A democracia do erro: Loewenstein e o Brasil de 2022
Entre derrotas, como as de Trump e de Bolsonaro, e vitórias, como de Meloni na Itália e a manutenção de alguns líderes no leste europeu, a extrema direita mantém-se viva aos solavancos
Passado mais de um mês da eleição, as manifestações antidemocráticas que pedem a anulação de seu resultado permanecem em todo território nacional – com menos voracidade, de fato, mas permanecem.
O resultado é incontestável: Lula é o presidente eleito. Por muitos, Lula já é considerado o presidente em exercício, tendo em vista sua atuação no diálogo com líderes mundiais no recondicionamento do Brasil no cenário internacional enquanto seu opositor, derrotado, se recolheu às escuras do Alvorada desde a noite do dia 30 de outubro.
São vários os fundamentos inconstitucionais utilizados nas manifestações antidemocráticas, a maioria já conhecida na opinião pública, como uma interpretação alienada (e alienante) do artigo 142º da Constituição da República ou a intervenção militar com Bolsonaro no poder. Uma menor parte ainda surpreende com inovações teratológicas como o decreto-lei de criação de um Tribunal Constitucional da Ordem Institucional ou mesmo a alegação de inconfiabilidade das urnas por seu sistema de identificação – este último atestado pelo Partido Liberal (PL) na ação intentada no TSE, que condenou o partido por litigância de má-fé com uma multa de quase 23 milhões de reais.
Entre novos e antigos, os fundamentos permanecem com um ponto em comum: a proposta de subversão dos conceitos de democracia. Em seu nome, os movimentos antidemocráticos buscam incoerentemente sua destruição. Essa tese já foi muito bem abordada pelo bestseller Como as Democracias Morrem, de Levitsky e Ziblatt. A obra, em síntese, busca analisar de que maneira esses movimentos de ultradireita pelo mundo se assemelham ao utilizar mecanismos democráticos para destruir a própria democracia pela via eleitoral, de maneira a não observar o que entende ser os dois pressupostos que a sustentam[1]: a tolerância mútua e a reserva institucional.
O livro pode ser considerado um divisor de águas na matéria, sobretudo pela forma que aborda o tema, sendo palatável ao público para além da academia. Do ano de sua publicação (2018) para a atualidade, muitos acontecimentos políticos nos EUA, país de publicação, e no mundo ocorreram, oferecendo mais matéria suscetível à análise.
Entre derrotas, como as de Trump e de Bolsonaro, e vitórias, como de Meloni na Itália e a manutenção de alguns líderes no leste europeu, a extrema direita mantém-se viva aos solavancos.
A isso, com muitas ressalvas, toma lugar no debate a possibilidade da institucionalização de instrumentos de proteção da democracia para além dos que já existem. Não há democracia forte o suficiente no mundo atual que se furte ao debate sobre a institucionalização desses instrumentos. O debate é necessário, sobretudo no Brasil em que a crise institucional aparentemente permanece sem muita contraposição.
Desde as jornadas de junho de 2013, perpassando as inúmeras fases da Operação Lava Jato, o impeachment da ex-presidente Dilma, a política de “reformas” de Michel Temer e o não-governo de Bolsonaro, a crise institucional e a instabilidade política por ela gerada estão presentes.
Os Poderes e as instituições democráticas insistem em exercer atribuições e funções que não são de sua competência, corroborando para um cenário que cada vez mais preocupa. Temos como exemplos disso, nos últimos anos, a captura grande fatia do orçamento da União pelo Legislativo via Orçamento Secreto, a instauração do Inquérito das Fake News pelo Supremo Tribunal Federal com base em um dispositivo regimental da Corte, a utilização de um órgão de Estado como a Polícia Federal pelo Chefe de Estado para fins políticos e pessoais, ou até mesmo quando a Procuradoria-Geral da República atua de maneira mais semelhante à Advocacia-Geral da União do que propriamente enquanto órgão máximo do Ministério Público.
Quando as instituições democráticas que deveriam defender o regime em que estão inseridas falham, também o falha o regime.
O debate sobre o uso desses mecanismos não vem de agora. O constitucionalista alemão Karl Loewenstein propôs em 1937 a necessidade de viabilização de uma democracia militante. Esse conceito está vinculado a uma noção de que a democracia deve possuir mecanismos de autodefesa aos meios autoritários e fascistas que buscam a sua subversão e, caso não a faça, estaria fadada ao fracasso[2].
A maneira de constituir essa defesa foi subdividida como método legislativo e método político. Como bem colocado pelo Prof. João Gabriel Pontes[3], o método legislativo foi denominado frente comum, “cujo objetivo seria ´estabelecer uma iniciativa unida e uniforme entre os setores da população de inclinação democrática, contra o inimigo em comum´”. Por outro lado, quanto ao método legislativo, mais bem recebido pelo teórico, consistiria na “elaboração de leis especialmente voltadas à neutralização da técnica fascista e dos seus efeitos”.
Acreditar que os meios que dispomos atualmente no Brasil são suficientes para assegurar a democracia é observar a casa arder em chamas enquanto se espera ouvindo música na sala. No auge de uma democracia liberal que se exime de prestações positivas aos cidadãos, o discurso de ódio e a utilização de redes de desinformação são travestidos enquanto uso de um direito à liberdade de expressão que há muito já tem seus limites desenhados. Os direitos fundamentais não são absolutos, esse assunto já foi superado e não deve ser suscitado por qualquer teórico que tenha o mínimo compromisso com o Estado Democrático de Direito.
A liberdade de expressão tem sido manipulada como pretexto para movimentos antidemocráticos, como estandarte de sua ideologia. Abusam desse direito para atacar frontalmente os direitos fundamentais basilares de um Estado democrático, quando não as próprias instituições que devem (deveriam) assegurá-los.
As críticas e cautelas à viabilização de mecanismos de autodefesa devem ser debatidas e expostas. Entretanto, o debate público não pode cair num puritanismo e numa idealização de que a democracia se autorregula. Ela deve ser conduzida pelas instituições que a compõem no pleno uso de suas respectivas atribuições. Sua construção e os direitos fundamentais que temos assegurados hoje não foram conquistados pela inércia – muito pelo contrário.
Caso a inércia se mantenha, a crise irá também se manter (ou se agravar).
Por mais que, com a derrota de Bolsonaro, esses movimentos não tenham mais predomínio no debate público, o resultado da eleição não simboliza a sua dissolução. O retrato disso está na composição do Legislativo federal. O governo Lula terá uma oposição como nunca antes vista. Qual seja uma oposição expressiva, organizada e que tem redes de desinformação como fundamento de sua própria sobrevivência.
Senão de modo interventivo, de que forma devem ser combatidas essas redes de desinformação que retroalimentam o legado autoritário deixado por Bolsonaro? A insistência na democracia do erro deve ser sobreposta por uma democracia que milite em seu próprio favor, combatendo fogo com fogo.
Gabriel Mattos da Silva é advogado no Brasil e em Portugal, bacharel em Direito pela UFRJ, Mestrando pela Universidade de Coimbra e pesquisador sobre autoritarismo e direito constitucional.
[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
[2] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. The American Political Science Review. Vol. XXXI, nº. 03, 1937.
[3] PONTES, João Gabriel Madeira. Democracia Militante em tempos de crise / João Gabriel Madeira Pontes – 2020. p. 78.