Luto seletivo, estratégia de invisibilização
O que há de diferente entre as mortes do ataque em Saudades, a chacina no Jacarezinho e as mortes por Covid-19
Dia 5 de maio de 2021. Local: Saudades, município de cerca de 10 mil habitantes no interior de Santa Catarina, com população majoritariamente descendente de alemães.
O ocorrido: Um jovem de 18 anos, bastante conhecido na cidade, entra em uma creche municipal, ataca professoras e estudantes, e, em seguida, tenta suicídio.
O desfecho: Duas mulheres e três crianças são assassinadas e o jovem é preso.
A repercussão: Houve comoção nacional. Os moradores do município não conseguiam entender o que levou o rapaz ao ataque. Um vereador do município – e parente de uma das vítimas – disse que ele era o tipo de pessoa que convidaria para estacionar sua bicicleta no portão da casa e entrar para o café. Era uma pessoa “normal”, ninguém achava que ele poderia se tornar um “criminoso”. Era insuspeito.
Dia 6 de maio de 2021. Local: Comunidade do Jacarezinho, zona norte do município do Rio de Janeiro, de população majoritariamente negra. É considerada por muitos um quilombo urbano.
O ocorrido: Logo após um encontro entre o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e o presidente Jair Bolsonaro, a polícia civil da capital fluminense emplacou uma operação policial para “coibir o aliciamento de menores para o tráfico na região”.
O desfecho: O caso é apontado como uma operação de vingança,[1] deixando 29 mortos, cinco feridos, marcas de tiros e poças de sangue por toda a comunidade.
A repercussão: Os veículos de mídia tradicional noticiam o caso como mais uma operação necessária na “guerra às drogas” e a polícia fluminense garantiu que houve troca de tiros entre traficantes e policiais, justificando o uso de tamanha ostensividade.
Dia 7 de maio de 2021: O Brasil se aproximou de 420 mil mortes por Covid-19, conforme os dados oficiais, provavelmente subnotificados. Se, em um primeiro momento, a epidemia era vista como produto de uma doença que afetava a classe alta, esse mito logo caiu por terra. Hoje, sabemos que as principais vítimas fatais da Covid-19 são pessoas pobres, negras, das periferias, dependentes do sistema público de saúde, que está inchado e à beira de um colapso.
Parece impossível traçar paralelos e costurar relações entre esses episódios, mas sugerimos que façamos o esforço. Os três eventos estampam o governo Bolsonaro e refletem as diversas facetas da sua política da violência.
O caso de Saudades traz à tona uma dimensão da violência que, aparentemente, demanda uma resposta micro, individualizada. Como nos romances de Sherlock Holmes, a boa sociedade – rica, branca, desenvolvida – é, como diz o nome, boa e perfeita; eventualmente gera uma ou outra “maçã podre”, é só remover do cesto para solucionar o problema. Está aí a razão para o evento ter sido tratado como um enigma pelo presidente em sua live: devemos chorar a perda das crianças e deixar que a pobre maçã podre, Fabiano Kipper, fique na cadeia ou morra. “A única maneira de parar um malfeitor armado é um homem de bem armado”, nas palavras de Eduardo Bolsonaro.
A chacina de Jacarezinho escancara uma concepção de violência macro, como política oficial de Estado. Essa concepção incorpora e potencializa as diretrizes de violência individual, mas faz participar da resposta um aparelhamento extensivo das forças oficiais. Não se trata de uma “maçã podre”, mas de um controle e extermínio contínuo dos marginalizados em produção incessante. Materializa-se, assim, a hiper militarização das polícias, a truculência e o abuso frequentes nas operações – mesmo durante a pandemia –, a “guerra às drogas” etc. É preciso defender a sociedade de seus perigos internos, conter e eliminar os “feios, sujos e malvados”. Ironicamente, no governo Bolsonaro, essa militarização dos conflitos sociais assumiu uma roupagem nova: a milicianização.
Por fim, o aumento diário de vítimas da Covid-19 mostra uma terceira dimensão de violência de Estado. Ainda que o discurso oficial esteja em constante deriva, não deixa de chamar a atenção que o último bastião do desespero (des)governamental tenha sido atribuir à China o feitio do vírus. Aqui, não se trata da maçã podre ou dos marginalizados, mas a boa e velha figura xenofóbica do estrangeiro ameaçador. Bolsonaro, que sabe “o que é guerra química, bacteriológica e radiológica”, alerta para uma ameaça que demandaria não só uma resposta do sistema público de saúde, mas das Forças Armadas.
Nesses três casos, em que o governo sistematicamente se esquiva de qualquer atribuição de responsabilidade, quais são as vidas que consideramos passíveis de luto? Estamos diante de exemplos paradigmáticos para tratar da desigualdade do viver, morrer e do enlutar na sociedade brasileira. Longe de querermos hierarquizar sofrimentos e avaliar quais deles são genuínos e justos, é fundamental tratarmos politicamente essa questão, com a seriedade que ela exige.
No campo da psicologia e da psicanálise, é comum que a temática do luto seja abordada a partir de três principais perspectivas, duas delas bem conhecidas e uma menos explorada.
Dentre as mais conhecidas, sabemos que o luto é composto por cinco etapas muito observáveis – negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Ainda que numa sociedade como a nossa a experiência de luto esteja em descrédito – pois os processos de perda e elaboração da falta são mal vistos frente aos atos de acumulação e pretensa completude –, ela em nada é patológica. Muito pelo contrário: obstruir ou pular uma das etapas é o que leva ao adoecimento.
É conhecido também que, desde Freud, o luto foi elevado à condição de um trabalho: o trabalho do luto, pelo qual o sujeito se desvincula do objeto perdido, recolhe-se e elabora para, em seguida, investir novos objetos. Nesse sentido, como qualquer outro trabalho, o luto pode ser bem feito, mal feito ou mediocremente feito. Do que se deduz logicamente que é incontornável. Ou elaboramos ou adoecemos.
A terceira abordagem, menos conhecida, é a de Lacan.[2] Para o psicanalista francês “só nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta”. Isso abre uma perspectiva política para o luto, uma vez que enlaça o sujeito ao objeto, laço que constitui o campo social.
Só somos capazes de luto na medida em que, de alguma forma, nos implicamos com a falta que fazemos ao outro, falta que produz desejo e laço. Só nos enlutamos por alguém se nos enredamos (socialmente, politicamente, economicamente) numa relação em que somos causados mutuamente, eu e o outro, e em que estamos no mesmo barco.

Assim, duas grandes vias se divisam. Podemos seguir no sentido da negação do luto – “não temos nada a ver com essas pessoas” – como procedimento fundamentador da necropolítica –, “são vidas dispensáveis”, “corpos estranhos a serem eliminados por um bem maior”. Ou então podemos assumir a alteridade do outro – “ainda que eu seja branco e eles negros, eu rico e eles pobres, eu viva no centro e eles na periferia” – como elemento constitutivo da nossa subjetividade, o negativo que nos produz e que nós produzimos – “nós fazemos parte de relações que nos determinam mutuamente”, “nós somos os avessos da mesma moeda” etc.
O tratamento do luto como uma perda que diz respeito a todos nós é um processo que revela sua constante e necessária interação com o campo político. Revela-se, assim, sua dimensão psicossocial.
Por que os governos procuram, com tanta frequência, regular e controlar quem será e quem não será lamentado publicamente? Por qual razão as mortes no ataque em Saudades/SC são motivo de comoção e as vidas usurpadas no Jacarezinho/RJ são justificadas como “um mal necessário” para que fins duvidosos sejam atingidos? Por qual motivo as mortes pela Covid-19 têm gradativamente deixado de sensibilizar? Quem são as principais vítimas da pandemia?
Os sistemas políticos contemporâneos, fundados numa lógica de capitalismo imperialista e neoliberal, dispõem de um poder que funciona produzindo ausências – invisibilidade, silêncio, esquecimento. Para esses propósitos, o apagamento biológico dos cidadãos (exemplificado pela expressão “CPF cancelado”, tão difundida entre a direita) vem associado a um apagamento simbólico, resultante de uma disputa pela memória.
Uma forma de se opor a isso é desenvolvendo estratégias de ocupação e visibilidade, insistindo na recuperação da capacidade de interrupção da normalidade, que nos faz pensar que o que acontece é normal, quando não é.[3]
A política não envolve só o conhecimento sobre as instituições, as leis, as técnicas, mas, também, sobre a gestão e a produção social dos afetos, elementos cruciais para compreendermos a formação de alianças, oposições e formas de adoecimento político e psíquico. Onde há poder, há resistência, e onde há “poder brutal a resistência se torna uma forma visceral”.
As respostas emergem como novas formas de resistência ligadas à reabilitação dos afetos, emoções, paixões, que convergem nas políticas da visceralidade.[4] É isso que vemos todos os dias, nas favelas e periferias, nas comunidades indígenas e quilombolas, no erguer-se de cada pessoa que teve sua vida impactada pela Covid-19.
O pensamento de uma outra vida possível somente é viável no caso de pessoas que têm suas vozes ouvidas, seus direitos acessados e garantidos, sua condição de cidadão reconhecida. Para aqueles que ainda estão buscando viabilizar suas existências enquanto sujeitos (as pessoas negras, indígenas, das comunidades, das periferias, LGBTQIA+, etc.), “a possibilidade é uma necessidade”.[5]
Precisamos criar outras gramáticas, de forma que sejamos capazes de compreender que o intenso investimento no sofrimento é parte das atribuições do neoliberalismo.[6] Precisamos articulá-las, de modo que nos tornemos conscientes de que nossas vidas são mais do que vidas de fúria.[7]
Há perdas radicais, nas quais nada pode ser recuperado. Entretanto, a vida continua e precisamos achar mecanismos para, de algum modo, encará-las. Esse enfrentamento passa pela boa elaboração do luto e o desrecalcamento de nossa dor partilhada, o que rompe com a paralisia melancólica, permitindo que nos movamos, resistindo e recriando possibilidades. Para que os vivos possam viver, precisam colocar as moedas de Caronte sobre os olhos de seus mortos, por mais que o morto seja o outro, um outro. O valor desse óbolo deve ser pago por todos.
Bruna Martins Costa é mestra em Direito (UFRJ), pesquisadora (LADIH/UFRJ) e advogada.
William Zeytounlian é mestre em História (UNIFESP), psicanalista (Instituto D’Alma e Sedes Sapientiae) e membro da Clínica Aberta (Casa do Povo).
Referências
BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do luto e da violência. São Paulo: Autêntica, 2019.
LACAN, Jacques-Marie. Seminário 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
MBEMBE, Achille. Poder brutal, resistência visceral. São Paulo: N-1. Edições, 2019. (Série Pandemia). Disponível em: <https://issuu.com/n-1publications/docs/cordel_mbembe>.
SAFATLE, Vladmir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian. Introdução. In: SAFATLE, Vladmir, SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paul
[1] São chamadas de operações de vingança aquelas que vêm em resposta à morte de um policial durante uma ação. A brutalidade no Jacarezinho provavelmente carrega marcas de revanchismo, uma vez que um policial foi morto logo no começo da ação do dia 6 de maio de 2021.
[2] LACAN, Jacques-Marie. Seminário 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
[3] MBEMBE, Achille. Poder brutal, resistência visceral. São Paulo: N-1. Edições, 2019. (Série Pandemia). Disponível em: <https://issuu.com/n-1publications/docs/cordel_mbembe>.
[4] MBEMBE, Achille. Poder brutal, resistência visceral. São Paulo: N-1. Edições, 2019. (Série Pandemia). Disponível em: <https://issuu.com/n-1publications/docs/cordel_mbembe>.
[5] BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do luto e da violência. São Paulo: Autêntica, 2019.
[6] SAFATLE, Vladmir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian. Introdução. In: SAFATLE, Vladmir, SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. São Paulo: Autêntica, 2021.
[7] BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do luto e da violência. São Paulo: Autêntica, 2019.