior, 31 estão com atividades suspensas. Além disso, das 69 universidades federais, 60 suspenderam encontros presenciais. De maneira mais abrangente, começou a ocorrer um intenso debate a respeito da viabilidade do ensino à distância (EAD), desta vez para cursos que até então eram majoritariamente presenciais. Algumas universidades levantaram a bandeira da internet e da manutenção das atividades remotas, ressaltando que tudo seria mantido conforme a programação. Em contrapartida, outras julgaram tal realidade ser um tanto quanto inviável. Online ou em meio a cancelamentos, entre institutos e universidades paralisados, mais de 1,5 milhão de discentes foram afetados.
Assim, na medida do possível, o ensino migrou das salas de aula para aplicativos de videoconferência ou, na maior parte dos casos de organismos federais, foi suspenso. A pesquisa teve laboratórios fechados, projetos interrompidos temporariamente e, majoritariamente em cursos das áreas de Saúde e Ciências Biológicas, muitos pesquisadores e recursos estão sendo destinados agora à atuação contra a pandemia de Covid-19. Talvez as áreas de Humanas e Sociais Aplicadas foram as menos afetadas, pois inúmeras investigações ainda podem ser feitas em casa e com acesso a bases de dados e bibliotecas digitais. Por fim, a extensão universitária foi fortemente inviabilizada pelo simples fato de não poder interagir e realizar ações in loco nas comunidades ligadas às instituições de ensino superior. Com campi fechados e pessoas em isolamento, a interação entre discentes, docentes e o público externo tornou-se praticamente impossível, salvo exceções de realização de cursos e eventos remotos em geral.
A questão da internacionalização do ensino superior
Para além das três missões tradicionais da educação superior, uma quarta missão emergente na literatura nacional e internacional em Educação, Relações Internacionais e Gestão Universitária, a internacionalização, talvez tenha sido o escopo de atuação mais afetado nas universidades – e o que mais demorará a se recuperar e a retomar a intensidade de patamares prévios à pandemia de Covid-19. Voos internacionais foram reduzidos e mesmo suspensos, fronteiras foram fechadas, universidades parceiras no exterior também estão com atividades paralisadas e congressos, simpósios, seminários e feiras internacionais foram cancelados. Alunos em mobilidade, doutorandos em sanduíche e pesquisadores/professores visitantes estão “presos” no exterior. Ainda que o retorno às salas de aula no curto prazo pareça uma realidade distante, percorrer milhares de quilômetros, embarcar em voos internacionais e realizar encontros científicos com pessoas vindas de todo o mundo aparentam ser realidades mais longínquas ainda.
É válido destacar que não somente eventos internacionais têm sofrido impactos, até mesmo os de escala local, regional ou nacional estão sendo inviabilizados presencialmente. A título de curiosidade e informação, na área de Relações Internacionais, a International Studies Association (ISA) cancelou dois eventos, que ocorreriam nos Estados Unidos (Havaí) e no Marrocos nos próximos meses, enquanto a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI) postergou seu seminário de pós-graduação para novembro de 2020 e o mesmo ocorrerá no formato virtual.
Nos últimos anos, a internacionalização do ensino superior ganhou um novo impulso, sendo considerada a “quarta missão da universidade”. Trata-se de uma palavra ou até mesmo conceito amplo, plural e multifacetado, podendo ser classificado como “um conjunto de atividades, políticas e serviços que integram dimensões internacionais e interculturais no principal tripé universitário: ensino, pesquisa e extensão”. A partir disso, esse processo faz jus à realização de cursos, seminários, congressos, ciclos, mesas redondas, palestras que envolvem pesquisadores de diferentes nacionalidades, representa intercâmbio de investigadores e professores, corrobora o estabelecimento de convênios, bem como a abertura de centros de pesquisa, estudo de línguas e participação em redes internacionais ou até mesmo publicação de artigos e livros em co-autoria. Um dos seus principais componentes, porém, encontra-se na chamada mobilidade acadêmica, ou seja, o intercâmbio de estudantes nos mais variados níveis, desde a graduação até o doutorado.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para o ano de 2017, a mobilidade incoming no Brasil, isto é, a entrada de estudantes estrangeiros no ensino superior brasileiro, já era baixa quando comparada a outros países do mundo. Apenas 0,24% do total de estudantes matriculados no ensino superior nacional era composto por estrangeiros. Um número bastante inferior a países como Estados Unidos (5,2%), Portugal (6,4%) e Austrália (21,5%). Mesmo na América Latina, onde 0,75% dos estudantes era estrangeiro, o desempenho do Brasil encontra-se abaixo da média. A Argentina, por exemplo, recebe aproximadamente 4,5 vezes mais estudantes internacionais no ensino superior que o Brasil – pouco mais de 20 mil alunos internacionais estavam matriculados no ensino superior brasileiro em 2017; na Argentina estes chegavam a quase 90 mil.
Ademais e tratando-se especificamente da modalidade outgoing, ou seja, de estudantes ou pesquisadores brasileiros que estão ou desejam ir ao exterior, a pandemia da Covid-19 vem trazendo ao menos mais dois fatores limitadores, além dos efeitos já citados anteriormente. Em primeiro lugar, embora a alta do dólar tenha proporções globais, o real foi a moeda que mais se desvalorizou nos meses de fevereiro e março deste ano, caindo mais de 15% em relação à moeda estadunidense, havendo também uma desvalorização em relação a moedas europeias, como o euro e a libra esterlina. Considerando que, novamente de acordo com dados da Unesco de 2017, entre os dez principais destinos de estudantes brasileiros no exterior se encontram Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Itália, a queda do real é uma variável de forte impacto nesse processo. Segundo, o cancelamento de inúmeros voos e a desestabilização do setor aéreo representam outro caráter de limitação da mobilidade internacional. De acordo com dados do Ministério da Infraestrutura que cobrem o período de 1º de janeiro a 17 de abril de 2020, o Brasil reduziu sua malha aérea em 83%, além de ter deixado de operar cerca de 9 mil voos internacionais no último mês. Outros países como Estados Unidos, Reino Unido, Cingapura, Índia e Austrália tiveram reduções de 45%, 91%, 90%, 71% e 78%, respectivamente. No dia 28 de abril, o presidente dos Estados Unidos, segundo principal destino de estudantes brasileiros, atrás apenas da Argentina, Donald Trump citou o Brasil como um país que deve entrar na lista de restrições de viagens. Ou seja, o cancelamento de voos – domésticos e internacionais – atrelado ao fechamento de fronteiras alterou os planos de quem estava programado para fazer mobilidade ou de quem está no exterior realizando seus estudos.
Retratos da internacionalização
Procurando trazer depoimentos e relatos sobre estudantes internacionais que estão em mobilidade no exterior em meio à pandemia, conversamos com alunos, professores e autoridades acadêmicas que atualmente se encontram em países como Estados Unidos, Canadá, China, Reino Unido e no Brasil e, de alguma maneira, foram impactados pelos desdobramentos da pandemia de Covid-19. Esses relatos trazem um panorama sobre como as mobilidades incoming e outgoing e o processo de internacionalização acadêmica como um todo têm sido afetados.
A Comissão de Cooperação Nacional e Internacional (CCNINT) do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) afirma que os impactos causados pela pandemia são sem precedentes. Os trâmites burocráticos e postais que envolvem novos convênios e o recebimento/envio de alunos foram prejudicados e até mesmo interrompidos no IRI/USP. Dos 22 intercambistas matriculados na graduação do IRI-USP, apenas três permaneceram no Brasil. O CCNINT ainda cita que vagas de mobilidade internacional e bolsas da USP, do Santander Universidades e de programas Erasmus foram suspensas. “Devido à redução de bolsas, possibilidade de aulas online e incertezas quanto às viagens, haverá menos intercâmbios no próximo semestre e ajustes no período do intercâmbio”, nos contou a comissão.
Em Boston, o Instituto Tiradentes na University of Massachusetts – Boston, vinculado ao Grupo Tiradentes (Sergipe, Alagoas e Pernambuco) afirma que “toda operação que envolve o envio e o recebimento de alunos foi afetada e substituída por uma operação de contenção de riscos que passou a ser tratada como prioridade”. Alunos estrangeiros em mobilidade na unidade de Aracaju do Grupo Tiradentes foram afetados de diversas formas. “Alguns estavam em viagem pela América Latina e não puderam regressar ao Brasil”, outros foram convocados pelos seus países de origem e regressaram imediatamente. O instituto e o Grupo Tiradentes ainda destacam que existem alunos no exterior, em mobilidade outgoing, que não podem regressar ao Brasil por questões lindeiras e por limitações em voos internacionais.
De Macau, região administrativa especial (RAE) da China, o setor de Study Abroad and Exchange da Macau University of Science and Technology (MUST) nos informa que todas as atividades de internacionalização, como intercâmbio semestral e escolas de verão, foram canceladas e muitos eventos acabaram adiados. A universidade, que receberia cinco estudantes incoming em janeiro de 2020, recomendou que estes voltassem para seus respectivos países o quanto antes, anteriormente à Organização Mundial da Saúde (OMS) classificar a Covid-19 como pandemia global. A MUST destaca que existem muitas incertezas sobre a situação futura. “Os números de estudantes incoming e outgoing definitivamente serão afetados.” Destacamos esta RAE da República Popular da China uma vez que, a cada seis estudantes internacionais do mundo, um é chinês e estes gastam aproximadamente US$ 30 bilhões por ano apenas em matrículas e mensalidades no exterior – o equivalente ao PIB da Estônia, do Nepal ou do Zimbábue, segundo o Banco Mundial para o ano de 2018.
Na Universidade de Ottawa, no Canadá, um pesquisador nos informou que a paralisação das atividades prejudicou o andamento das pesquisas, mesmo que os contatos virtuais tenham sido mantidos. Neste sentido, “ainda que alguns possam pensar que a necessidade de se manter em casa garantiria um maior tempo para o trabalho e, supostamente, maior produtividade, a situação parece revelar o contrário, mesmo estando sozinho. Isto é, o maior tempo de trabalho não se traduz em maior qualidade e rendimento”.
De modo complementar, outro investigador brasileiro ligado à American University, em Washington (DC) nos Estados Unidos, diz que as aulas online funcionam adequadamente, mas não se equiparam aos encontros presenciais. A socialização acaba sendo prejudicada e o contato entre estudantes de diferentes países sofre reveses. Em contrapartida, destaca-se a tomada de decisão rápida por parte da universidade logo no início da pandemia. Tal afirmação é corroborada por professora visitante da Universidade de Washington, campus Tacoma, também nos Estados Unidos. Segundo dados oficiais, o estado de Washington relatou a primeira morte por Covid-19 no dia 21 de janeiro de 2020, e em pouco tempo houve um surto respiratório na cidade de Seattle, o que acabou deixando as “autoridades locais apreensivas”. De modo complementar, o relato também nos mostra as ambiguidades do trabalho acadêmico nos tempos de pandemia, conforme elencado a seguir: “Meu local atual de trabalho, meu quarto, é também o local de descanso. Há dias em que após ter ficado na frente da tela do computador por horas, me sinto muito mal. Não parei a pesquisa, mas com certeza minha capacidade produtiva foi afetada pelo estresse. Notícias sobre a pandemia ainda não ajudam a melhorar essa situação, obviamente. Por essa razão, a pandemia em si tem também se tornado objeto de pesquisa.”.
Por fim, para um professor brasileiro de Estudos Europeus ligado à Universidade de Birmingham, no Reino Unido, sua pesquisa na área de humanidades não foi integralmente prejudicada. Contudo, ele complementa: “[…] conheço vários colegas brasileiros de outras áreas que foram impactados, impedidos de finalizar análises laboratoriais e sujeitos a acelerar seu retorno ao Brasil sem entregar a tese ou o finalizar seus compromissos de pesquisa”.
E o futuro?
Cada um à sua maneira, o impacto da pandemia na internacionalização do ensino superior já é evidente. A universidade é, por si, um locus de socialização, convivência e integração. E isso se revela por ser um âmbito de grande importância na formação de discentes e na atuação profissional de professores, servidores e técnicos administrativos. Em tempos de Covid-19, essa realidade é diametralmente alterada e, embora os encontros remotos e virtuais sejam medidas paliativas, restará esperar os próximos meses para retornar à normalidade. Aos poucos, ensino, pesquisa e extensão serão retomadas, e a internacionalização seguirá o ritmo, talvez de maneira mais lenta pelos diversos motivos aqui apresentados. Esse é um momento crucial para reforçarmos investimentos em pesquisa e a cooperação internacional entre instituições de ensino superior para que possamos buscar soluções e condutas nestes tempos tão voláteis e incertos de pandemia.
Cairo Junqueira é professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS); e Rafael de Moraes Baldrighi é mestrando do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP)