A ‘democratização conservadora’
Por meio da constituição em seu interior de “tendências” que expressem os diferentes segmentos sociais, o Partido Comunista busca conservar o monopólio do poder e garantir a estabilidade, proporcionando, ao mesmo tempo, uma válvula de escape para os descontentamentos e um mínimo de escolha política para os cidadãos
Do Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) em outubro de 2007 até os preparativos para os Jogos Olímpicos, passando pela tarefa de administrar o “caso tibetano”, não se pode dizer que a China tenha oferecido uma imagem renovada do seu sistema político. Esse conservadorismo que emana “de cima” contrasta, porém, com a amplidão, a freqüência e a natureza dos movimentos sociais que vêm sendo deflagrados pelo país afora. Com efeito, nele estamos assistindo a uma semi-institucionalização do protesto. E esta não resulta de uma pressão social exterior ao partido, mas sim da ação de indivíduos e de grupos situados no próprio interior do “sistema”. Uma tamanha modificação nos obriga a sair do quadro habitual da análise política, que geralmente coloca em oposição um “poder” todo-poderoso, cujas práticas são tortuosas e sem escrúpulos, com uma “sociedade” alternativamente percebida como atônica ou à beira da revolta.
Entre 2002 e 2006, cerca de 12 milhões de pessoas aderiram ao PCC. Quais razões as motivaram a fazer tal escolha? Para alguns indivíduos, que são executivos do partido e da administração, a pergunta parece simplesmente não ter sentido: pertencer ao partido é um meio para aceder a uma função e acumular poder. Para outros, as motivações são mais diversificadas. “Se quiser subir na hierarquia, preciso me submeter a esta formalidade”,explica um docente. Numa das grandes universidades do país, foram recenseados 80% de professores comunistas. Mas nem por isso o fato de ser detentor da carteira de membro garante a ascensão social. A rede de relações, o sucesso profissional e até mesmo o enriquecimento constituem métodos muito mais seguros para tanto.
Um secretário do partido em uma instituição pública aguarda há muito tempo uma promoção à patente superior, ao passo que sua adjunta, casada com um alto executivo de outra instituição, acaba de obtê-la, apesar dos questionamentos que pesam sobre suas qualidades profissionais. Outro exemplo de sucesso fora dos quadros do partido é o filho de uma riquíssima mulher de negócios: mesmo sem possuir diploma algum, apesar de três anos freqüentando as aulas de uma universidade estrangeira, sua mãe conseguiu introduzi-lo na alta hierarquia de uma empresa pública.
No meio intelectual, o fato de aderir ao partido pode garantir certa tranqüilidade de espírito. Assim, para um jornalista, “o fato de pertencer ao partido proporciona uma maior liberdade de expressão”. O paradoxo é apenas aparente: a pessoa coop-tada acede a um círculo restrito onde as discussões são mais livres. Essa percepção remete precisamente ao tema da “democratização do partido”, que foi abordado por ocasião do 17º Congresso.
É possível interpretar esse slogan como a pirueta retórica de uma organização que, diante de sua incapacidade de democratizar realmente a sociedade, propõe um enésimo sucedâneo de liberalização. Contudo, o discurso oficial traduz um conjunto de realidades diferentes. Nele se destaca o processo de reflexão iniciado há alguns anos nas escolas do partido em torno de um cenário político de “democratização conservadora”. O objetivo era dos mais ambiciosos. Tratava-se de responder à seguinte pergunta: como conservar o poder (interesse pessoal) e garantir a estabilidade (interesse coletivo), criando ao mesmo tempo um espaço de expressão e de escolha políticas?
Resposta: por meio da constituição, no interior do partido, de “tendências” que permitam articular entre si os diferentes meios sociais. O PCC conservaria, evidentemente, o monopólio do poder, só que à maneira do Partido Liberal Democrata japonês, que vem atuando da mesma forma desde a sua criação depois da Segunda Guerra Mundial. O exemplo é citado explicitamente. Ou ainda, tal como na Europa e nos Estados Unidos, no âmbito de um sistema de poder movimentado por dois grandes partidos que, concordando entre si a respeito das questões fundamentais, fazem prevalecer o consenso acima do conflito e, portanto, a estabilidade. A democracia no interior do círculo das elites permitiria reformar o regime, evitando paralelamente a instabilidade política.
“Sociedade harmoniosa”
Desde 2002, os dirigentes vêm enfatizando essa alteração de rumo. A escolha de slogans que veiculam conceitos tais como os da “sociedade harmoniosa”, da “pequena prosperidade”, ou ainda, mais recentemente, da “ciência do desenvolvimento” confirma um processo de legitimação das demandas da “sociedade”.A esse gesto simbólico acrescentam-se medidas concretas, que incluem a extensão limitada, porém real, dos sistemas de segurança social, a atenuação do fardo fiscal dos camponeses, além do controle, que pretende ser menos brutal, das migrações e dos movimentos sociais.
Por trás de uma fachada de imobilismo, o “gradualismo” reformador modifica os grandes equilíbrios políticos. É verdade, está fora de questão organizar eleições a curto ou médio prazo: a “democratização do partido” consiste numa série de experiências restritas, feitas para circunscrever a reforma dentro de um quadro estreito. Da mesma forma que a democratização das campanhas, que já é antiga, havia limitado o seu impacto às questões internas da aldeia, a democratização do partido limita o espaço de discussão e de contestação a um público escolhido, integrado por pessoas responsáveis. Nos dois casos, trata-se de evitar todo e qualquer desvirtuamento do processo.
Seguramente, o cenário da democratização conservadora é relativamente pouco importante se comparado com a “segunda onda democrática” (em conseqüência da Segunda Guerra Mundial) ou com a terceira (a dos países do ex-bloco do Leste). Mas ele sustenta a comparação com a “primeira onda democrática”, que conheceram os países da Europa ocidental: todo o questionamento político das elites do século XIX se articulou em torno da contradição entre uma democratização percebida como inelutável, e até mesmo desejável, e os temores que ela suscitava entre os “dominantes”1. O pensador político Alexis de Tocqueville (1805-1859, conhecido por suas análises da Revolução Francesa) louva o povo (o cidadão honesto e sensato), mas infama o populacho (a multidão, as massas, os revolucionários)2. Embora os grandes sistemas democráticos tivessem germinado em função do medo gerado pela revolução, o temor de ver surgirem das urnas maus dirigentes (não só demagogos como também líderes desprovidos de experiência e de conhecimentos) por muito tempo impediu todo avanço radi
cal nesse campo.
A problemática chinesa é idêntica, exceto que nela a desordem substitui a revolução. As elites procuram uma fórmula que permita democratizar sem atritos e garanta ao mesmo tempo ao país os “bons” dirigentes. “Qual seria a situação mais perigosa?”,pergunta um executivo encarregado das eleições nas aldeias. “Uma sociedade instável proibida de se expressar por meio das urnas – instável em parte porque privada de expressão –, ou uma sociedade em desordem por causa das urnas?”A classe dirigente e a maioria dos comunistas estão empenhadas em evitar esses dois obstáculos.
Novas formas de ação política
Geralmente objeto de troça, não raro por parte dos próprios chineses, a “democratização”, contudo, não se limita a uma mera visão teórica. Ao lado da contestação social, ou, melhor dizendo, por trás dela, revelam-se formas de ação política promovidas por membros do partido. Advogados, deputados, funcionários, professores, responsáveis de “organizações de massa” (Federação das Mulheres, sindicato) e empreen-dedores estão presentes, não só na mídia e nas organizações não-governamentais (ONGs) como também nos bastidores do poder, para defender categorias sociais que eles consideram vilipendiadas. Alguns dão aulas de direito para os migrantes vindos do campo3, ou ainda publicam artigos nos quais apontam os vínculos existentes entre os movimentos de protesto e as injustiças sociais, e entre a contestação e a defesa dos direitos. Outros apóiam, e até mesmo financiam, iniciativas em favor dos pobres ou dos expulsos. Outros ainda defendem o patrimônio, ou mesmo a idéia de uma redistribuição dos recursos do crescimento.
Recentemente, personalidades passaram a fornecer seu apoio para associações de proprietários de apartamento às voltas com maus administradores de prédios que mantêm assiduamente suas relações com as autoridades locais. A meta que está em jogo é considerável: trata-se de consagrar o reconhecimento dos direitos da “classe média” de gozar daquilo que ela mesma define como o seu fundamento, a propriedade imobiliária. Nos grandes conjuntos habitacionais de Pequim, a eleição de representantes dos proprietários tornou-se obrigatória. As autoridades locais não tardaram a encontrar estratagemas próprios para esvaziar essas eleições do seu sentido, mas a reforma caracteriza um reconhecimento dos direitos dos proprietários.Por fim, jornalistas seguem denunciando escândalos relacionados à poluição, e ainda os maus-tratos infligidos aos migrantes, aos camponeses e aos urbanos expropriados. Esse novo ativismo deve muito à modificação elitista que alterou a composição do partido, a qual apresenta uma proporção crescente de jovens, de homens de negócios e de diplomados do ensino superior.
Nem revolucionários nem dissidentes, esses cidadãos, pessoas que em sua maioria estão com cerca de 50 anos, com freqüência têm em comum um passado “de militância”. Os mais destacados dentre eles conheceram os grandes movimentos políticos da época maoísta (Revolução Cultural, envio dos jovens instruídos para o campo), além das fases de questionamento do regime (principalmente em 1979 e 1989). Eles dominam com a mesma desenvoltura tanto a língua oficial quanto a gramática da sua contestação. Após terem enfrentado todas as ondas de repressão sucessivas, eles hoje perderam todo e qualquer senso do sacrifício. Podem ser encontrados em todos os setores do poder. E não raro o observador se surpreende ao descobrir a existência de afinidades entre indivíduos que ocupam posições muito afastadas entre si – nos campos das artes e da administração, no setor acadêmico e no mundo dos negócios –, mas que se conheceram na época maoísta.
Esse é o caso de Zhang, no passado um jovem culto enviado para o campo e hoje o diretor de um dos escritórios administrativos de uma grande municipalidade4, que manteve uma amizade com um artista célebre com quem ele passou três anos na Mongólia. Num outro caso que vem a ser mais espantoso, um antigo guarda vermelho que agora se dedica aos negócios cultiva as melhores relações possíveis com um dos seus antigos adversários. Dessa experiência, eles conservaram uma sensibilidade, reflexos e uma linguagem em comum. “Dentre nós, muitos são aqueles que ficaram ressabiados, tanto em relação ao mito revolucionário quanto à crença na democracia e nas eleições”, diz um intelectual renomado. “Tudo isso é perigoso e, nesse sentido, nós precisamos encontrar um caminho intermediário.”
Reprodução das elites
A sua trajetória conduz esses “democratas conservadores” a pensar a reforma política em termos de evolução rumo a um mecanismo que garanta ao mesmo tempo a ordem, a reprodução das elites e uma forte dose de mobilidade social. Afinados com o discurso oficial, eles preconizam um fortalecimento das leis, entre outras razões para garantir os direitos fundamentais das categorias desfavorecidas ou em situação difícil: pessoas que foram expropriadas da sua moradia ou das suas terras, migrantes explorados, urbanos empobrecidos pelas reformas, proprietários de imóveis em luta contra os administradores e os empreiteiros imobiliários, residentes que protestam contra a poluição do ar ou dos rios…
O seu objetivo é viabilizar canais legais de expressão do descontentamento e ensinar os protestatários a utilizar o arsenal legal para fazer frente aos procedimentos condenáveis dos homens de negócios e das burocracias locais. A afirmação das categorias sociais (proprietários, expropriados, pobres, migrantes) deve passar por uma proteção dos seus direitos (weiquan).
Nenhum “reformador” se arrisca a desrespeitar o sinal vermelho, aderindo à contestação do regime. “O tempo das revoluções está encerrado”, dizem alguns. “Nós não devemos mais intervir na política.” “É preciso evitar todo confronto direto com o regime”, acrescentam os outros. A sua escolha não é inteiramente de natureza tática. Uma boa parte desses “militantes” pertence ao sistema. E, mais precisamente, a grupos sociais que foram favorecidos pelas reformas econômicas: técnicos, executivos de grandes empresas, homens de negócios, docentes. Da mesma forma que os dirigentes, eles cultivam um apreço pela estabilidade e temem perder vantagens, tanto mais preciosas por terem sido obtidas tardiamente. No entanto, a sua ação constitui uma demonstração de certa coragem e implica discrição: caso contrário, o seu status, e até mesmo a sua liberda
de, poderia estar ameaçado.
O impacto dessas lutas é reduzido, porém não desprezível: houve uma melhora considerável da imagem dos migrantes no plano da opinião, enquanto o não-pagamento dos seus salários os torna mais raro; o número dos recursos contra os maus-tratos vem aumentando; o processo de conscientização diante dos problemas de poluição está ganhando uma força inegável; os interesses dos proprietários de apartamento começaram a conquistar certa legitimidade. Embora modestas, essas realizações superam as da dissidência; de fato, esta última exerce uma influência limitada, tanto em razão do reduzido apoio popular com o qual pode contar quanto da repressão da qual é vítima.
Os inimigos da vertente “reformadora” não se encontram nem no governo nem no partido: são todos aqueles que, nas administrações, nas empresas ou nas universidades, querem continuar tirando proveito do regime e simultaneamente seguem se recusando a conferir um quadro (jurídico, formal, legítimo) às suas prerrogativas. Eles não entenderam que o modo de governo precisa evoluir e incorporar, em parte ou totalmente, as aspirações sociais, caso eles queiram evitar… perder o poder.
A aparição de novas camadas sociais, agrupadas sob a denominação prática, porém confusa e imprecisa, de “classes médias”, constitui outra peça desse “quebra-cabeça” político. A esses grupos sociais pertencem muitos comunistas. Beneficiários de um nível de renda que lhes permite possuir uma casa própria, um carro, viajar e, resumindo, “tirar proveito da vida”, eles manifestam uma atitude política ambivalente.
De um lado, criticam o enriquecimento baseado nas remunerações ilegais ou nos “privilégios” (tequan) decorrentes da origem familiar, ao passo que eles mesmos podem contar apenas com os seus próprios méritos e salários duramente onerado por pesados tributos. Eles se dizem favoráveis a uma extensão da proteção legal dos interesses individuais e a uma ampla democratização das liberdades de expressão, de associação e de empreendedorismo.
Desconfiança em relação às eleições
De outro, opõem-se à implantação de eleições, nas quais enxergam uma fonte potencial de confusões sociais, de violência e de fragmentação política. “Quem pode nos garantir que os dirigentes oriundos de um pleito sejam melhores do que os que governam a China atualmente?”: tal é, em substância, a sua mensagem. Os integrantes dessas novas camadas sociais sublinham a importância da contribuição dos migrantes para a prosperidade atual e defendem as medidas que podem melhorar suas condições de vida e de trabalho. Mas também insistem na necessidade de “civilizar” esses camponeses antes que a cidadania urbana lhes seja concedida5.
Esse novo contexto político constitui uma forma de resposta às contradições mais gritantes da sociedade. O ritmo frenético do crescimento e a expansão considerável da importância dos interesses sociais que o acompanha geram frustrações e desejos, os quais não podem mais ser satisfeitos a não ser por meio… do próprio crescimento. A promessa perpétua de uma sociedade futura melhor não é mais suficiente: muitos exigem garantias efetivas de que isso irá acontecer.
Diante dessa situação, as vertentes políticas que surgiram desde os anos 1990 não oferecem nenhuma resposta adequada. O retorno à “tradição”, que toma a forma de uma regeneração do confucionismo, de modo algum se afina com o crescimento. Além disso, ele contradiz o desejo de experimentar novos estilos de vida. A nebulosa de grupos e de pessoas que é chamada na China de “nova esquerda” pode até mesmo seduzir alguns, por causa das suas referências à renovação nacional, mas a sua vontade de restaurar a coletivização da economia e de retornar ao igualitarismo não suscita interesse algum numa população conquistada pelas delícias da vida moderna. Quanto ao liberalismo político, ele não raro é percebido, tanto pelos intelectuais quanto pelos chineses comuns, como portador de um novo caos do tipo do massacre da Praça Tiananmen.
Canais de expressão legítimos
A nova “vertente”, que revela ser tão difusa quanto as precedentes, adota um ponto de vista diferente. Ela não busca promover uma receita, quer esta venha do passado, quer do mundo exterior, mas sim encontrar uma solução para o impasse do crescimento. Em sua concepção, o descontentamento social está crescendo porque ele não dispõe de canais de expressão legítimos. Da mesma forma, a ascensão social vai ficando emperrada em razão do papel que desempenha o capital social e político no sucesso profissional. Se um revertério da conjuntura econômica viesse a desanimar a população em sua fé num futuro melhor, aumentariam os riscos de essas frustrações desembocarem numa explosão política.
Conforme comentou o sociólogo Chen Yingfang, “se, numa sociedade, as camadas médias urbanas, que dispõem de uma capacidade de ação legal e de uma racionalidade política, não dispuserem dos meios necessários para defender seus interesses de maneira eficiente; ou se o poder interferir sistematicamente para impedir essa expressão, recorrendo para tanto à lei ou à ação política, e até mesmo à violência ou à ameaça, então os cidadãos podem optar pela ação revolucionária. O que vem a ser uma opção mais onerosa em termos de subversão social e de riscos políticos”6.
Para conjurar esse fantasma, a nova vertente propõe fazer convergirem forças envolvidas com os movimentos sociais e as atividades associativas. Juntas, elas poderiam modificar os fluxos de mobilidade social sem entrarem no campo político. Trata-se de obrigar o Estado e, principalmente, as administrações locais a adotarem políticas sociais além de medidas de proteção jurídica. Na opinião de um ex-professor agora dedicado aos negócios, “a sociedade é a única força capaz de modernizar o país e de ampliar as margens de liberdade e de justiça social”. A tática tem um vínculo claro com as análises de economistas que preconizam o crescimento da demanda interna por meio do aumento da renda dos menos favorecidos, além da “ampliação da segurança” das condições de vida, próprias para estimular o consumo7. Com isso, fica mais fácil compreender por que o discurso agrada aos dirigentes do país. Uma sociedade mais ouvida em suas aspirações, e dotada de instituições modernizadas, garantiria a perenidade
do seu poder.
Muito pouco revolucionário, tal projeto permite esquivar a questão de uma mudança de regime, e reforça, portanto, o PCC. Ao vincular estreitamente as opções políticas aos interesses individuais, ele se preserva da tendência de se tomarem medidas irrefletidas e da repressão, e deixa ao mesmo tempo um espaço para o social. No entanto, coincide inegavelmente com as evoluções sociológicas do país. As camadas sociais mais ativas – as famosas classes médias – se mostram cada vez mais decididas a defender seus interesses, sem para tanto exigirem uma mudança brutal de regime.
Mas não é menos verdadeiro que a estratégia que visa evitar interferir no campo político (não podemos mexer nos fundamentos do poder), preferindo passar pelo social (vamos agir de tal forma que os direitos individuais e a justiça social sejam respeitados), tem diante de si um bom número de obstáculos. Assim, a lógica de defesa dos direitos não garante o mesmo tratamento para todos os cidadãos: de fato, o direito é um produto da luta política. Nesse contexto, as “classes médias” teriam a legitimidade necessária – nem que seja porque elas consomem – para se tornarem os pilares dessa democratização conservadora. Inversamente, as camadas sociais desfavorecidas – os migrantes, por exemplo – enfrentariam dificuldades para se fazer ouvir e poderiam se ver tentadas a empreender ações “revolucionárias”.
Existe outra armadilha: a resistência às mudanças por parte das burocracias locais – e, sem dúvida, também de uma parte da alta administração. A exploração dos migrantes ou a tomada de controle sobre o setor imobiliário geram lucros tão importantes que o governo central terá muitas dificuldade para reformar essas práticas.
*Jean-Louis Rocca é pesquisador no Centro de Estudos e de Pesquisas Internacionais (CERI-Sciences-Po) e autor de La Condition chinoise (Paris, Karthala, 2006) e La Chine vue par ses sociologues (Paris, Presse de Sciences-Po, 2008).