A crise do neoliberalismo pede a construção de um feminismo anticapitalista
Em debate promovido pela editora Boitempo, a filósofa italiana Cinzia Arruzza e a escritora indiana Tithi Bhattacharya falam sobre o impacto desproporcional da pandemia na vida das mulheres, a necessidade de superar o feminismo liberal e a urgência de articulações anticapitalistas
A atual crise do neoliberalismo pede a construção de um feminismo anticapitalista. Esse é o tópico central da análise apresentada no manifesto Por um feminismo para os 99%, escrito por Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser. A obra foi publicada no Brasil em 2019 e, ao longo do mês de março, deu o tom e o nome ao ciclo de debates promovidos pela editora Boitempo com o apoio do Le Monde Diplomatique Brasil.
No último dia 17, a editora transmitiu em seu canal no Youtube a conversa entre a filósofa Cinzia Arruzza e a escritora Tithi Bhattacharya, no qual discutiram sobre a obra, a crise no neoliberalismo com a Covid-19, a necessidade de um feminismo anticapitalista e a mobilização coletiva nos momentos difíceis.
Cinzia, professora associada de Filosofia na New School for Social Research, em Nova York, abriu o debate apontando que a crise internacional que vivemos não é apenas econômica e política, mas sim uma crise do sistema – abrangendo a reprodução social e a legitimidade das bases do liberalismo. Porém, esse processo de instabilidade e tensão que aparentava ser de médio prazo, foi acelerado pela pandemia de maneiras inimagináveis.
Mulheres são as mais afetadas pela pandemia
“A pandemia disse ao mundo o que as feministas já sabiam: as mulheres – especialmente as imigrantes e racializadas – têm um papel desproporcionalmente importante na manutenção da sociedade”, afirmou Tithi Bhattacharya, que é professora associada na Universidade de Purdue, em Indiana (Estados Unidos). Os últimos meses foram marcados pelo aprofundamento da desigualdade de gênero de diversas maneiras ao redor do mundo, e esses dados reverberam de forma gritante no Brasil.
Entre os tópicos apontados, Cinzia chamou a atenção para o aumento do desemprego e da carga de trabalho doméstico entre as mulheres. No Brasil, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a atual taxa de mulheres no mercado de trabalho é a menor dos últimos 30 anos (45,8%) e o desemprego feminino representa um índice 37,8% superior em comparação ao masculino. Além do diferencial histórico de empregabilidade entre os gêneros, a pandemia afetou de forma intensa setores com maior participação das mulheres – como serviços, alojamento e domésticos. Quando feito o recorte racial, os dados são ainda mais drásticos: 58% das desempregadas são negras (dados do relatório por Gênero e Número ea Semprevida Organização Feminista (SOF)).
A queda da ocupação feminina, porém, não quis dizer menos trabalho não remunerado em casa, seja para as desempregadas ou para aquelas que puderam fazer home office. A ideia da jornada tripla – cuidar da casa, dos filhos e do trabalho – intensificou-se na pandemia. Uma pesquisa do Datafolha em agosto de 2020 apontou que 57% das mulheres que passaram a trabalhar remotamente dizem ter acumulado a maior parte dos cuidados domésticos, enquanto entre os homens esse percentual cai para 21%. Nesse mesmo período, 50% da mulheres brasileiras passaram a cuidar de alguém na pandemia e 36% das mães deixaram de procurar emprego.
O feminismo liberal está falido e é preciso superá-lo
Uma das grandes preocupações com o movimento feminista na atualidade, segundo as autoras, é a sua cooptação por forças liberais de maneira fantasiosa. Vários movimentos vêm sendo feitos nesse sentido nos últimos anos por meio de uma política de representatividade que não corresponde a nenhuma mudança concreta. “O feminismo liberal está falido e nós precisamos superá-lo”, alertou Cinzia.
Tithi lembrou que, em meio à crise global que atravessamos, as próprias estruturas capitalistas oferecem “soluções” – e cada vez mais elas envolvem estratégias vazias. Ela cita alguns exemplos norte-americanos: entre as cinco maiores empresas militares do país, quatro têm mulheres como CEOs. Nos últimos meses, o presidente Joe Biden nomeou doze mulheres para a direção de ministérios – sendo oito delas não brancas.
A escritora aponta que casos como esses são a marca de um feminismo de classe gerencial em que uma minoria de mulheres privilegiadas escala escadas corporativas nos negócios, na política e no militarismo; enquanto a grande maioria – especialmente composta por não brancas, LGBTs, migrantes, pobres e trabalhadoras – não absorvem qualquer benefício concreto disso. “Por décadas, um novo feminismo liberal se colocou como bem sucedido à custa da exploração do trabalho dessa maioria”, declarou. Afinal, quando uma mulher é escolhida para encabeçar um cargo dedicado a minar a vida dessa vasta maioria de mulheres, isso não é empoderamento.
Essa frequente instrumentalização da linguagem e de ideais advindos dos movimentos provocam o esvaziamento de conceitos importantes – como da própria representatividade em si – e desconecta as pautas da política real e de uma visão de mundo coletiva. “O combate ao feminismo liberal se faz ainda mais necessário nos dias de hoje do que quando o manifesto foi escrito”, afirmou Cinzia.
O que aprendemos com a pandemia?
Para Tithi, a pandemia deixou duas coisas claras. A primeira é que o capitalismo, quando forçado, tem o poder de realizar ações comumente negadas com a desculpa da falta de recursos – casos como ampliação do sistema de saúde, auxílio financeiro para aqueles que se encontram em dificuldade etc. A segunda é que a lógica de acumulação não acabou durante a pandemia: as ações foram tomadas não para o bem das pessoas, mas para que elas pudessem voltar ao trabalho e à produção de lucro o mais rápido possível. “Por isso precisamos articular um projeto anticapitalista mais amplo. Não podemos fazer apenas reivindicações, as demandas devem ter seu objetivo e estrutura estabelecidas no anticapitalismo”, conclui a autora.
Cinzia se refere a algumas mobilizações dos últimos meses como a esperança do futuro dos movimentos contra o capitalismo: as feministas argentinas pelo aborto, os protestos das polonesas contra o governo ultraconservador e a mobilização em massa nos Estados Unidos pela causa antirracista. Segundo a autora, elas mostram que ainda é possível se organizar mesmo na adversidade: “a pandemia fez a mobilização política mais difícil, mas também mais necessária. Nossa saída é a união de mobilizações sociais em forma de demandas públicas anticapitalistas, antirracistas e feministas”, conclui.
Samantha Prado faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil
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