A dinastia Kim ou os três corpos do rei
As discussões do Grupo dos Seis – EUA, Japão, Coreia do Sul, China, Rússia e Coreia do Norte –, interrompidas após a morte de Kim Jong-il, foram retomadas para obter um recuo no programa nuclear norte-coreano. Mas enquanto o novo presidente multiplica suas visitas às Forças Armadas, seu irmão prevê o colapso do regimeBruce Cumings
De viagem a Cingapura, no dia da morte de Kim Jong-il, em 17 de dezembro de 2011, eu me encontrava afortunadamente a uma distância confortável do “barulho” dos “especialistas” norte-americanos. Um antigo conselheiro do presidente George W. Bush não hesitou em prever nas colunas do New York Times o “fim da Coreia do Norte, tal como a conhecemos. […] O regime será incapaz de manter a unidade”, o filho, inexperiente, não estando à altura de enfrentar os velhos caciques do Exército.1 Alguns observadores falaram em um possível golpe de Estado; outros, ao contrário, apostaram no endurecimento do regime orquestrado, desde sua entrada em cena, por Kim Jong-un para se impor aos militares; outros, ainda, visionaram o cenário de um esfacelamento do país, que obrigaria os soldados norte-americanos afetados na base japonesa de Okinawa a intervir para recuperar armas nucleares antes que elas se perdessem na natureza…
Desde que o ex-presidente da Coreia do Norte foi vítima de um ataque cerebral em agosto de 2008, o maior temor de Washington, expresso em diversas ocasiões pela voz de sua secretária de Estado, Hillary Clinton, permanece sendo o de uma luta no cume do poder. O cenário parece ser aquele da União Soviética quando morreu Josef Stalin ou da China pós-Mao Tsé-tung. Todos querem ignorar o que aconteceu depois da morte de Kim Il-sung, em 1994: nada.
Minha primeira visita à República Popular Democrática da Coreia (RPDC) foi em 1981. Eu tinha ido a Pequim com a intenção de voltar pela União Soviética a bordo do trem transiberiano. As autoridades consulares tinham então exigido que um visto me fosse concedido pela embaixada soviética em Pyongyang. Desde minha chegada ao local, um conselheiro, muito provavelmente um agente da KGB, tinha gentilmente me convidado a degustar um conhaque e a explicar as razões de minha visita à Coreia. Logo ele buscou saber minha opinião sobre Kim Jong-il, que tinha acabado de ser oficialmente designado para suceder a seu pai durante o sexto congresso do Partido Comunista, em 1980. Eu respondi que ele me parecia um tanto insignificante, gorducho e de aparência banal. “Oh! Vocês, norte-americanos”,retrucou ele, “apegam-se demais à personalidade. Vocês não se dão conta de que, por trás dele, existe um bloco burocrático constituído de pessoas cuja ascensão ou queda é indissociável do sistema. Eles realmente sabem o que fazem”,adicionou, antes de me aconselhar a “voltar em 2020 para ver seu filho no comando”.
Essa predição foi a mais correta das que tive a oportunidade de ouvir sobre o destino desse estranho Estado ao mesmo tempo comunista e dinástico – mesmo que Kim Jong-il tenha morrido aos 69 anos, o que adiantou em alguns anos o processo de sucessão. O povo norte-coreano viveu um milênio de monarquia e um século de ditadura: primeiro, a da era colonial japonesa (de 1910 a 1945), que obrigava os coreanos a venerar o Imperador; e depois a tomada de poder da família Kim, que dura sessenta anos. No dia 8 de janeiro de 2012, dia do aniversário de Kim Jong-un (o ano exato de seu nascimento, 1983 ou 1984, continua um mistério), a televisão nacional transmitiu um documentário de uma hora atribuindo ao jovem rapaz todas as virtudes. O neto de Kim Il-sung foi comparado aos lugares e monumentos simbólicos visitados por seu ilustre avô e, mais particularmente, às “montanhas de cabeça branca”. Essa longa cadeia vulcânica na fronteira chinesa, berço da identidade norte-coreana, foi palco da guerrilha liderada por Kim Il-sung contra os japoneses nos anos 1930 e local de nascimento oficial de Kim Jong-il, em 1942. O documentário valorizava também a linguagem corporal de Jong-un. Grande e forte, o jovem homem aparecia sorrindo, apertando mãos, mostrando já sua postura de homem político: uma pessoa comum perfeitamente à vontade no papel de “sucessor bem-amado”. Apagada, a imagem de seu pai, austero, autoritário e cínico, escondido em sua roupa de esqui, com o olhar oculto pelos enormes óculos de sol. Mais marcante ainda: o documentário insistia na semelhança de traços e aparência do jovem rapaz com o avô, quando este último assumiu o poder, no final dos anos 1940; as fotos eram exumadas a fim de mostrar os cortes de cabelo idênticos, como se o neto fosse o herdeiro direto do patrimônio genético inalterado do avô.
A cultura norte-coreana – tanto a poesia como a literatura – está impregnada de tudo o que se relaciona com o cerimonial, os rituais, as tradições e mesmo as brigas envolvendo as famílias reais, particularmente sobre a questão da sucessão do rei. Muitos assumiram o poder extremamente jovens. O rei mais ilustre, Sejong (1397-1450), que impôs o alfabeto nacional coreano (o hangeul), tinha apenas 21 anos quando subiu ao trono, na presença do pai. Como Jong-un, Sejong era o terceiro filho: o mais velho tinha sido banido de Seul em razão de um comportamento grosseiro, e o segundo filho havia se tornado monge budista. Da mesma maneira, em 2001, Kim Jong-nam, o filho mais velho de Kim Jong-il, embaraçou o regime quando foi detido no momento em que tentava entrar no Japão com falsa identidade (para visitar a Disneylândia, diz-se). Ele,desde então, preferiu se instalar em Macau, capital mundial do jogo. Nada se sabe sobre o segundo filho, que, aliás, não estava presente no funeral do pai.
“Não insulte nosso líder”
Entre as diversas ideias preconcebidas veiculadas em relação aos asiáticos, existe aquela de que eles detestam a humilhação. Aos olhos dos norte-coreanos, o rosto do líder reflete o prestígio da nação. Em 1981, pouco depois de deixar o aeroporto, e quando passávamos em frente a imensos retratos de Kim Il-sung, meu guia tinha gentilmente me avisado: “Por favor, não insulte nosso líder” (coisa que eu não tinha nenhuma intenção de fazer, visto que não queria comprometer minha saída do território). A doutrina em vigor, tantona época como hoje, éo juch’e, ou chuch’e, um conceito que implica colocar a Coreia antes de qualquer coisa em seu espírito. Segundo o intelectual coreano Gari Ledyard, a letra “e”, colada ao vocábulo kukch, “a nação”, foi utilizada no discurso clássico para falar do rosto do país, sua dignidade.“O kukch’e”, escreve ele, “pode ser ferido, embaraçado, atrapalhado, insultado, sujo. Os membros da sociedade têm de se comportar de maneira apropriada, para que no final o kukch’e [a dignidade] não seja perdido.”Essas palavras mexem com os valores profundamente enraizados no inconsciente coletivo norte-coreano. Qualquer pessoa que tenha visitado esse país pode confirmar o quanto esses valores permanecem bem vivos, mesmo que eles se traduzam com frequência em um orgulho desmesurado ou em monumentos grandiloquentes. Mas isso é resultado também da vontade de afirmar a dignidade nacional que se perpetua.
O penúltimo dos reis da Coreia, Kojong, tinha apenas 11 anos quando subiu ao trono, em 1863. Até a maioridade, ele foi guiado pelo pai, Taewon’gun. Durante sua regência, o pai havia reavivado o neoconfucionismo, a ideologia dominante na época, e adotado uma política estritamente isolacionista em relação aos apetites dos diferentes impérios que batiam à sua porta. Ele entrou em guerra contra a França (1866) e contra os Estados Unidos (1871), e dois anos depois tentou bloquear a tentativa de invasão do Japão, no início da era Meiji. Foi a época mais emblemática do “Reino Eremita” e aquela durante a qual a ideologia do kukch’e foi a mais forte. As coisas mudaram quando Kojong atingiu idade para governar. Ele iniciou a reforma e modernização da Coreia, assinou “tratados desiguais” abrindo o país ao comércio e tentou colocar as grandes potências umas contra as outras. O sistema funcionou durante um quarto de século, antes de resultar na perda da soberania, em 1910. No museu da Revolução de Pyongyang, diante do qual se eleva a estátua de Kim Il-sung, com 18 metros de altura, os visitantes podem assistir a sessões de elogio a Taewon’gun, descobrindo estelas de pedra que simbolizam a fortaleza contra os bárbaros estrangeiros, ou ainda ouvir relatos edificando guerras coreanas contra os franceses e os norte-americanos.
Durante o funeral de Kim Jong-il, pôde-se ver seu cunhado, Chang Song-t’ack, 55 anos, que esteve por muito tempo no comando dos serviços secretos, caminhar atrás de Kim Jong-un. Atrás vinha Kim Ki-nam, que hoje tem mais de 80 anos e foi próximo de Kim Il-sung. Três gerações caminharam assim solenemente ao lado do Lincoln Continental de coleção decorado com o brasão de armas da família, que levava os restos mortais para sua última morada. Do outro lado da limusine estavam os chefes das Forças Armadas da quarta potência militar do mundo.
“A ideia determina tudo”
O ritual tinha sido o mesmo na morte de Kim Il-sung. Já na época os especialistas e os órgãos oficiais tinham disseminado diversas conjecturas. A Newsweek tinha publicado “The headless beast” [A fera sem cabeça].2 O comandante das forças norte-americanas na Coreia do Sul não parava de repetir que a Coreia do Norte iria em breve “implodir ou explodir”. No fim dos anos 1990, a iminência da queda do regime tinha virado o leitmotiv da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA). Após mais de duas décadas, a RDPC continua existindo. Em alguns anos, a longevidade do regime vai se igualar à da União Soviética. Pouco tempo antes da morte de Kim Jong-il, um universitário norte-americano em uma conferência afirmava que, com o falecimento do líder norte-coreano, as multidões se levantariam para derrubar o regime. A profecia não se realizou. Em uma espécie de histeria coletiva, as multidões em pranto se espremeram nas ruas para chorar a perda de seu líder, do modo como elas tinham se juntado em 1919 no funeral do rei Kojong, momento intenso do levante nacional contra a lei colonial japonesa.
Após a morte do pai, Kim Jong-il havia se retirado da vida pública, abrindo espaço para rumores de luta pelo poder. Ele tinha, no entanto, agido como qualquer sucessor designado deveria agir sob o antigo regime, permanecendo de luto pela morte do pai durante três anos. Em 1998, enquanto se celebrava o cinquentenário da criação da RDPC, Kim Jong-il havia aparecido em plena posse de seus poderes e pronto para assumir a direção do país. A fim de imortalizar o evento, a Coreia do Norte tinha escolhido aquele dia para realizar o lançamento de seu primeiro míssil de longo alcance.
O presidente tinha o costume de dizer que o comunismo tinha fracassado no Ocidente em consequência do empobrecimento e da erosão de sua pureza ideológica; a Coreia do Norte, por sua vez, tinha derrubado Karl Marx e voltado a Hegel – concluindo que “a ideia determina tudo”: uma fórmula de que os escribas neoconfucionistas de Taewon teriam gostado.
Kim Jong-un respeitará o longo período de luto antes de assumir suas funções? Não parece ser o caso. Ele já fez várias aparições públicas, sobretudo na ocasião de visitas a bases militares. Ele certamente tem muito a ganhar permanecendo discreto enquanto ganha experiência e deixando as rédeas do poder aos velhos guardas do regime. Eleições presidenciais serão realizadas neste ano tanto nos Estados Unidos como na Coreia do Sul, onde o presidente que deixa o poder, Lee Miung-bak, detestado pelo Norte em razão de sua extrema firmeza, não poderá se candidatar novamente. Na China, Hu Jin-tao deverá passar o poder em breve, e, na Rússia, a reeleição de Vladimir Putin não está assegurada. Nesse contexto de redistribuição dos papéis, parece sábio ser paciente. Enquanto isso, o poder busca, com Kim Jong-un, impor uma face do regime muito mais agradável do que a que seu pai deixou aos olhos da população.
Uma vez mais, meu interlocutor soviético tinha razão: eu estava errado em dar muita importância à aparência física. Pouco importa com quem ele se parece: o rei não pode estar errado. Ele pode até mesmo, como diz a lenda construída a respeito de Kim Jong-il, atingir vários buracos com um só swing em seu primeiro percurso de golfe. Em seu célebre ensaio Les deux corps du roi [Os dois corpos do rei], Ernst Kantorowicz escreve que existem dois reis: o primeiro, um homem comum, com suas fragilidades, confrontado a todas as contingências humanas, investido da carga real; e o segundo que, em sua eterna perfeição, encarna a monarquia.3 Os norte-coreanos assim fizeram do defunto Kim Il-sung, um presidente para a eternidade, livre de toda imperfeição. O mausoléu erigido em sua glória é o edifício mais imponente do país. O rosto de Jong-un, tão parecido ao seu, seria capaz de apagar a memória dos dezessete anos do reino de Kim Jong-il, marcados por inúmeros desastres, inundações, secas, desabamento completo da economia e fome causando milhares de mortos? O líder defunto tem em sua lista uma só realização, tão singular quanto questionável: a aquisição de armas nucleares.
O homem é assim feito: conscientemente ou não, ele está em busca de um passado ideal. Kim Jong-un ainda não tem 30 anos, mas se meu interlocutor soviético tiver razão nesse ponto também, nós poderíamos desde já nos preparar para ver seu rosto durante longos anos.