A devastação do Cerrado segue sendo ignorada pela sociedade
O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, ocupa 24% do território nacional e é considerado a savana mais biodiversa do mundo, concentrando 5% de toda a biodiversidade do planeta e 30% da biodiversidade do Brasil.
Nasci em 1952, na comunidade de Pedreiras, município de Caxias, no Maranhão. Cresci vendo minha mãe de palmeira em palmeira colhendo e quebrando o nosso sustento. Era do coco babaçu que minha família vivia. Foi do coco babaçu que aprendi que, além de dona Selvina, outra mãe também fazia parte de mim: a mãe palmeira.
Foi de babaçual em babaçual que minha infância correu, minha juventude floresceu e a mulher que hoje sou amadureceu. Mãe, avó, quebradeira, negra, liderança. Muitas em uma só, todas de converteram em Socorro. Maria do Socorro. Que, agora, pede socorro. Dia 11 de setembro é Dia Nacional do Cerrado. Mas, infelizmente, não temos muito o que comemorar.
Se antes aqueles babaçuais pareciam não ter fim, com o tempo – não sei se por ir crescendo – comecei a enxergar a linha que, insistentemente, nos impunha limites. Limites? A gente não vive assim. Por que há cercas? Nossa terra era coletiva! Por que não podemos mais entrar ali? Mas era dali que vinha o nosso sustentou! Vendeu? Como assim? E tinha dono? Mas não era território da mãe palmeira? Pois é, eu fui descobrindo que não era simples assim.
Em meados de 1970, quando já casada e com o primeiro filho nos braços, comecei a ouvir que o progresso estava chegando ali. Progresso? A linha se aproximava dia após dia. As paisagens verdes dos babaçuais, misturadas àquelas plantas rasteiras iam dando lugar a uma imensidão tão amarela que me lembrava a palidez de algo sem vida. Ano após ano, a linha aumentava na mesma proporção que minha vida diminuía.
Eu queria saber o que estava acontecendo. Foi quando ingressei nos trabalhos desenvolvidos pela Igreja Católica em meados de 1980 que descobri. O nome do tom pálido era agronegócio. Eles diziam que ali era terra de ninguém. Que não existia gente, nem bicho, nem nada. E que para o Brasil crescer, fariam dali a sua mais nova casa.
Como assim não tinha nada? Eu estava ali, minha família estava ali. Eu e outras centenas de pessoas que vivem no Cerrado. Sim! O Cerrado. Aquele que, ao contrário do que diziam, é habitat de cerca de 10 mil espécies de plantas, das quais 44% são exclusivas do Bioma. Que tem uma fauna riquíssima com 250 espécies de mamíferos, mais de 800 espécies de aves e peixes, 262 espécies de répteis e 204 tipos de anfíbios. Quer mais vida do que isso?
Savana mais biodiversa do mundo
O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, ocupa 24% do território nacional e é considerado a savana mais biodiversa do mundo, concentrando 5% de toda a biodiversidade do planeta e 30% da biodiversidade do Brasil. Ele está presente em doze estados: Minas Gerais, Goiás, Tocantins, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, São Paulo, Paraná Rondônia e Distrito Federal. Nele vivem cerca de 25 milhões de pessoas, distribuídas em 1.330 municípios.
No Cerrado vivem mais de 80 etnias indígenas, além de quilombolas, extrativistas, geraizeiros, vazanteiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, apanhadores de flores sempre-viva, pescadores artesanais, barranqueiros, fundo e fecho de pasto, sertanejos, ciganos, agricultoras e agricultores familiares, entre tantos outros.
Conhecido como o berço das águas ou a “caixa d’água do Brasil”, o Cerrado abriga oito das doze regiões hidrográficas brasileiras e abastece seis das oito grandes bacias hidrográficas do Brasil (Amazônica, Araguaia/Tocantins, Atlântico Norte/Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná/Paraguai).
O Cerrado é o responsável por garantir os fluxos hídricos entre as diversas regiões do país. Por exemplo, o vapor de água produzido pela Amazônia nunca chegaria em forma de chuva no Sudeste não fosse o trabalho ecossistêmico prestado pelo Cerrado. É ele quem faz a interligação entre os demais biomas.
Os troncos e galhos retorcidos escondem a riqueza das raízes profundas que são as responsáveis por armazenar as águas em nossos grandes aquíferos, como uma grande esponja que pega água de cima e armazena em baixo. A contribuição hídrica do Cerrado para a vazão da bacia do Paraná chega a 50%; à bacia do Tocantins chega a 62%; e a 94% da bacia do São Francisco. O bioma Pantanal é totalmente dependente do Cerrado e grande parte da energia consumida no Brasil é gerada com as águas do Cerrado.
Agronegócio
Resultado dessa expansão desenfreada da fronteira agrícola, hoje, o Cerrado é o bioma mais ameaçado do país. A devastação da cobertura vegetal do bioma já chega a 52% e isso compromete nascentes, rios, riachos e seus povos. Crises hídricas, como as que vêm afetando várias regiões do país, estão relacionadas com essa devastação, uma vez que o Cerrado é o responsável por transportar a umidade e o vapor d’água da bacia amazônica para as regiões Sul e Sudeste do Brasil, permitindo a regularidade do regime de chuvas.
O fato é que desde que as monoculturas, principalmente as de soja, eucalipto, além da pecuária extensiva chegaram no Cerrado, dados oficiais do Ministério do Meio Ambiente (MMA) de 2018 mostraram que mais da metade da vegetação nativa do bioma não existe mais.
De acordo com o MMA, mais de 14 mil quilômetros quadrados do Cerrado foram desmatados entre 2016 e 2017, o equivalente a 1,4 milhão de campos de futebol. Além disso, segundo dados do MapBiomas, o Cerrado foi o segundo Bioma que mais perdeu vegetação nativa de 1985 a 2017. A maior expansão agropecuária nesses anos se deu na Amazônia (35.9 Mha), seguido pelo Cerrado (21 Mha).
Violência
Além disso, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, agricultoras e agricultores familiares, grandes guardiões da biodiversidade do Cerrado, têm seus territórios e vidas ameaçados. Somente em 2017, de acordo com dados do Caderno Conflitos no Campo Brasil, foram registradas mais de 880 áreas em conflitos agrários no país, 97 na Bahia e 180 no Maranhão. Dos 71 assassinatos no campo – o maior número registrado desde 2003 -, 11 eram quilombolas – 9 somente na Bahia – e seis indígenas.
Além disso, 25 indígenas sofreram tentativas de assassinato, 21 somente no Maranhão, e 36 quilombolas – 31 no Maranhão – receberam ameaças de morte, além de 6 quebradeiras de coco – todas no Maranhão -, 4 camponeses de fundo e fecho de pasto, 3 extrativistas e 1 geraizeiro. A maioria dos casos envolve uma disputa de terras e territórios.
Já em 2018, o mesmo estudo revelou que 574 famílias foram expulsas de suas terras no Centro-Oeste, região com a maior concentração do bioma Cerrado no Brasil, 550 somente no estado do Mato Grosso e 24 no estado do Mato Grosso do Sul, áreas de grande expansão do agronegócio e de grandes empreendimentos. Comparado com 2017, o aumento foi de 14.350%, quando foram registradas 4 expulsões. O Cerrado é o segundo Bioma que mais sofre com os conflitos do campo, ficando atrás somente da Amazônia.
É para chamar a atenção para os perigos que o Cerrado e seus povos vêm enfrentando e as consequências disso para toda a sociedade brasileira que faremos, em Brasília, o IX Encontro e Feira dos Povos do Cerrado. Com o tema: Pelo Cerrado Vivo: diversidades, territórios e democracia, de 11 a 14 de setembro, o encontro, promovido pela Rede Cerrado, contará com uma programação voltada principalmente para debater as pautas prioritárias do bioma e seus povos e ser um espaço dedicado a diversidade de vozes, culturas e modos de vida de povos e comunidades tradicionais que vivem no Cerrado.
São esperados mais de 500 participantes vindos dos 12 estados onde a savana brasileira está presente. Além disso, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado fará a entrega de uma petição pública com mais de meio milhão de assinaturas para estimular a Câmara dos Deputados a votar pela aprovação da PEC 504/2010, cujo objetivo é transformar o Cerrado e a Caatinga em Patrimônio Nacional, visando a diminuição do desmatamento e a conservação dos povos e modos de vida dos Biomas.
Maria do Socorro Teixeira Lima é quebradeira de coco babaçu e coordenadora geral da Rede Cerrado