“A culpa não é minha”: os imaturos no poder
Adultos imaturos podem ser medrosos e confinam sua compreensão do mundo a um espectro limitado de interpretações dos outros
Em um célebre texto sobre o Iluminismo, o filósofo alemão Immanuel Kant define a imaturidade como a baixa capacidade de uma pessoa utilizar seu próprio entendimento. Ela se torna esclarecida quando tem a coragem de ser crítica, acionar seu próprio entendimento para procurar o conhecimento e examinar o que lhe é transmitido. Adultos imaturos podem ser medrosos e confinam sua compreensão do mundo a um espectro limitado de interpretações dos outros. Infantilizados, não assumem seus próprios erros ou responsabilidades diante de dificuldades, culpando também os outros por aquilo que deu errado – mesmo tendo sido eles que escolheram não fazer suas escolhas por conta própria.
Imaturos no poder não têm capacidade de reação a desafios, ficam esperando uma ideia de fora e não se responsabilizam por suas próprias besteiras. As declarações do governo Bolsonaro para justificar o péssimo desempenho do Brasil no enfrentamento dos altíssimos desafios que vivemos espelham essa imaturidade. E não me refiro apenas ao próprio presidente, que faz questão de deixar claro que não entende nada enquanto come pão com leite condensado, mas àquelas equipes que empoderou para tomar as decisões que eram para ser de especialistas.
Na saúde, nas relações externas, no meio ambiente e na economia os resultados são desastrosos. São óbvios os erros crassos na saúde, com a falta de um plano federal para lidar com o coronavírus, comprar os equipamentos necessários, negociar soluções como vacinas. Nas relações externas, o vexame total, com o Brasil virando escória na diplomacia internacional, com uma narrativa chovinista, indispondo-se com países desenvolvidos, em desenvolvimento e emergentes, sob governos de diferentes orientações políticas. Abalaram-se as relações com nada mais, nada menos, do que o principal parceiro comercial: a China, também produtora das matérias-primas das vacinas que nos viriam a salvar milhares de vida.
No meio-ambiente, as tremendas queimadas dos últimos dois anos na Amazônia e no Pantanal, por exemplo, implicaram em perdas inestimáveis de fauna e de flora. Estas não podem ser atribuídas tão somente às forças da natureza ou divinas, porque as intervenções humanas – como as queimadas – estão relacionadas aos fatos, mas também porque existem meios de se prevenir e reagir contra incêndios e outros crimes ambientais.
Mas como sou economista, vou me ater mais detidamente aos erros dessa dimensão. Examinando-se os indicadores econômicos, já em 2019 o crescimento do PIB foi pífio (1,1%), inferior a 2017 e 2018, sem recuperar as perdas da recessão 2015/2016, com nível equivalente ao de 2013 (IBGE). E não adianta culpar o PT por entregar o país “quebrado”, sem recursos financeiros. Primeiro, porque o PT saiu do poder há mais de cinco anos, tempo em que se podem realizar substantivas melhorias – como ficou evidente na transição do governo Fernando Collor/ Itamar Franco para Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990.
Segundo, porque o governo federal é senhor de sua moeda e política monetária, pode encontrar espaço para um racional anticíclico. Inclusive, o governo usou esse expediente, com déficit fiscal geral de dois dígitos, estimado em -14,5% pelo FMI (Fiscal Monitor Update, jan. 2021). Tal buraco nas contas públicas é o maior dentre os países emergentes, em um cenário de queda dos juros. Também houve elevação da dívida bruta sobre o PIB, o que segundo o FMI se deve principalmente à contração econômica (estimada em -4,5% em 2020, de acordo com outro documento do FMI, World Economic Outlook, jan. 2021). Então, o problema verdadeiro não foi falta de dinheiro, mas de uma política fiscal ineficiente por parte do Ministério de Paulo Guedes. Aquele que, irresponsavelmente, não quer sustentar o auxílio emergencial – fundamental para a sobrevivência de milhões de brasileiros.
Afinal, em janeiro de 2021, em meio ao expressivo crescimento do contágio e dos óbitos causados pelo vírus no país, comprovou-se o aumento significativo da pobreza e do desemprego nas últimas semanas. De acordo com os cálculos da FGV/Social a partir dos dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua e Covid-19, são quase 27 milhões de pessoas em condição de pobreza extrema, com menos de R$ 300 por mês. Houve um salto em relação ao segundo semestre de 2020, o que leva a crer que o auxílio emergencial evitou por meses que a extrema pobreza não avançasse dessa maneira. E ainda, a taxa de desocupação alcançou 14,1% no trimestre móvel referente aos meses de setembro a novembro de 2020, patamar estagnado em relação ao trimestre de junho a agosto de 2020 (14,4%). Comparando-se com o mesmo trimestre móvel do ano anterior, setembro a novembro de 2019, a taxa se elevou em quase 3 pontos percentuais, quando era de 11,2% – a mesma de março-maio de 2016, quando começou o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Além do desemprego, tem-se a inflação. Os indicadores de preços subiram e, segundo cálculos do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o valor da cesta básica em relação ao salário mínimo (R$ 1.100) é o maior em quinze anos – o que compromete a capacidade de consumo das famílias. Não adianta atribuir a falta de demanda às medidas rígidas tomadas por governadores, como lockdown. O lamentável caso do Amazonas mostra como o isolamento sério teria sido fundamental para preservar vidas. Além disso, a inflação está associada principalmente aos entraves de oferta e à desvalorização cambial. Existem históricos e crescentes gargalos setoriais resultantes da progressiva deterioração das cadeias produtivas brasileiras, cada vez mais dependente de importados, bem como das estruturas de mercado concentradas (como os oligopólios dos bancos, do atacado e do varejo).
A dependência tecnológica e a concentração de mercado, na área da saúde, tem causado perdas irreparáveis. Mas no governo Bolsonaro falta uma visão favorável ao desenvolvimento sustentável e inclusivo, para reduzir o atraso tecnológico, a degradação ambiental e as desigualdades sociais. Como exemplo, a fala do novo presidente do Ipea sobre apostar o futuro em atividades econômicas em que o Brasil apresenta vantagens comparativas, como minério e commodities agrícolas. Essa concepção é, no mínimo, ultrapassada, pois vantagens comparativas são dinâmicas e podem ser construídas e/ou superadas com políticas corretas. Ou seja, não são uma sina, ou uma maldição, associadas simplesmente às dotações de recursos naturais.
Enfim, depositar toda a culpa da situação brasileira ao coronavírus não procede. Em perspectiva comparada, o Brasil tomou as decisões menos efetivas para dirimir os efeitos da crise sanitária e econômica. Em consequência, comparações internacionais como a do think tank australiano Lowy Institute mostra que o Brasil foi muito mal: teve o pior desempenho relativo entre 98 países com dados publicamente disponíveis sobre seis medidas da Covid-19 (casos confirmados, mortes confirmadas, casos confirmados por milhão de pessoas, mortes confirmadas por milhão de pessoas, casos confirmados como proporção de testes, testes por mil pessoas) desde o centésimo caso confirmado da doença em cada país até 9 de janeiro de 2021. O fim da lista apresenta também Mexico, Colômbia, Irã e Estados Unidos.
Portanto, conclui-se que as equipes do governo Bolsonaro erraram feio no seu enfrentamento da crise e tiveram desempenho inferior ao de centenas de outras lideranças mundiais. E não venham culpar a cultura brasileira, do jeitinho, da falta de planejamento, da corrupção. Existem milhões de brasileiros honestos e responsáveis, em batalha diária para sobreviver com dignidade, trabalhando conforme as normas de segurança, ficando em casa quando podem, sem encontrar aqueles que amam e tentando ajudar o próximo. Milhares de empresas e empreendedores agiram com firmeza, sustentaram postos de trabalho, investiram em linhas de produção para apoiar a área da saúde, montaram comitês anti-crise para lidar seriamente com as dificuldades e incertezas. Sem falar nos abnegados da linha de frente na área da saúde, exaustos emocional e fisicamente, cuidando e salvando os nossos doentes.
Na minha área, a da ciência e tecnologia, existem diversos exemplos de pesquisadores que voltaram suas linhas de investigação para a saúde, em busca de contribuir com a sociedade nas suas áreas de conhecimento, destacando-se aqueles que inovaram em produtos e processos para lidar com a pandemia. Não me refiro somente à invenção da vacina, de equipamentos médicos e de soluções para combater a pandemia diretamente, mas também relativas a temas adjacentes como a produção de estatísticas, de manuais administrativos, de orientações sociológicas, de ações extensionistas para apoiar grupos vulneráveis, análises e engenharias setoriais para a indústria, para a agricultura, para os serviços – afinal todas as atividades produtivas foram afetadas, bem como as relações políticas e sociais.
Então, relativizar a incompetência do governo e apoiar a imaturidade daqueles que estão no poder demonstra a atrofia da razão tanto individual, quanto coletiva. Ou seja, não podemos aceitar governantes imaturos, a menos a gente queira nos confinar à própria letargia e falta de esclarecimento. Para melhorar a sociedade, é preciso querer mudar, aprender, buscar a interpretar a realidade criticamente, em seu tempo e espaço.
*Cristina Fróes de Borja Reis é economista formada na USP, mestrado e doutorado na UFRJ, pós-doutorado na Technische Universitat Berlin, professora de Economia e de Relações Internacionais da UFABC, coordenação do grupo de pesquisa sobre Cadeias Globais de Valor. As opiniões expressas no texto são da autora e não devem ser atribuídos aos das instituições de sua formação e atuação profissional.