A encruzilhada da comunicação pública e os caminhos da EBC
Comunicação pública enfrentou censura e ataques anti-democráticos em 2022, com foco no cerceamento à liberdade de imprensa e assédio aos servidores da EBC
O ano de 2022 começou sob a regência de Exu e Iemanjá. É atribuída à “rainha das águas” a simbologia da “grande mãe”, sempre atenta aos filhos. Já Exu é o orixá da Comunicação, que está lá e cá, levando e trazendo, brincando, brincando com o caos, no caos, entre o fim e o começo. Segundo o religioso, músico e historiador Etemí Dofono Hunxi, “Èsù o mensageiro dos ebós” e nas encruzilhadas “ele estará lá, para orientar e mostrar todas as melhores possibilidades de escolhas direcionais”.
Como não poderia deixar de ser, 2022 teve na comunicação um elemento central diante do contexto político brasileiro que prometia para outubro o caos: o fim de um ciclo ou a continuidade de um processo imprevisível. A certeza era de que a comunicação seria estratégica para incidir no resultado das eleições presidenciais e no seu desdobramento. No seio da comunicação pública, diversas denúncias revelavam o quanto a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) sucumbia ao sequestro e aparelhamento promovido pelo governo federal, ainda sob ameaça de privatização.
Dessa forma, organizações e movimentos envolvidos na luta em defesa da comunicação pública apostaram suas expectativas em outubro de 2022. O resultado eleitoral poderia significar mais um passo rumo à destruição da EBC e do projeto público para as comunicações ou poderia pôr fim ao ciclo iniciado com o golpe de 2016 e suas primeiras medidas que desfiguraram a empresa, iniciando o desmonte da comunicação pública no país.
Caminhos fechados
Criada em 2007, durante o segundo mandato do governo Lula, a EBC era a materialização de propostas acumuladas pelos movimentos em defesa da democratização da comunicação em torno de um projeto para o sistema público. Princípios como autonomia política, controle social e interesse público eram alguns dos nortes defendidos pelas representações da sociedade civil. Contribuições importantes foram incorporadas à Lei 11.652, de 2008, que regulamentou a EBC.
Esse ciclo de construção de um projeto de comunicação pública no país foi encerrado em 2016, após o golpe que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT). Durante o período Temer (MDB), os mandatos dos conselheiros e conselheiras da EBC foram cassados e o Conselho Curador extinto, o presidente eleito foi destituído, funcionários demitidos e rádios públicas extintas. Além disso, as ameaças de privatização da empresa pública tiveram início.
Já sob a presidência de Jair Bolsonaro (eleito pelo PSL, atualmente no PL), as ameaças permaneceram e a EBC chegou a ser incluída no Programa Nacional de Desestatização. O aparelhamento e o esvaziamento do controle social também se intensificaram e minaram o caráter de interesse público da empresa. Os anos de Bolsonaro na presidência foram marcados por denúncias de censura nas redações, perseguição aos profissionais, aparelhamento de militares e diversos casos de assédio.
De acordo com Juliana Cézar Nunes, jornalista da EBC e coordenadora-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF), permaneceram os casos de perseguição dentro da empresa. “Em meio às eleições, houve um recrudescimento da censura e do assédio moral nas redações e também a EBC acabou sendo utilizada pelo governo Bolsonaro para difusão de mensagens contra o sistema eleitoral”, lembra.
Casos como esses constam na quarta edição do Dossiê de Censura e Governismo na EBC, lançado em agosto de 2022 pela Comissão de Empregados da EBC, Ouvidoria Cidadã da EBC e pelos Sindicatos dos Jornalistas do Distrito Federal (DF), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) e Sindicato dos Radialistas do DF, SP e RJ. O documento traz 64 casos de censura, 228 casos de governismo e 245 de coberturas de pautas irrelevantes, envolvendo as redes e mídias da EBC.
A Agência Brasil, por exemplo, foi palco para a reprodução de narrativas governistas e discursos do presidente. Além disso, veículos da empresa realizavam coberturas de pautas como Dia da Batata Frita ou Dia da Coxinha, enquanto questões mais relevantes vinham sendo discutidas em outros meios. Tudo fez parte de uma estratégia para blindar o governo da exposição a pautas negativas. Outro tipo de censura imposta, como relata o jornalista da EBC, Gésio Passos, foi o silenciamento de pautas, sobretudo relacionadas aos direitos humanos.
Ainda de acordo com o jornalista, que também é membro do Intervozes e da diretoria executiva do SJPDF, os problemas se intensificaram durante o período eleitoral. “Antes da eleição, por exemplo, não podia falar nada relacionado ao PT, ao Lula”, cita. Já durante o processo eleitoral, foi evidente o alinhamento partidário dos veículos da EBC com o candidato e presidente Bolsonaro que, em entrevista, já chegou a se referir à TV Brasil como “TV minha”. Artigo publicado pelo Intervozes destacou um caso emblemático, que foi a cobertura do “7 de Setembro” pela Agência Brasil, data oficial que foi utilizada por Bolsonaro como palanque eleitoral e promoção de manifestações golpistas, transmitida com a cumplicidade da chefia da agência.
Segundo Venício Lima, professor de Ciências Políticas e Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), uma das razões para esse aparelhamento é a ausência do Conselho Curador da EBC, extinto durante o governo Temer. Para Lima, que teve o mandato de conselheiro cassado, a participação social, diversa e representativa era fundamental “para fiscalizar e garantir que a EBC cumprisse seu papel legal, ser uma alternativa tanto à comunicação estatal, quanto à comunicação comercial, que é predominante”.
O uso governista da comunicação pública não passou apenas pela promoção de Bolsonaro e aliados, mas também envolveu o uso político e econômico da empresa. Além de empregar militares e seus parentes, o governo federal deu continuidade à contratação de produções antigas da Rede Record. Após a aquisição de duas novelas em anos anteriores, a TV Brasil exibiu em 2022 “A Terra Prometida”, cuja licença foi comprada por aproximadamente R$ 4 milhões.
Segundo a jornalista Rita Freire, que também teve seu mandato de conselheira cassado, a utilização da máquina da EBC resultou na “‘militarização’ na ocupação dos cargos, programas alusivos às corporações em lugar dos de interesse público, uso proselitista partidário e religioso e a compra de conteúdos velhos e datados de empresas próximas ao governo. Mas tudo foi possível pelo que começou no governo Temer ao tirar da empresa sua camada protetora – mandatos e Conselho Curador”.
Abre caminho…
A série de abusos e ilegalidades cometidas dentro da EBC mobilizou seus profissionais, que seguiam denunciando, mesmo sob ameaça. Jornalista concursada da empresa há mais de 10 anos, Kariane Costa, representando os trabalhadores, encaminhou à Ouvidoria um dossiê contendo 35 depoimentos de funcionários, que denunciavam casos de assédio moral e censura. O processo foi apresentado ainda em 2021 e teve seu conteúdo vazado para os diretores.
Assim, a trabalhadora passou de denunciante a denunciada, após abertura de um processo interno que lhe acusava de cometer injúria, calúnia e difamação contra 12 gestores da empresa. Durante todo o ano ela foi investigada e, em setembro de 2022, a Comissão de Sindicância Interna da EBC recomendou a demissão de Kariane por justa causa. A perseguição causou revolta e as mobilizações impediram que a jornalista fosse demitida.
A atuação de profissionais e entidades tem sido um fator fundamental para resistir aos desmontes da EBC e acenar para uma reconstrução, como pontua a jornalista Akemi Nitahara. Conselheira cassada e trabalhadora da EBC, Akemi destaca a atuação da Ouvidoria Cidadã, criada em 2020 pela Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, articulação que reúne dezenas de organizações e movimentos. De acordo com a jornalista, que também integra a Frente, uma ação importante tem sido a realização dos dossiês com denúncias e a promoção de debates em torno da defesa e reconstrução do projeto de comunicação pública para o país.
Fruto desse debate foi o “Caderno de Propostas: reconstrói EBC e a comunicação pública”, lançado pela Frente em abril de 2022, durante o seminário Reconstrói EBC. O documento defende a imediata revogação da lei 13.417, do período Temer, e reúne uma série de recomendações, a exemplo da criação de mecanismos para garantir autonomia financeira, de gestão e de conteúdo. As entidades proponentes também denunciaram “o sequestro da EBC” e seu impacto no conteúdo produzido que teriam afetado “as pautas de combate ao racismo e a LGBTQIAP+fobia, a visibilidade a PCDs e pessoas com doenças raras, os temas relativos à juventude, movimentos sociais e sindicais, pautas de violações a Direitos Humanos, enfim, tudo relativo a comunidades já invisibilizadas e estigmatizadas pela mídia hegemônica”.
A mobilização dos profissionais da EBC rendeu, em 2022, o Prêmio Especial Vladimir Herzog de Contribuição ao Jornalismo. O troféu concedido ao coletivo de trabalhadores da empresa foi uma forma de reconhecimento aos esforços em defesa da comunicação pública e de resistência aos recorrentes casos de assédio no trabalho que, como destaca Akemi, afetou e vem afetando a saúde mental desses profissionais.
Deixa Exu passar
Outubro de 2022 e o Brasil estava em uma encruzilhada. A reeleição de Lula fez o país olhar para as políticas do passado, o bolsonarismo ainda violento faz olhar com cautela o presente e o acúmulo dessas experiências trouxe a missão de construir o novo caminho que pavimentará este novo ciclo para a democracia brasileira.
Em relação à EBC, o professor Venício Lima destaca que o golpe de 2016 interrompeu um projeto em andamento. “Ele não era um projeto consolidado, nem pronto. Haviam muitos problemas, mas havia um caminho que se tentava trilhar com base no espírito da Lei 11.652. É importante frisar isso, para não idealizar um passado como se tudo estivesse resolvido”, conclui. Para Rita Freire, é preciso recuperar fontes de financiamento e investir em jornalismo e programação cultural. “Precisa incluir a produção regional e periférica e refletir a sociedade na governança. Precisa enegrecer a EBC, feministizar a EBC. Não se trata simplesmente de enegrecer a tela, mas a gestão e a política editorial”, afirma a jornalista.
Esse desafio de reconstrução, no entanto, ainda esbarra em heranças do governo Bolsonaro. Um exemplo é a atual Ouvidoria da EBC, sob comando do coronel Cristiano Mendonça Pinto. Sem qualificação para o cargo, nem experiência em redação, sua nomeação causou revolta entre os trabalhadores. Em nota, a Ouvidoria Cidadã classificou como “escárnio” o uso político da função. Nomeado há três meses do fim do governo Bolsonaro, Cristiano possui um mandato de 2 anos.
De acordo com Rita Freire, esses são fatos políticos e não administrativos, fruto da mistura entre o governamental e o público. “A democracia pede muita clareza nessa separação”, afirma. Ela defende a retomada e fortalecimento de mecanismos para participação da sociedade civil na política de comunicação. “Não adianta transformarmos a EBC em uma empresa de boas práticas. Para fazer comunicação pública, precisa ter a sociedade civil na governança. Ou é perfumaria”, destaca.
Diante desse novo ciclo que vem sendo construído, o professor da UnB, Fernando Oliveira Paulino, afirma que “a vontade e a necessidade de um serviço público de comunicação continuam ainda mais vivas”. Paulino, que também preside a Associação Latinoamericana de Investigadores da Comunicação, destaca que “não há países com indicadores democráticos que tenham prescindido de uma comunicação pública e de incentivo à diversidade e liberdade de expressão”. Para garantir o caráter público, ele cita a importância da sustentabilidade financeira e do fortalecimento de canais como o Conselho Curador e as Ouvidorias.
Com a mudança de governo, o professor Venício Lima afirma ter uma “esperança contida” por ver no poder “pessoas que compreendem a diferença entre a comunicação estatal e a pública, a importância da comunicação pública num país democrático e que seu fortalecimento favorece o regime democrático”. O professor também destaca que esse novo projeto para a comunicação pública não pode ser visto isoladamente e deve ser complementado por medidas que hoje estão sendo discutidas em todo o mundo, a exemplo das big techs, tanto do ponto de vista das políticas públicas, quanto da regulação. “Questões que se colocam como desafio para a comunicação pública deveriam ser questões que desafiassem também a comunicação privada. Porque o que está em jogo é a sobrevivência da democracia”, defende Lima.
Laroiê!
Em meio ao caos que apontava para novos rumos, 2022 também foi marcado pelos trabalhos que foram abrindo os caminhos desse novo projeto. Algumas propostas foram apresentadas ao então candidato Lula, a exemplo do documento “8 pautas prioritárias das e dos jornalistas brasileiros”, produzido pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e que defende a “recuperação da EBC e ampliação do sistema público de comunicação”, além de cobrar o “reestabelecimento das relações de trabalho com funcionários da EBC, interrompendo o período que vem desde 2020 sem celebração do Acordo Coletivo de Trabalho com os sindicatos”.
Já o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), em sua carta compromisso entregue aos candidatos, também defendeu a recuperação do caráter público da EBC, reestabelecendo o Conselho Curador, definindo critérios para a escolha da presidência, desvinculando a empresa pública da Secretaria de Comunicação e regulamentando a contribuição para o fomento à comunicação pública.
Após o caos, portanto, profissionais e movimentos voltam a sonhar com a construção de um novo projeto para a comunicação pública, a partir de 2023. O ano, inclusive, será novamente regido por Exu e também por Oxum e Oxossi. De acordo com o Etemí Dofono Hunxi, “acreditar que um ano será regido por Èsù é ter a esperança de potência, de caminhos múltiplos de possibilidade, saber que aonde caminhos se cruzam não significa dúvidas, mas sim múltiplas possibilidades de escolhas”.
A respeito do papel da comunicação para abrir os novos caminhos, ele destaca que “Èsù é a própria oralidade e dela dependemos para fazer qualquer tipo de política”. O religioso afirma que “mesmo que o meio de comunicação seja um e-mail, uma carta, um recado, no final sempre precisamos do hálito para potencializar”.
Assim, após a ressaca da encruzilhada eleitoral de 2022, uma nova possibilidade se abriu. Ao final de um ciclo de desmontes e destruição, a sociedade civil tem a possibilidade de participar novamente de espaços de construção de políticas públicas e o direito à comunicação tem a oportunidade de se destacar na agenda nacional, sob o risco de assistirmos a um novo ciclo de autoritarismo no Brasil. É preciso vontade política e mobilização social para que um novo capítulo na história da comunicação pública brasileira comece a ser escrito. Um outro caminho se abre. Laroiê!!!
Alex Pegna Hercog é baiano, comunicador social e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.