A cruzada esquecida de Ratzinger
Nos comentários sobre a “demissão” do papa Bento XVI, um tom é dominante: ao deixar o trono com “coragem e bravura”, o soberano pontífice se conforma aos critérios da modernidade. No entanto, na América Latina, a lembrança que deixou o ex-cardeal Joseph Ratzinger continuará associada a um momento bem mais antigoMaurice Lemoine
(Papa Bento XVI em visita à Inglaterra em junho de 2012)
Retornemos aos anos em que dom Hélder Câmara, o arcebispo de Recife que encarnou a consciência dos católicos progressistas latino-americanos, fez a constatação que se tornou célebre: “Quando dou comida para os pobres, dizem que sou santo; quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista”. A miséria, o analfabetismo e a marginalização de dezenas de milhões de habitantes do continente provocaram a radicalização de um grande número de cristãos, assim como de certos membros da hierarquia. Num clima de aggiornamento, sob o pontificado de João XXIII e principalmente a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), o encíclico Populorum progressio trouxe, em março de 1967, o apoio de Roma às tomadas de posição do clero progressista, em particular o brasileiro.
De 26 de agosto a 6 de setembro de 1968, inaugurada por Paulo VI, a 2ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano se reuniu em Medellín (Colômbia). Durante a primeira assembleia, um jovem teólogo peruano, Gustavo Gutiérrez, apresentou um relatório sobre “a teologia do desenvolvimento”. Depois de ter afirmado que o continente era vítima do “neocolonialismo”, do “imperialismo internacional do dinheiro” e do “colonialismo interno”, o estudo reconhecia a necessidade de “transformações audaciosas, urgentes e profundamente renovadoras”.1 Essa profissão de fé marcou o ato de nascimento da “teologia da libertação”. Procedendo a uma leitura engajada do Evangelho, uma de suas convicções centrais é a de que existe, ao lado do pecado pessoal, um pecado coletivo e estrutural, quer dizer, uma organização da sociedade e da economia que causam o sofrimento, a miséria e a morte. No campo, nos bairros populares e nas periferias, uma geração de membros do clero se engajou concreta e politicamente ao lado dos mais desfavorecidos.
Normalmente fechada, a expressão dos bispos conservadores ficou ainda mais taciturna. Três polos de resistência se manifestaram: a Argentina e o Brasil, governados pelos militares, sem que os prelados tivessem se sensibilizado, e a Colômbia. Assim, o movimento para reconquistar o terreno perdido em Medellín colocou na linha de frente um homem desse país, Alfonso López Trujillo. Seu papel se ampliou quando, como bispo auxiliar de Bogotá, ele foi eleito secretário-geral do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em novembro de 1972, antes de se tornar seu presidente, até 1983. A partir de 1973, os dirigentes desse órgão denunciaram uma “infiltração marxista” na Igreja. Contudo, os teólogos da libertação repetiram muitas vezes: do marxismo, eles utilizavam somente os conceitos que lhes pareciam pertinentes – a fé no povo como artesão de sua história; alguns elementos de análise socioeconômica; o funcionamento da ideologia dominante; e a realidade do conflito social.2 O monsenhor López Trujillo se esforçou consideravelmente para bombardear essa corrente. E logo recebeu uma “mãozinha”: a ajuda do Vaticano.
Depois da morte de Paulo VI, foi o polonês Karol Wojtyla, que se tornou João Paulo II no dia 16 de outubro de 1978, quem presidiu a 3ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Puebla (México). Todos os países da região, exceto quatro, estavam submetidos a regimes militares. Enquanto os bispos confirmavam a “escolha prioritária pelos pobres”, o novo papa evitou qualquer tomada de posição com relação à Igreja latino-americana. Mas também se absteve de denunciar os governos ditatoriais. Marcado por sua experiência em um país do bloco do Leste, ferozmente anticomunista, ele adotou uma leitura simplista dos acontecimentos e, em 1981, chamou a Roma um teólogo alemão com o qual estabeleceu relações pessoais, o cardeal Joseph Ratzinger, que se tornou delegado da Congregação pela Doutrina da Fé – a antiga Inquisição.
Tendo como única experiência de campo um ano de vicariato em uma paróquia de Munique, o novo “ideólogo-chefe” se tornou o melhor apoio do monsenhor López Trujillo (que se uniu a ele, em 1983, como membro da dita Congregação). Em um clima de guerra fria, a Nicarágua em particular se tornou uma espécie de “modelo polonês”, onde a hierarquia foi chamada à resistência aberta contra o regime sandinista – de inspiração tão cristã quanto marxista –, e uma parceria informal se estabeleceu entre o Vaticano e os Estados Unidos.
Durante uma conferência pronunciada no Vaticano, em setembro de 1983, Ratzinger proferiu uma condenação violenta: “A análise do fenômeno da teologia da libertação mostrou claramente um perigo fundamental para a fé da Igreja”.3 Ele observa: “O mundo passa a ser interpretado sob a luz do esquema da luta de classes. […] O ‘povo’ se torna assim um conceito oposto ao de ‘hierarquia’ e antitético a todas as instituições qualificadas como forças de opressão”. Anteriormente, o Grande Inquisidor tinha dirigido ao episcopado peruano um documento de dez pontos sobre o trabalho do padre Gutiérrez, antes de obrigá-lo a “revisar” suas obras, em um processo digno do de Galileu. Em março de 1985, foi sobre a obra Igreja: carisma e poder, do franciscano brasileiro Leonardo Boff, que sua fúria se abateu. Excluído da editora que dirigia, o padre Boff se viu proibido de ensinar e de tomar qualquer posição política publicamente. Em um país – o Brasil – que estava saindo de vinte anos de censura militar, essa sanção provocou indignação.4
Diante da amargura que provocaram essas decisões, João Paulo II procurou controlar o incêndio sobre o qual o “PanzerKardinal” estava entornando galões de combustível. Evocando a teologia contestada em uma carta de 9 de abril de 1986 ao episcopado brasileiro, o papa julgou que ela “não é apenas oportuna, mas útil e necessária”. Ele chegou a condenar a nova ideologia dominante, o capitalismo liberal. Mesmo assim, com uma vontade bem clara de liquidar a herança, Roma desmantelou as conquistas de Medellín. Pelas nominações de bispos conservadores e de membros do Opus Dei,5 e pelo espaço cada vez maior acordado a movimentos como o Neo Catecumenato, os Legionários de Cristo e a Renovação Carismática, a dupla Wojtyla-Ratzinger reforçou a tendência conservadora. Para diminuir a influência dos padres considerados contestadores demais, algumas dioceses, como a do cardeal Paulo Evaristo Arns, no Brasil, foram sabiamente divididas. Em 1985, o monsenhor José Cardoso, lançado de paraquedas pela cúria romana, substituiu dom Hélder Câmara, que havia atingido o limite de idade. O recém-chegado rapidamente entrou em conflito com todo o seu clero e suas equipes de leigos militantes.
Se os padres que participavam do governo sandinista foram condenados, esse não foi o caso dos que colaboraram com a junta militar argentina. Tendo João Paulo II visitado diversas vezes a América Latina, por muito tempo será lembrado o dia em que, no Chile, ele deu a comunhão ao casal Pinochet. Sabe-se menos que, quando o ex-ditador estava detido em Londres, em novembro de 1998, o cardeal chileno Jorge Medina intermediou “negociações discretas” em favor de sua libertação, assim como de seu retorno a Santiago. Essas negociações foram apoiadas, da Santa Sé, pelos cardeais López Trujillo e Ratzinger. Menos sortudos, 140 teólogos que tinham tentado colocar em prática as aberturas do Concílio Vaticano II foram punidos durante o pontificado de João Paulo II.
Tendo se tornado Bento XVI e recebendo em 5 de dezembro de 2009 um grupo de prelados brasileiros, o inspirador e teórico das medidas conservadoras de Wojtyla ainda resmungava, evocando a teologia da libertação: “As sequelas mais ou menos visíveis desse comportamento, caracterizado pela rebelião, a divisão, o desacordo, a ofensa e a anarquia, ainda perduram, produzindo nas comunidades diocesanas um grande sofrimento e uma grave perda das forças vivas…”. É possível ser o “Santo Padre” e mesmo assim ser pouco inclinado ao arrependimento e ao perdão.
Maurice Lemoine é jornalista ee autor de “Cinq Cubains à Miami ( Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.