A droga da exclusão
Confira o quarto artigo da série do Le Monde Diplomatique Brasil sobre a cracolândia paulistana, exclusiva para versão digital. Com diferentes olhares – jurídico, urbano, habitacional, dos movimentos sociais e do patrimônio histórico –, o objetivo do especial é traçar um diagnóstico da situação, avaliar as políticas adotadas e, quando possível, apontar caminhos ou soluções. Neste texto, Leon Garcia, psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP e do CAPS Álcool e Drogas da Sé, fala sobre o ponto de vista da saúde mental
Participei de reuniões sobre a cracolândia com os três últimos prefeitos de São Paulo. Na mais recente delas, em janeiro de 2017, a primeira grande reunião da gestão Dória sobre o tema, havia mais coronéis da PM e delegados do que psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. Pensei que, finalmente, iria ouvir a cúpula da segurança pública paulista explicar por que há vinte anos não consegue diminuir a entrada de crack em um perímetro de apenas dois quarteirões do centro de sua capital. Nada. Sobre isso não falaram nem foram cobrados. Mas disseram que já tinham um plano para esvaziar a cracolândia, faltava apenas a saúde e a assistência social resolverem o que fazer com as pessoas que lá estavam. Simples assim.
Em maio último, a polícia paulista desencadeou uma grande e cara operação na cracolândia sem que a saúde e assistência social tivessem “resolvido” o que fazer com as pessoas que ali vivem. O episódio repete tentativas anteriores do período Alckmim-Kassab e ilustra o que tem sido a tônica da chamada guerra às drogas. O consumo e tráfico de drogas ilícitas aumentaram em todo o mundo nas últimas décadas, justamente durante o período de maior investimento em sua repressão policial. Apesar disso, a lógica da repressão continua dando o tom das políticas que impactam a vida das pessoas que usam drogas.
Primeiro, a prefeitura tentou autorização judicial para internar à força qualquer pessoa usando drogas na região da Luz. Derrotada, ela agora vem montando um grande aparato para retirar as pessoas dali. De um lado, a polícia força deslocamentos constantes fazendo com que as pessoas em situação de rua na região percam suas roupas, documentos, drogas, mas também remédios de uso contínuo. Nesse ambiente hostil, e com a chegada do inverno, a expectativa é que muitos procurem ajuda para sair dali. Novos e vultosos investimentos estão sendo feitos pela prefeitura para facilitar essa saída a toque de caixa: instalar na Luz contêineres para abrigamento provisório e oferta de internação e contratar vagas em hospitais psiquiátricos privados, complementadas por milhares de vagas em comunidades terapêuticas bancadas pelo estado.
Em tempos de restrição orçamentária, o investimento nessas ações vai faltar para manter, melhorar e ampliar a rede de centros de atenção psicossocial (CAPS) que já atende quem tem problemas com o uso de drogas, inclusive com internação. Trabalhando junto com as equipes de rua, o CAPS recebe as pessoas em seus momentos de crise, mesmo quando estão intoxicadas. Porém, diferente do hospital psiquiátrico, o CAPS não atende apenas nos momentos de crise, e por isso pode ajudar a preveni-las. Propõe a internação em seus próprios leitos, quando necessário, e acompanha a pessoa ao longo de sua vida, pelo tempo que for preciso. Tudo isso feito pela mesma equipe multiprofissional, que por isso conhece bem o paciente, sua família e a comunidade onde vive. Quem recai não sai do CAPS, continua para que se entendam os motivos e se lide com as consequências. Porque conhecem e constroem vínculos afetivos com seus pacientes, são os CAPS que podem realizar as inúmeras articulações necessárias para cuidar daqueles que mais sofrem com o uso de drogas e vivem nas ruas da Luz e outras regiões da cidade.
O recurso que deve faltar para os CAPS, também faltará para o que é a grande dificuldade dos centros ainda hoje: conseguir moradia, trabalho e renda para quem inicia o tratamento e quer ficar fora da rua. Os técnicos da prefeitura aprenderam com a primeira grande expansão de equipes de rua e CAPS, iniciada ainda na gestão Kassab, que sem articular alternativas de moradia e trabalho para essas pessoas, o esforço da saúde se perdia. As cracolândias são resultado não apenas do potencial aditivo do crack, mas também da insuficiência das políticas para garantir a cidadania a pessoas que nada têm a perder porque quase nada receberam em suas vidas.
Segundo pesquisa nacional da Fundação Oswaldo Cruz, oito em cada dez dependentes de crack entrevistados nas ruas são homens negros que não chegaram ao ensino médio. Quase metade passou pela cadeia e vive nas ruas. O que mais mata os usuários de crack, que de fato morrem mais cedo do que a média da população brasileira, são os homicídios, e não a droga.
Uma equipe de cientistas sociais, coordenada pelo sociólogo Jessé Souza, ouviu as histórias de vida de quase duzentos usuários de crack Brasil afora, investigando como a droga e a exclusão social se articulam. Na pesquisa, mostram como esses usuários de crack nas ruas das cidades são parte do que Jessé Souza chama provocativamente de “ralé” brasileira. Jovens que chegam à vida adulta sem uma experiência da escola e de trabalho formal que os habilite para a cidadania. A exclusão social e as drogas formam então um ciclo vicioso que marginaliza cada vez mais essas pessoas. Fazem parte de um grupo para quem mesmo as políticas de inclusão dos últimos quinze anos não foram suficientes.
Foi com essa realidade complexa que programas como o Atitude, iniciado em Pernambuco pelo governador Eduardo Campos, e o De Braços Abertos (DBA), do prefeito Fernando Haddad, ousaram lidar. Esses programas criaram alternativas de moradia de longo prazo adequadas às necessidades e possibilidades dessa população. Em São Paulo e Recife, como em Vancouver ou Nova York com os programas de “Housing First”, demonstrou-se que garantir casa a quem é dependente de drogas, sem exigir abstinência, melhora sua qualidade de vida sem aumentar o uso de drogas. No caso de São Paulo e Recife, o consumo de drogas diminuiu. E projetos de vida podem se reconstruir no longo prazo, rompendo os ciclos recaída-internação-rua e cadeia-rua-recaída que tantas vezes se repetem.
O De Braços Abertos também apontou para um caminho de geração de renda, conseguindo remunerar diretamente quem estava no programa pelo seu trabalho. Partindo da legislação municipal para frentes de trabalho, foi-se abrindo espaço para outras modalidades como as cooperativas sociais e o emprego apoiado. Com recursos federais e a execução dos governos locais, programas inspirados no DBA e Atitude hoje estão em desenvolvimento em novos contextos nas cidades de Teresina, Fortaleza, Palmas e Brasília. Enquanto isso, em São Paulo, a prefeitura descuida dos hotéis sociais e frentes de trabalho do DBA.
Muitos se incomodam com o fato de não se exigir abstinência daqueles que entram nesse tipo de programa. Ora, todo manual sobre dependência de drogas ensina que as recaídas são parte do processo, e que alguns jamais cessarão totalmente o uso. Mas mesmo recaindo ou diminuindo o uso, poderão melhorar em muito sua qualidade de vida. Se excluímos esse grupo das políticas de cuidado, justamente o mais necessitado, o que lhes resta?
Outros desanimam quando leem as pesquisas de opinião que demonstram apoio maciço às internações forçadas na população. Parece-me que, para além do desconhecimento sobre o tema, alimentado por parte da imprensa e outros oportunistas que vivem de provocar o medo, o que muitos parecem externar em seu apoio a essa medida extrema é o desejo de que o Estado não se omita e não desista dessas pessoas, que faça mais por elas. Cabe a nós provar que para isso temos de garantir mais e não menos direitos para todos. As mesmas pesquisas de opinião mostraram que isso é possível. Em agosto de 2016, 69% dos paulistanos manifestaram seu apoio ao programa De Braços Abertos, segundo o Datafolha. Mesmo sem conhecer os detalhes do DBA, a população deu seu apoio ao princípio de inclusão que está no próprio nome do programa.
Infelizmente, o golpe que atingiu a política brasileira fez retornarem pautas, como a guerra às drogas, que o vigor da nossa jovem democracia vinha ajudando o país a superar. Há uma grande e desafiadora agenda de invenção política, mobilização social e investigação científica para que o Brasil progrida com políticas inclusivas e efetivas para as pessoas que usam drogas. A solução está na democracia e em seus atores.
É preciso dar voz aos conselhos de controle social e conselhos profissionais, aos movimentos organizados de usuários de drogas, aos técnicos da saúde e assistência social que há anos estão na linha de frente desse trabalho.
É preciso que o prefeito de São Paulo não ressuscite a guerra às drogas, dê continuidade ao que funciona e tem apoio da população e respeite a contribuição do controle social e do Ministério Público.
Dos especialistas, espera-se que parem de repetir o senso comum com verniz acadêmico e ousem engajar a universidade em projetos pioneiros. Quando vamos romper o círculo de hipocrisia e experimentar espaços de uso protegido de drogas supervisionados pelo Estado e não pelos traficantes como são hoje as cracolândias?
Temos também que multiplicar alternativas de moradia que atendam às diferentes necessidades de autonomia tanto daqueles que ainda não conseguem romper seus vínculos com as drogas, quanto dos que já não querem mais conviver com ela e preferem voltar às suas comunidades de origem. Temos que buscar através de formas alternativas de organização econômica, como a economia solidária, a inserção no mundo do trabalho desses excluídos do mercado.
Só assim conseguiremos criar os pequenos e longos futuros que podem romper o ciclo do eterno presente da droga e da exclusão dos homens e mulheres que vivem nas cracolândias.
*Leon Garcia é doutor em Saúde Pública, psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP e do CAPS Álcool e Drogas da Sé. Supervisionou equipes de saúde na cracolândia (2009-2011), trabalhou nas políticas de saúde mental e drogas do Ministério da Saúde e Ministério da Justiça (2011-2016) e colaborou com o programa De Braços Abertos no segundo semestre de 2016.