A cruzada de Sarkozy
O reingresso da França no conselho militar da Otan é um dos indícios de que sua política externa não é mais a mesma. Se os presidentes anteriores se esforçavam em não dividir o mundo em dois – capitalistas e comunistas, ocidentais e orientais –, o atual é um entusiasta da cruzada norte-americana contra o terror
Era quase rotineiro: a França elegia um presidente e, um ano depois, um jornalista fazia o balanço de sua gestão e constatava a manutenção da política externa. Esse foi o consenso imposto em 1958 por Charles de Gaulle e seguido pelos governos que lhe sucederam, tanto de esquerda como de direita. Mas com a eleição de Nicolas Sarkozy alguma coisa mudou. E o presidente, aliás, gaba-se disto: a política estrangeira faz parte de sua vontade geral de renovação. Mas o que há de ruptura e de continuidade?
Nunca, desde os primórdios da V República1, as decisões estiveram tão concentradas nas mãos de um homem só, que nutre profundo desprezo pelo Ministério dos Assuntos Estrangeiros e Europeus. Ao seu redor, existem três grupos competindo para aconselhá-lo: em primeiro lugar, alguns zelosos intelectuais, jornalistas e homens de negócios, profundamente pró-americanos e que procuram influenciar as escolhas do presidente durante encontros informais, como almoços e jantares. Presentes em diversas instituições do Estado, eles se apóiam em um grupo de “jovens ideólogos” que defende que a França, assim como Israel, pertence a um campo ocidental confrontado a múltiplas ameaças, que vão da Rússia à China passando pelo Islã. Para eles, “a política árabe da França“, na melhor das hipóteses, não passou de uma ilusão e, na pior, foi uma traição dos ideais do Ocidente. Não acreditam em uma articulação nacional e estão prontos a sacrificar, sem peso na consciência, empresas francesas como a Peugeot-Citroën e a Renault no altar do combate ao “perigo persa”. Integrantes da União pela Maioria Presidencial (UMP), coalizão que reúne os três principais partidos de centro-direita, seu programa pode ser resumido pelo título de um livro do ex-primeiro ministro Edouard Balladur: Por uma união ocidental entre a Europa e os Estados Unidos2.
O segundo círculo é formado pelos herdeiros da política tradicional gaullista e está secundarizado em relação ao primeiro, apesar da ascendência de um de seus líderes, Henri Guaino, a “conselheiro especial” do presidente. Cortados do Ministério dos Assuntos Estrangeiros e Europeus, eles tentam resistir à sua marginalização e se apóiam em certas empresas pouco interessadas em sacrificar seus investimentos em prol de uma política norte-americana imprevisível.
Há, enfim, um terceiro grupo, o dos técnicos, que, em torno de Jean-David Levitte, conselheiro diplomático do presidente, gere com pragmatismo cada questão internacional e atenua, quando pode, os impulsos do chefe de Estado.
Com base nos discursos de Sarkozy, podemos afirmar que a primeira corrente domina. Coerente e sem complexos, essa linha ideológica quer a ruptura com a prática da ladainha diplomática. Dois princípios a estruturam: o pertencimento ao Ocidente e a aliança assumida com os Estados Unidos. “Até o presente, a utilização do termo ‘Ocidente’ nas notas e relatórios oficiais era proscrito. Desde a eleição de maio 2007, porém, ele tornou-se um dos termos-chave do sarkozysmo”, explica um diplomata3. Isso ficou claro já em seu primeiro grande discurso sobre a política externa, em 27 de agosto de 2007, quando utilizou sete vezes o termo “Ocidente” ou “ocidental”, especialmente para advertir sobre os riscos de um confronto com o Islã.
Essa adesão ao Ocidente é acom-panhada de uma vontade declarada de acabar com aquilo que alguns chamam de “antiamericanismo”. “Não compreenderemos quem é o presidente se não tivermos a medida de sua fascinação pelos Estados Unidos. É ela que dita seus posicionamentos, destacadamente seu engajamento em favor de Israel. Ele está convencido de que é nos aliando aos Estados Unidos que teremos peso na política internacional”, explica um analista.
Será que Sarkozy é “um neoconservador americano com um passaporte francês”4?Qual a amplitude da mudança em curso? A “tradição gaullista” ainda tem seu peso? Como explicar as “contradições” das escolhas feitas recentemente? Para responder a essas questões, é preciso fazer um balanço das ações do presidente. Quatro episódios, entre outros, permitem uma avaliação inicial: os relatórios conjuntos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e os Estados Unidos; as relações com a Síria e o Líbano; a questão nuclear iraniana; e o conflito israelo-palestino.
Foi durante uma reunião com todos os embaixadores franceses que Sarkozy explicitou seu plano de reintegração à Otan5: “Essa aliança atlântica, é preciso lembrar, é nossa. Nós a fundamos e somos um de seus principais contribuintes. Estou convencido de que é de interesse dos Estados Unidos que a União Européia reúna suas forças, racionalize suas capacidades e organize sua defesa de maneira independente. Eu gostaria que nos próximos meses nós avançássemos em direção ao reforço da defesa européia e à renovação da Otan. Os dois seguem juntos: uma Europa com defesa independente e uma organização atlântica na qual retomamos nosso lugar”.
A última cúpula da Otan, realizada em abril na Romênia, deu um passo gigantesco nessa direção quando o presidente -George W. Bush ratificou as idéias de Sarkozy. A etapa seguinte do processo acontecerá no próximo ano, com a celebração do sexagésimo aniversário da Otan e o retorno da França ao clã em uma reunião que será “dividida” entre Estrasburgo e Kehl, territórios francês e alemão.
Bruno Tertrais, da Fundação de Pesquisa Estratégica e integrante da comissão que elaborou o Livre blanc sur la défense et la sécurité nationale [Livro branco sobre a defesa e a segurança nacional], confirma: “A intenção de Sarkozy de juntar-se ao comando integrado da Otan comporta um componente ideológico forte: a França, fazendo parte da família ocidental, quer apenas retomar seu lugar natural. Para ele, anormal é a situação presente”.
O desejo de enterrar De gaulle
Desde 1987, sob o pseudônimo de Damien Beauchamp, um diplomata adepto do “novo caminho” escreve: “Essa ‘ortodoxia’ gaullista – à qual o general tinha horror, aliás – corre o risco de justificar a ‘petrificação’ de nossa política estrangeira. É preciso matar o pai para lhe ser fiel”6.No entanto, esse discurso tem poucas chances de convencer, tamanho o seu desprezo por elementos simbólicos. O pronunciamento de De Gaulle em Pnom Pen, em 1966, contra a guerra norte-americana no Vietnã, assim como o de
Dominique de Villepin em Nova York, em 2003, contra a invasão do Iraque, não apenas alargaram a in-fluência da França, como permitiram evitar uma divisão simplista do mundo em dois campos antagônicos, outrora “capitalista” e “comunista”, hoje “Ocidente” e “Islã”.
Em Londres, em 26 de março de 2008, o presidente Sarkozy exprimiu sua recusa de que “o mundo do século XXI fosse governado pelas instituições do século XX, deixando à margem as principais potências emergentes e seus 2,5 bilhões de habitantes”. Mas, contrariando suas próprias recomendações, ele apressou-se em manifestar sua boa vontade em relação a essa “instituição do século passado“, aumentando os esforços franceses no Afeganistão, exatamente no momento em que numerosos analistas estimavam que aquela guerra estivesse perdida. Na cúpula de Bucareste, ele anunciou a partida de centenas de homens suplementares para as zonas de combate. Para legitimar sua decisão, Sarkozy garantiu que a participação francesa permitiria uma mudança na direção da estratégia norte-americana naquele país, dando prioridade à reconstrução. Esse foi também o argumento utilizado por Tony Blair, ex-primeiro ministro inglês, para justificar o engajamento britânico no Iraque, com o “sucesso” que já conhecemos…
Mais grave, porém, é o presidente francês ter inscrito esse conflito no quadro do “choque de civilizações”. Em sua viagem ao Afeganistão em 22 de dezembro de 2007, ele declarou aos soldados franceses: “Vocês trabalham pela estabilidade do mundo, pois se o Afeganistão se transformasse em um Estado terrorista, nós todos pagaríamos um preço por isso”.Esse discurso, em conformidade com o de Bush, aponta o Afeganistão como a frente avançada da “guerra contra o terrorismo” e faz da Otan um instrumento “global” encarregado da manutenção da ordem ocidental.
Nas relações com o Oriente Médio, é importante destacar o endurecimento da política francesa em relação ao Irã, que desenhou-se entre 2004 e 2005, enquanto Jacques Chirac, então presidente da República, buscava restabelecer pontes com Bush após ter sido contrário à invasão do Iraque7. Apesar de sua forte desconfiança em relação aos dirigentes da revolução islâmica, Chirac não escondia sua inquietude diante dos riscos de uma escalada militar. Assim, em janeiro de 2007, ele deu uma entrevista esclarecedora para o International Herald Tribune, na qual observava que o fato de o Irã possuir uma ou duas bombas atômicas não era tão perigoso. “Onde o Irã jogaria essa bomba? Em Israel? Ela não teria completado 200 metros na atmosfera e Teerã já estaria arrasada8.”
Com a eleição de Sarkozy, o governo está em sintonia com os norte-americanos novamente. Desde a Conferência dos Embaixadores, o novo presidente denuncia como “inaceitável” um Irã dotado de arma nuclear e destaca “a absoluta determinação da França no caminho escolhido, aliando sanções crescentes, mas também abertura, caso o Irã escolha respeitar suas obrigações. Esse é o único meio que pode nos permitir escapar a uma alternativa catastrófica: a bomba iraniana ou o bombardeio do Irã”.
A posição suscitou uma crítica vívida do New York Times. O editorial de 30 de agosto de 2007, intitulado “No times for threats” [“Não é hora para ameaças”], não titubeou: “O presidente Nicolas Sarkozy fez, em seu primeiro grande discurso de política externa, um mau gesto, num mau momento, brandindo um possível uso da força contra o programa nuclear iraniano. Os Estados Unidos e seus aliados devem intensificar seus esforços para resolver os sérios perigos relacionados ao Irã por meio de negociações globais e pressões econômicas cada vez maiores, e não de ação militar”.
As propostas de Sarkozy desembocaram em uma postura francesa contrária ao Irã e na tentativa de impor sanções européias fora do quadro da ONU, às quais Chirac sempre se opôs. A estratégia foi um fracasso: Teerã ignorou as resoluções do Conselho de Segurança, continuou com seu programa de enriquecimento de urânio e diminuiu o controle da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Subordinando, segundo as resoluções de Washington, o diálogo com o Irã à suspensão do programa de enriquecimento – que, é bom lembrar, está em conformidade com o Tratado de Não-Proliferação (TNP) –, a França e a União Européia se privam de qualquer papel autônomo.
Outra abordagem seria possível. E a União Européia sabe disso porque em dezembro de 2003 conseguiu fazer com que o governo iraniano suspendesse seu programa de enriquecimento de urânio e assinasse o protocolo adicional ao TNP (que permite inspeções muito mais consistentes do AIEA). Tudo por meio do diálogo. Teerã respeitou esse compromisso até o início de 2005, quando renunciou a ele invocando a paralisia da Europa diante de um posicionamento intransigente de Washington, que insiste em ver nos árabes a encarnação do Mal.
Regularmente, há mais de duas décadas, os Estados Unidos e Israel predizem que o Irã terá armas nucleares dentro de dois anos. Em 17 de outubro de 2007, Bush declarou que era preciso impedir esse país de desenvolver “a capacidade e o conhecimento para fazer uma bomba atômica”. O que a França fará se a Casa Branca atacar preventivamente o Irã para impedi-lo de adquirir essa “capacidade” e esse “saber“? Quem definirá os termos de “capacidade” e de “saber”? Para os “ocidental-atlantistas” a resposta é obvia: está fora de questão romper com Washington, como Paris havia feito em 2003 no caso do Iraque.
O ataque israelense contra a Síria, em setembro de 2007, oferece uma prévia: a CIA publicou documentos, muito controversos, afirmando que o local atacado era uma base nuclear; em vez de condenar essa ação militar, de flagrante violação do direito internacional, a França apenas afirmou ser importante que “a Síria esclarecesse completamente suas atividades nucleares, passadas e presentes”.
Já em outros países, a interferência foi mais direta. Rodeado por dirigentes de todos os partidos políticos franceses e acompanhado de dezenas de jornalistas, Nicolas Sarkozy chegou a Beirute em 7 de junho para saudar o novo chefe de Estado, o general Michel Sleimane. O Líbano acabava de vivenciar uma crise que havia deixado o país sem governo durante seis meses. Mais uma vez, a mídia apressou-se em glorificar o papel de mediador de Sarkozy, a despeito do acordo entre a maioria e a oposição no Líbano ter sido
firmado sem a França.
É verdade que, quando chegou ao poder, Sarkozy herdou uma situação complicada: desde 2005, Jacques Chirac vinha confundindo os interesses de seu país com os da influente família Hariri9. Prova disso é que, ao final de seu mandato, Chirac se instalou em um soberbo apartamento parisiense pertencente a Saad Hariri. Excitado com a idéia de mostrar-se o oposto de seu predecessor, Sarkozy decidiu apagar esse episódio da história e apoiar a proposta de Bernard Kouchner, ministro dos Assuntos Estrangeiros e Europeus, de reunir em La Celle Saint-Cloud, em julho de 2007, todas as facções libanesas, incluindo o Hezbollah. Sem temer retaliações, foi além das críticas israelenses e americanas e das objeções dos “ocidental-atlantistas“, para quem a Síria – e seus aliados libaneses – constituem um pilar do “eixo do Mal”.
Com a crise política instaurada a partir de novembro do ano passado, quando o Hezbollah se sentiu ameaçado pelo governo e ocupou parte de Beirute, Kouchner multiplicou suas viagens ao Líbano, onde mantinha antigas relações políticas. Impaciente e convencido de que era possível resolver os problemas “de homem para homem”, o presidente francês enviou a Damasco o secretário-geral de governo, Claude Guéant, e seu conselheiro diplomático, Jean-David Levitte, sem informar Kouchner. A atitude impensada gerou enorme confusão. Como freqüentemente ocorre nesse tipo de negociação, em que se entrecruzam estratégias e interesses externos múltiplos (sírio e israelense, americano e iraniano, francês e saudita), o acordo sobre a eleição do presidente, que parecia iminente no início de dezembro, foi suspenso. Paris desistiu de interceder e deixou o campo livre para o Qatar, que assumiu o papel de mediador e encerrou a crise apenas em maio.
Esse pequeno país exportador de gás abriga a principal base norte-americana na região e mantém excelentes relações com a Síria, o Irã e também com a França. Além disso, abriga um escritório de representação israelense e cultiva contatos com o Hezbollah e o Hamas. O governo do Qatar conseguiu ser bem-sucedido onde Paris fracassou: na formação de um governo de unidade nacional. Sarkozy pagou um alto preço por sua falta de perseverança e sua leitura simplista do conflito, que desconsidera as realidades locais em prol de uma visão de enfrentamento com a Síria e o Irã.
Uma nova reviravolta nesse cenário ocorreu em 29 de maio, quando o presidente francês telefonou para seu colega sírio Bachar El-Assad e o convidou a ir a Paris para a cúpula da União pelo Mediterrâneo. Em nome da defesa dos direitos humanos, o Partido Socialista criticou a participação do chefe de Estado sírio na reunião, mas não disse nada sobre a presença dos presidentes egípcio e tunisiano ou do primeiro-ministro israelense. Os Estados Unidos também exprimiram suas reticências.
Poderíamos nos questionar sobre a coe-rência dessas escolhas. “Por que recompensar a Síria por seu papel na solução da crise libanesa e não fazer nada sobre o Irã, que demonstrou uma grande moderação nesse caso?”, interroga-se um diplomata árabe com posto em Beirute. Bem, o objetivo de Sarkozy era óbvio: levar Assad a romper com o Irã, algo totalmente irreal no contexto regional atual. Como dizia o general De Gaulle, é melhor não ir a um Oriente complicado com idéias simples, principalmente quando essas idéias são, na verdade, esquemas ideológicos elaborados em Washington por responsáveis que quase nunca colocaram os pés lá.
A aproximação com Israel é óbvia. Em 21 de novembro de 2007, o então porta-voz de Sarkozy, David Martinon, foi ao Conselho Representativo das Instituições Judaicas saudar a lua-de-mel entre França e Israel, que deveria estar no “coração da União Mediterrânea”. Empolgado, ele afirmou que as relações entre os dois países voltaram a ser como antes. Ou seja, como na guerra de junho de 1967, em que a França ajudou Israel a desenvolver a arma nuclear.
Desde 2004, Paris e Tel-Aviv experimentam uma grande aproximação, mas foi a saída de Chirac, suspeito de simpatizar com os árabes, que abriu caminho para o matrimônio. Assim, um jornalista do Haaretz saudou com alegria a eleição de um presidente francês que pensa que “a criação do Estado judeu é ‘o maior fato político do século XX’10, que se empenha a ajudar a travar o estabelecimento de um ‘Hamastão’ em Gaza e a jamais comprometer a segurança de Israel”. E concluiu: “Isso pode estar, ou não, ligado a seus ‘genes’ judeus11, mas Nicolas Sarkozy parece um dos nossos12”.
Reforço dos laços com Israel
Recusando qualquer denúncia de “ocupação” israelense na Palestina – termo que, aliás, desapareceu do vocabulário diplomático francês –, Sarkozy ratificou a política de boicote ao Hamas e aceitou deixar nas mãos dos Estados Unidos o processo de paz. Em 18 de julho de 2007, seu ministro dos Assuntos Estrangeiros e Europeus chegou a afirmar que o Hamas mantinha “contatos com a Al-Qaeda”.
A viagem do presidente francês a Is-rael em 22 de junho foi uma demonstração de que as relações entre os dois países se aprofundam. Enquanto as pressões são permanentes sobre a Autoridade Palestina, os laços bilaterais com os israe-lenses são reforçados, como se a ocupação não existisse, como se a colonização não avançasse e como se a repressão cotidiana fosse justificativa para o combate ao terrorismo.
Claro, às vezes Sarkozy se tolhe: ele havia planejado estar em Jerusalém durante o sexagésimo aniversário de Israel, mas preferiu adiar sua viagem para não exasperar ainda mais uma opinião árabe que tende a identificá-lo com a estratégia norte-americana. Além disso, em abril passado deu sinal verde para uma viagem a Gaza de Yves Aubin de la Messuzière, diplomata aposentado. O antigo diretor de África do Norte e Oriente Médio do Ministério dos Assuntos Estrangeiros foi encarregado por Sarkozy de entrar em contato com o Hamas. Mas, assim que o assunto saiu na imprensa, os Estados Unidos e Israel criticaram a iniciativa, e a corrente “ocidental-atlantista” se mobilizou para barrá-la, junto com o Conselho Representativo das Instituições Judaicas. O porta-voz do governo alegou, então, uma atitude “individual” de Messuzière,sem negá-la de fato. Vale lembrar que, se nos anos 1970 e 1980, a França tivesse apoiado posição a israelo-norte-americana de qualificar a Organização de Libertação da Palestina (OLP) como “terrorista” e não dialogasse com Yasser Arafat, talvez as negociações entre a OLP e Israel nos anos 1990 não existissem.
A política externa de Sarkozy pode ser classificada definitivamente como “de ruptura”? Ou ainda há indícios de continuidade? Não há uma resposta precisa para essas perguntas. Paris procura, por exemplo, manter boas relações com a China apesar da questão tibetana, e os discursos sobre a violação dos direitos humanos na Rússia são delegados a algum ministro ou subministro. Para poupar Moscou na cúpula de Bucareste, a França se opôs, pelo menos provisoriamente, à integração da Ucrânia à Otan. “Quem vai esquecer que o gás russo pode garantir o fornecimento de energia para a Europa e que a China é um mercado decisivo em uma crise financeira e econômica?”, destaca um antigo embaixador, exasperado pelo discurso “moralizador” dos “ocidental-atlantistas”. No entanto, a idéia de que essas duas potências, China e Rússia, representam uma ameaça ainda impregna o Livro branco sobre a defesa e a segurança nacional. Ao mesmo tempo, o papel dos Estados Unidos, seu intervencionismo bélico, sua recusa em ratificar muitos tratados internacionais e sua política monetária jamais são tratados como um “risco”13.
Nem sempre as mudanças da política externa são explícitas. Algumas vezes elas são impulsionadas por uma corrente “ocidental-atlantista” que avança nas sombras, repleta de idéias impopulares, até mesmo para o partido no poder. Seus representantes também se aproveitam do “vazio” intelectual: ninguém sabe como definir um projeto coerente, que retome e, ao mesmo tempo, transforme, a tradição fundada por De Gaulle de defender uma nação autônoma e um mundo que não seja partido em dois14.
Gestão politicamente ativa
Em 1º de julho, a França assumiu a presidência rotativa da União Européia. Animado com a queda-de-braço sobre a adoção de uma nova Constituição, o presidente francês se preparou para exercer uma gestão politicamente ativa, fundada em três focos: na defesa do continente, no Mediterrâneo e na luta contra a imigração clandestina e o terrorismo. O “não” irlandês ao Tratado de Lisboa significou um duro golpe nessas ambições, mas Sarkozy quer tentar manter o curso dos acontecimentos de qualquer maneira.
*Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).