A democracia na mira das plataformas digitais
Regulação das big techs é necessária, deve preservar a liberdade de expressão e precisa ser feita a partir de debate amplo e plural com a sociedade
Vivemos um tempo de paradoxos. As redes sociais inauguraram uma era na comunicação onde todas as pessoas se sentem autorizadas a falar sobre os mais variados temas e se posicionar mediante fatos que acontecem no mundo. O modelo comunicacional pautado em emissor>receptor foi substituído, nas duas últimas décadas, por um verdadeiro festival de emissores de todo e qualquer tipo de informação, seja verdadeira ou não, motivada por paixões, ideologias e visões de mundo distintas.
Trata-se também de uma era em que o poder de falar para (e com) muitas pessoas nem sempre se converte em diálogo, e sim em manifestações de ódio. A nova arena comunicacional muitas vezes é apropriada como palco de uma perversa performance democrática, na qual usuários/as de plataformas usam equivocadamente o discurso da “liberdade de expressão” para atacar direitos individuais e coletivos, além das próprias estruturas democráticas. Sendo a democracia o exercício do poder partilhado, como assinala Boaventura de Sousa Santos, a aniquilação da diversidade e dos direitos é a morte da mesma.
O cenário de desmediatização da comunicação, ou seja, da superação da necessidade de intermediários para acessar informações, como grupos de mídia tradicionais, é o mesmo no qual a crise de legitimidade da política institucional atinge a democracia representativa em cheio.
Assistimos à luta pela construção de verdades. A razão, a comprovação factual e a ciência passam a ser alvo de ataques. A opinião de especialistas e da mídia é deslegitimada como fonte de manipulação e hipocrisia. Sem essas bases, a dialogicidade, necessária à construção de uma sociedade democrática, se esvai em achismos e desinformação.
Para Hannah Arendt, citada por Helena Martins no livro “Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news” (2020), “o resultado da substituição coerente e total da verdade pela mentira não é que as mentiras passam a ser aceitas como verdades, nem simplesmente que a verdade passa a ser difamada como mentira, mas a destruição do próprio sentido que usamos para nos orientar no mundo”.
A desinformação não é apenas um equívoco, mas uma estratégia política de destruição da democracia. É intencional. O principal meio por onde a desinformação se difunde é o digital, via plataformas de redes sociais, que são mídias, mediações portanto. E, como tal, não causam nenhum fenômeno em si, mas introduzem, por meio de ações humanas que programam os seus sistemas, vieses que favorecem certos direcionamentos latentes na sociedade e não outros. Ou seja, trata-se de uma escolha mercadológica, consciente e perigosa. Não é neutra e nem determinista.
O modelo de negócios das big techs funciona de tal maneira que deixa de ser relevante se as mensagens disseminadas são verdadeiras ou falsas, consolidando novas estruturas de poder concentrado nocivas à democracia. O importante é a viralização, uma vez que é pela análise de nossos cliques e curtidas, depurados em retratos sintéticos de nossa personalidade, que essas empresas produzem seus enormes lucros.
Nesse contexto, de alta polarização estimulada nas redes sociais, terreno onde impera a lei do clique e das postagens impulsionadas na base do quem dá mais leva, é urgente debater a regulação democrática das plataformas para frear o processo de desdemocratização. A desinformação só interessa ao neoliberalismo e a sua expressão neofascista.
É crescente o interesse de governos e parlamentos por regular sua atividade e a distribuição de conteúdo. Algumas dessas iniciativas legais podem configurar soluções desproporcionais, ampliando o risco de violações ao direito à livre expressão, uma vez que atribuem responsabilidades e obrigações que tornam as plataformas juízes ou polícias privadas sobre os conteúdos de terceiros que podem circular na Internet. Por isso, é necessário um debate amplo que considere os diferentes setores da sociedade, de maneira responsável e preservando a liberdade de expressão.
Algumas iniciativas já estão em curso como o Digital Services Act (DSA), nova legislação aprovada pela União Europeia que estabelece requisitos de transparência e responsabilidade das plataformas, inaugurando um modelo de responsabilização em que as regras se aplicam de maneira desigual, considerando o tamanho das plataformas. Nos Estados Unidos, o debate se foca na transparência algorítmica e uma cobrança nas big techs para que elas apresentem quais dados estão usando para alimentar essa tecnologia algorítmica que é desenhada por pessoas e passam por escolhas humanas na hora de programar.
No Brasil, a legislação que mais avançou referente ao tema é o Projeto de Lei 2630 (PL das Fake News), que também estabelece novas responsabilidades às plataformas, como a exigência de relatórios de transparência, uma série de garantias procedimentais em relação à moderação de conteúdo e diversas outras medidas que fortaleceriam o cenário digital no Brasil, caso aprovado. O texto não é totalmente isento de críticas dos especialistas da área e algumas recomendações já foram sistematizadas por uma série de organizações envolvidas com o tema, como o Intervozes.
A internet é uma das principais arenas da comunicação política, mas vale lembrar que nenhuma tecnologia sozinha jamais foi capaz de inventar realidades. O mais importante debate de nossa trágica quadra da história moderna envolve a regulação das plataformas das redes sociais. Para combater a instrumentalização de inverdades, a regulação das redes é algo urgente a ser feito nos próximos anos. A defesa da democracia passa, na atualidade, pela inserção da pauta da regulação na agenda política da sociedade.
Precisamos encontrar uma saída pela regulação democrática, adequada e inteligente, capaz de assegurar ambientes regulatórios apropriados para proteger os direitos humanos das ações dos gigantes tecnológicos, respeitando os padrões internacionais de direitos humanos.
*Este artigo integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
Aline Souza é jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Nataly Queiroz é jornalista, doutora em Comunicação e professora universitária; e Sheley Gomes é cientista política pela Universidade de Brasília (UnB), pós-graduanda em Direito e Relações Governamentais pelo UniCEUB e mestranda em mídia e estudos de área pela Charles University. As três são associadas ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Referências
Fakenews: como as plataformas enfrentam a desinformação/ Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Rio de Janeiro: Multifoco, 2021.
Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news / Organização de Helena Martins. Prefácio de Sergio Amadeu da Silveira. – São Paulo: Veneta, 2020.
Padrões para uma regulação democrática das grandes plataformas
Liberdade é controle. Texto de Rafael Evangelista. Outras Palavras, setembro de 2019.
CreateIT. The Digital Services Act and Digital Markets Act https://www.createit.com/blog/the-digital-services-act-and-digital-markets-act/