A dignidade aprisionada
Nessas ocasiões, o sujeito parece não entender que está sendo preso. Já sob escolta, ele olha para mim, acreditando que tudo deve ser um engano, um erro que logo será esclarecido
– Agora você será levado, devendo aguardar, que logo lhe chegará um documento do processo, que dirá como ficará sua pena.
Eu terminava uma audiência, em que o apenado, um rapaz de não mais de 21 anos, magro, alto e pobre, condenado por tráfico, até então em regime semiaberto com tornozeleira, tivera a domiciliar revogada.
Ele soubera da audiência e compareceu voluntariamente, sem imaginar que seria preso assim que colocasse os pés na sala.
Diferente da prisão em flagrante, posteriormente convertida ou não em prisão preventiva, e que se dá longe dos meus olhos, a prisão em Juízo, a partir de ordem judicial prévia, ocorre não raras vezes na minha frente, como foi o caso.
Nessas ocasiões, o sujeito parece não entender que está sendo preso. Já sob escolta, ele olha para mim, acreditando que tudo deve ser um engano, um erro que logo será esclarecido. Talvez a sua mente esteja confusa, com lembranças, estratégias, medos e esperanças, tudo sobrepondo-se. Quando, porém, o detido se dá conta que a prisão é real, que não há mais volta, a cor some da face, os olhos se avermelham e os dentes mordem os lábios. Com as mãos trêmulas e a respiração ofegante, o movimento corporal fica desconexo. Por vezes lágrimas incontidas brotam.
“É a lei, eu cumpro a lei”, reflito. Acontece que o teórico nazista do direito, Carl Schmitt, já dizia que as ordens deviam ser cumpridas, em obediência funcional, sem alertar de que esse proceder podia significar a trivialização do terror do Estado. Isso, aliás, foi bem processado e registrado mais tarde, no Tribunal de Nurembergue.

O preso pode não saber exatamente o que o espera, ou prefere não saber, nega saber, mas eu sei…
No Brasil desde século XXI, cumprir a lei e mandar prender alguém nunca se encerra na restrição da liberdade. Há sempre algo mais duro, mais cruel. Há o dormir no chão, o ficar confinado dia e noite em um cubículo úmido e abafado, sem acesso aos bens básicos da vida, em alguns lugares sem acesso até mesmo à água corrente ou energia elétrica; há o infectar-se por tuberculose, furúnculo, escabiose, leptospirose; há o morrer, ser morto, simbólica ou materialmente.
As prisões são o reflexo monstruoso de nossa sociedade, em uma nação que ainda possui, nos estertores do racismo, pessoas vivendo em condições degradantes, extremamente injustiçadas, cuja única esperança é de um dia serem libertadas, não só das grades, mas da miséria.
Assim, a prisão de um ser humano, ainda que sob um manto de legalidade, não pode ser normal, não pode se tornar banalizada, não nos cárceres do Brasil.
– Doutor, me ajude, me dê mais uma chance!
– Eu vou verificar a sua situação, não posso tudo, tenho que seguir a lei – “seguir a lei!” – mas lhe garanto que seu caso não ficará parado, você não será esquecido aqui.
– Tá bom doutor.
E lá se foi o preso, claudicante.
Quanto a mim, levantei e saí da sala com um andar bem-comportado, como se espera de alguém que deve decidir sobre as coisas, alguém que manda prender, um juiz, no caso.
A dignidade, porém, essa seguiu para a cela, aprisionada.
João Marcos Buch é autor e juiz de direito.