A disputa da memória coletiva é a disputa pela cidade
Nos últimos dois anos, movimentações contrárias às homenagens públicas feitas a escravocratas, ditadores, torturadores e violadores de direitos humanos em geral têm ganhado força nos centros urbanos. Suas naturezas são distintas, mas o objetivo é o mesmo: que essas figuras saiam de cena, que o processo de justiça de transição brasileiro seja retomado, e que uma nova memória coletiva seja construída
Novembro chegou. É um mês repleto de movimentações em torno do dia 20, “Dia da Consciência Negra”. Algumas cidades do Brasil guardam o dia como feriado e não era incomum que, até pouco tempo atrás, nesse dia fossem celebrados os “avanços” do país, desde o período colonial, na superação do racismo. Em outras, onde essa não passa de uma data qualquer, justifica-se a ausência de qualquer rememoração com o mito da democracia racial, sintetizado na ideia de que “no Brasil não há racismo”, e em falas que endossam o distanciamento temporal entre o período de escravização sistemática de pessoas negras e os dias de hoje.
O ano de 2020 foi bastante chacoalhado pelo movimento black lives, que teve repercussão global após o assassinato de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos. O massacre e a violência contra a população negra no Brasil nesses quase dois anos de pandemia da Covid-19 não arrefeceram[1] e, assim como no país norte-americano, encaramos a organização de intensos protestos e manifestações de rua, mesmo em plena crise sanitária.
Ganhou a atenção da mídia, e da população em geral o uso político das táticas de ação direta de destruição dos bustos, das estátuas, e das imagens que homenageavam pessoas e grupos que escravizaram, torturaram, e promoveram perseguições étnicas, raciais, políticas, bem como outras violações do que reconhecemos hoje como direitos humanos.
Borba Gato e Pedro Álvares Cabral não escaparam da revolta latente que vem se acumulando ao longo dos séculos da história brasileira. Talvez mais do que nunca, na leitura de alguns, e mesmo que tardiamente, na leitura de outros, é inegável que bandeirantes, escravizadores, torturadores, ditadores têm tido suas imagens confrontadas e suas violências escancaradas.
No Brasil, movimentos como vidas negras importam foram importantes para retomar o tema da justiça de transição brasileira, que definha desde o início do governo Bolsonaro e da nomeação da ministra Damares Alves para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
A luta por memória, verdade e justiça é imprescindível na construção de um imaginário coletivo democrático. O confronto entre narrativas, tanto de lembrança, quanto de esquecimento, é parte de uma disputa que busca definir quais são os grupos que têm legitimidade para reivindicar a sua perspectiva como verdadeira. A disputa da memória coletiva é uma etapa da disputa do poder de narrar a história conforme sua própria ideologia, conforme sua própria visão de mundo.
Essa memória coletiva se expressa no que chamamos de locais de memória, que são os memoriais, os monumentos mais importantes, os hinos oficiais, os quadros célebres, as obras literárias e artísticas, os patrimônios e logradouros públicos etc. Esses lugares são, portanto, reservados para expressar a versão consolidada, “oficial”, do passado de determinada coletividade, de determinada sociedade.
No Brasil, até muito recentemente, a versão oficial foi a versão de pessoas e grupos opressores, que escravizaram negros e indígenas, que impuseram a ditadura civil-militar, que perseguiram e torturaram milhares de opositores. Esses grupos e essas pessoas conseguiram emplacar sua versão dos acontecimentos, por estarem na posição de “vencedores”, e por deterem o poder de impor suas narrativas como verdadeiras a partir da própria estrutura e burocracia institucional do Brasil.
Esse cenário de desigualdade, violência e opressão exponencial ensejou novas mobilizações na esfera política institucional. Alguns mandatos de partidos do campo progressista têm se engajado na elaboração de projetos de lei que revisitem os locais de memória das cidades e dos estados, a partir de uma perspectiva crítica em relação às narrativas “oficiais”.
Os patrimônios públicos são elementos da cidade que fazem parte da vivência cotidiana de nossos cidadãos e cidadãs. Os bustos, esculturas, edifícios, placas, por terem lugar de destaque na cena urbana, influenciam diretamente a percepção social sobre a importância de determinadas figuras públicas na história de nossa cidade, estado e país. Essas iniciativas, desenvolvidas conjuntamente entre cidadãos e cidadãs, movimentos sociais populares e parlamentares, buscam concretizar tanto a dimensão da reparação como assumir uma função pedagógica, trazendo à tona as narrativas dos “vencidos”, que ao longo de séculos foram silenciadas e invisibilizadas.

Nos anos finais da ditadura civil militar, que assolou o país entre 1964 e, oficialmente, 1985, teve início o processo de transição para a democracia, com a promulgação da Lei de Anistia (Lei n. 6.683/79). Recepcionada posteriormente pela Constituição Federal de1988 no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), a referida normativa se impôs como uma lei de memória, dando a tônica do processo de justiça de transição brasileiro.
A memória, a verdade e a justiça se constituíram a partir de muita luta e resistência dos movimentos civis e populares mobilizados antes mesmo da “abertura democrática”. Constituíram-se como os três pilares que sustentam as políticas públicas brasileiras criadas após o fim da ditadura civil-militar para garantir a reparação às pessoas e familiares que foram alvo das violências do regime. Hoje, reivindicamos que esses mesmos elementos embasem as políticas públicas a serem criadas para coibir violações massivas aos direitos humanos, muitas delas heranças do nosso período ditatorial, para que essa lógica não se repita ou se perpetue.
Desde 2014, a partir de relatório publicado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), no que tange às conclusões e recomendações, presentes no Capítulo 18, existe a orientação para a retirada de homenagens às personalidades e aos grupos que participaram ativamente de práticas graves de violações aos direitos humanos, sendo essa uma importante ferramenta de concretização da justiça de transição no país.
Essas violências, que tiveram origem ainda no período colonial e não foram encerradas com a abolição da escravidão, em 1888, começaram a ser perpetradas antes mesmo da ditadura civil-militar. O passado escravocrata, patriarcal e autoritário brasileiro continuou nos assombrando, e produz efeitos contemporâneos e concretos sobre as pessoas racializadas (negras, indígenas), materializando-se na forma de dificuldades de acesso aos direitos básicos e aos espaços de conhecimento e poder.
As condecorações, exaltações e menções prestadas em tempos coloniais, autoritários e repressores da nossa história aos violadores de direitos humanos devem ser revisitadas e revistas, observando-se os princípios que orientam a democracia e o processo de justiça de transição brasileiro.
Iniciativas legislativas dessa ordem têm se mostrado uma tendência global. Países afetados por governos autoritários e ditatoriais, que tenham levado a sério seus processos de justiça de transição e que respeitam os direitos humanos, não exaltam esses períodos históricos, cercado de controvérsias, com homenagens públicas, registradas na forma de monumentos, bustos, estátuas, logradouros e edifícios públicos etc.
As propostas encontram alinhamento com o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), documento que possui diretrizes e objetivos estratégicos bem definidos, no sentido de “modernizar a legislação relacionada com promoção do direito à memória e a verdade” e de “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre os direitos humanos”.
Diversas iniciativas estaduais encabeçaram projetos de legislação semelhantes. Como exemplo, podemos mencionar o PL n. 99/2013, de Sergipe, o Decreto n. 30.618/2015, do Maranhão, bem como podemos citar movimentações que ocorreram em Porto Alegre e no Paraná. Em Florianópolis/SC, em Fortaleza/CE, e em Ribeirão Preto/SP, em 2021, três mandatos coletivos eleitos para o legislativo municipal articularam ou protocolaram seus PLs.
Provocados pelo crescimento da violência contra a população negra, mas também contra indígenas, pessoas do campo e da periferia, esses projetos de lei parecem exercer uma importante função de retomar a discussão sobre o processo de justiça de transição no país. A ampliação do conceito, para além dos casos de violência, tortura, mortes e desaparecimentos promovidos durante a ditadura civil-militar, é uma forma de indicar que desde o período colonial o Brasil não acerta as contas com seu passado.
Políticas de memória, verdade e justiça precisam ser retomadas. Um país que não se lembra do passado tem grandes chances de reproduzir equívocos semelhantes no presente e no futuro. Um país que toma acriticamente como verdadeira a narrativa oficial dos fatos não acolhe as vítimas de violências promovidas pelo próprio Estado contra vários grupos, cidadãos e cidadãs. Um país que não almeja ser justo por meio da reparação de seus próprios equívocos legitima o uso da violência e o abuso de poder dos seus governantes.
Nossa prioridade deve ser desvelar a verdade, dando e acolhendo as vozes das vítimas dos diversos tipos de violências e violações de direitos promovidas pelo Estado brasileiro. Assim, honraremos a memória e a história daqueles e daquelas que não estão mais entre nós, e poderemos avançar rumo à valorização e consolidação dos marcos democráticos em nosso país.
Bruna Martins Costa é advogada popular, doutoranda (UnB) e mestra (UFRJ) em Direito. Integra a International Network and Observatory on Global Enforced Disappearence (ROAD) e o Laboratório de Direitos Humanos (LADIH/UFRJ).
[1] Essas violências se manifestam na forma de distribuição desigual do luto, entre diferentes grupos da nossa cidade, dependendo do território que ocupam, da classe social que pertencem, da origem étnica e da cor de pele, da religião a qual se filiam, do gênero que performam, da sexualidade que experienciam. Isso já foi tratado por mim em maio deste ano em “Luto seletivo, estratégia de invisibilização”, Le Monde Diplomatique Brasil, 12 maio 2021.