A época dos organismos geneticamente fabricados
A biologia sintética não se limita à observação: agora ela passa pela engenharia e já é um grande mercado onde se pode adquirir diferentes peças para “montar” novos víruis, bactérias e leveduras. Mas os riscos da disseminação acidental ou deliberada de organismos artificiais suscitam preocupaçõesDorothée Benoit-Borwaeys
Rumo à industrialização da vida? O anúncio, de 21 de maio, do pesquisador Craig Venter, sobre a fabricação de uma bactéria com genoma artificial pode sugerir que estamos próximos disso. A biologia sintética já é um grande mercado, onde existem muitas “peças” para construir vírus, bactérias ou leveduras. Chegou, então, a onda dos organismos geneticamente fabricados.
“Nós precisamos de vocês! O poder de suas ferramentas implica responsabilidade.” Com essas palavras o agente do FBI (Federal Bureau of Investigation), Ed You, desafiou os estudantes, vindos do mundo todo, para a competição de biologia sintética iGEM (Competição Internacional de Máquinas Construídas Geneticamente), realizada em Boston, nas instalações do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Em outubro de 2009, o FBI, parceiro do evento, pretendia transmitir uma mensagem aos jovens adeptos: “sem eles, não será possível vigiar o bioterrorismo!” Piers Millett, do bureau de armas biológicas das Nações Unidas (Genebra), sugeriu a criação de um código de conduta “para melhor segurança, que permita um trabalho mais divertido”, posto que a exploração lúdica continua a ser o motor desse encontro anual.
O princípio da competição é simples, cada uma das 112 equipes participantes (1.700 alunos), da sexta edição do iGEM, apresentou sua “criação bacteriana artesanal”. Cada uma delas cortou, enxertou e juntou genes para produzir um medicamento, emitir odores, um sinal luminoso intermitente ou detectar arsênico. Nessa grande cozinha da vida artificial, durante os dois dias de apresentações ininterruptas, as receitas foram discutidas, contestadas ou alteradas.
A única regra desse grande “jogo” é contribuir com o caldeirão comum, cada um publica seus resultados com livre acesso (código aberto) na coleção de “biobricks”1, pedaços de DNA que comandam funções-chave (ver glossário). “Hoje existem cerca de cinco mil”, sorriu Randy Rettberg, engenheiro de inteligência artificial, um dos fundadores do jamboree, abrindo o freezer onde são mantidos esses “pedaços de genes sintéticos” gerados pela BioBricks Foundation. “O objetivo é ter um jogo de Lego genético”, disse Tom Knight, que, também, passou da informática (software) para a programação da vida artificial (wetware). Com os biobricks, o MIT estabeleceu um modelo padrão de intercâmbio, que permite comandar “peças individuais compatíveis” vivas, como é feito no computador com o código fonte ou na eletrônica com os circuitos impressos. No entanto, a comunidade científica não se favorece do MIT. “Essa competição iGEM é divertida para adolescentes, diz Victor de Lorenzo, coordenador do programa de biotecnologias sintéticas do Centro de biotecnologia de Madrid. “Nenhum trabalho é publicável, porque as provas de viabilidade são geralmente insuficientes, como pesquisadores, usamos nossas sequências genéticas, produzidas em nossos laboratórios”.
Esse é um marco na história da genética. Em 1953, Francis Crick e James Watson publicaram, na revista Nature, a descrição da estrutura em dupla hélice do DNA, o portador da informação hereditária2. Meio século depois, a humanidade acumulou uma quantidade impressionante de informações sobre a composição molecular da vida.
A biologia sintética não se limita à observação, agora ela passa pela engenharia. Ela coloca em prática o lema do grande físico Richard Feynman: “Só conhecemos o que fabricamos”. Praticada por mais de dez mil laboratórios em todo o mundo, a disciplina tem sido possível porque agora se sabe sintetizar rapidamente – e 20 vezes mais barato que em 2000, 35 centavos de euro por par de bases – sequências codificantes de DNA e porque o poder de computação pode dissecar e conceber sistemas vivos.
A biologia sintética não é um simples desenvolvimento da biologia molecular, é a disciplina dos organismos geneticamente modificados (OGM). A ambição desses engenheiros é de programar sistemas biológicos com base nos princípios do design, módulos-padrão e otimização. Todos os pesquisadores falam de “chassis”, em referência ao suporte no qual são enxertadas funções. Eles planejam a construção de genomas inéditos. Alguns defendem, para evitar a contaminação da biologia natural, uma expressão que não é mais incongruente, fazer “divergir radicalmente essas criações biológicas dos organismos conhecidos”3. Por exemplo, usando um alfabeto diferente do ATGC. Além da manipulação dos genes e dos OGM, trata também da construção de genomas a partir do zero e da produção de organismos geneticamente fabricados (OGF). O horizonte é a “industrialização da biologia”, diz Richard Kitney, diretor de sistemas de biologia medicinais do Imperial College de Londres.
Novos mercados
O setor gera um frenesi de investimento, pois está inserido em novos mercados altamente especulativos: a energia, com a produção de bicombustíveis e a bolsa de emissões de CO2, determinada pelo Protocolo de Quioto; a farmacêutica, com organismos transformados em fábricas de medicamentos; a química, em geral, com a síntese de moléculas complexas ou tecidos biológicos, a detecção de substâncias (organismos “sentinelas”) ou a descontaminação ambiental. Essas áreas de aplicação são também as categorias de avaliação do iGEM, provando que a ciência e o mercado, para a bioengenharia, são cada vez mais inseparáveis.
Craig Venter foi um dos pioneiros do sequenciamento do genoma humano em 19904. Em 20 de maio último, anunciou, na revista Science, a criação da “primeira bactéria sintética5”. O pesquisador foi capaz de fabricar, por meio de montagens de sequências copiadas sobre as da bactéria Mycoplasma mycoides (agente da pleuropneumonia de bovinos), um cromossomo “artificial” que foi, por sua vez, reinjetado em outra bactéria (Mycoplasma capricolum, que infeta caprinos), despojada de seu genoma. A célula assim criada funcionou, se reproduziu e formou colônias.
A revista Nature Biotechnology ilustra a expansão da área publicando as definições díspares de 20 especialistas nesse domínio6. Três abordagens concorrentes focalizam a engenharia com escalas diferentes. A primeira se baseia nos componentes genéticos, a segunda em todo o genoma, e a última nas paredes da célula7.
Na primeira categoria estão as etapas de montagem bottom-up promovidas no iGEM. A cultura de engenharia de seu líder, Drew Endy, valoriza a ideia de tijolos de Lego molecular. Transformando micro-organismos em sistemas controláveis, pesquisadores como Tim Gardner, Jim Collins ou Stanislas Leibler (Caltech), demonstraram, em 2000, que poderíamos fazer o design de módulos-padrão capazes de programar comportamentos.
A segunda abordagem é um processo de miniaturização top-down. Trata-se de criar o “genoma mínimo vital”, uma espécie de “chassis de base”, sobre o qual se pode enxertar qualquer módulo funcional. Uma das equipes de Craig Venter conseguiu reduzir o genoma da bactéria E. Coli em 15%, eliminando as partes não codificantes e não vitais. Prêmio Nobel em 1978, Hamilton Smith, anunciou, em janeiro de 2008, a síntese do cromossomo completo (reduzido a 386 em vez de 517 genes) da bactéria Mycoplasma genitalium. Entretanto, a prova do seu funcionamento, uma vez reinserido na bactéria, privada do seu material genético, falta ser feita.
A terceira proposta retoma os trabalhos sobre a origem da vida. Ela se centra na capacidade de automontagem de moléculas que encontramos na parede celular. Pesquisadores como Jack W. Szostak, da Harvard Medical School (Boston), tentam fabricar protocélulas, isto é, espaços biológicos fechados. Autor do primeiro cromossomo artificial de levedura, Szostak colocou em evidência a capacidade espontânea de ácidos graxos bipolares (nos quais uma terminação procura as moléculas de água – hidrofílica – e a outra as rejeita – hidrofóbica) para se agrupar e formar uma esfera em reação à água8. Szostak concorda, “há muitas oportunidades para fazer emergir as propriedades de autoorganização, a replicação que temos obtido não é totalmente autônoma, mas nunca estivemos tão perto de transformar as moléculas em organismos vivos”.
Essas tentativas evocam as investigações sobre a morfogênese (nascimento das formas) realizadas há um século pelo médico Stephane Leduc9, imitando formas, cores, texturas e movimentos de organismos vivos em “jardins químicos”. Em seu livro “A Biologia Sintética” (1912), Leduc desenvolveu uma ambiciosa teoria físico-química da vida para apoiar suas convicções materialistas e antivitalistas10. O geneticista polonês Waclaw Szybalski não se enganou, em 1978, quando previu o advento da biologia sintética. “Até agora, trabalhamos na fase descritiva da biologia molecular. Mas o verdadeiro desafio será a busca de uma biologia de síntese, vamos criar os elementos novos de controle e adicionar esses novos módulos aos genomas existentes, construindo novos genomas. Esse será um campo de expansão ilimitado para fabricar circuitos mais bem controlados e organismos sintético.11”.
Compreendemos o entusiasmo de Drew Endy, que considerou que “programar com DNA é mais legal, mais atraente e poderoso do que com silício.” Ele diz, porém que “A biologia sintética é a plataforma mais emocionante já produzida pela ciência, mas as questões que levanta são também as mais difíceis. Assustadoras como o inferno12”.
Os riscos da disseminação acidental ou deliberada de organismos artificiais suscitam preocupações. Quando esses produtos saírem do laboratório, no caso de projetos dedicados à limpeza da poluição, será uma condição para o sucesso evitar que eles se misturem com outros organismos. Para esse fim, alguns biólogos preconizam confiná-los, empregando transportadores de informação genética diferentes dos que existem hoje e incompatíveis com esses, como os ácidos xenonucleicos. No entanto, mesmo se conseguirmos evitar qualquer cruzamento biológico, esses organismos sintéticos poderiam entrar em competição com a natureza para o acesso a nutrição. Para isso, temos que desenvolver um “confinamento trófico” (ou nutricional), o organismo servindo de chassis seria concebido para ser capaz de sobreviver apenas na presença de substâncias raras ou desconhecidas na natureza, como o flúor ou a sílica. Isso permitiria interromper sua proliferação.
Outras preocupações estão relacionadas com o fantástico viveiro de novas formas de armamento biológico. Um jornalista relata que, em 2006, foi capaz de encomendar, de uma empresa privada, uma parte do DNA do vírus da varíola13. A comunidade dos “hackers” da biologia que compram as sequências de DNA pela Internet também reflete os riscos do livre fluxo de genes modificados.
Enquanto que os genomas do vírus perigosos foram recriados por Eckard Wimmer (poliomielite, na Universidade Estadual de Nova York) e Jeffrey Taubenberger (gripe espanhola, no Instituto Americano das forças armadas), constatamos que poucas salvaguardas estão previstas. Exemplar, a empresa americana Blue Heron Biotechnology se recusa a honrar pedidos perigosos. Ela utiliza um software de digitalização sistemática para detectar as sequências de agentes classificados como “bioterrorismo” e rejeita o pedido. Mas apenas um terço das empresas mostra esse tipo vigilância.
Vigilância
“Deveríamos nos preocupar com a falta de realismo dos cientistas em relação aos usos militares”, argumenta Alexander Kelle, pesquisador do Centro para Investigação sobre desarmamento de Bradford, que conduziu uma pesquisa no quadro do projeto SynBioSafe14. Um grupo composto por pesquisadores, representantes de órgãos do governo dos EUA e da indústria propôs um plano para controlar a elaboração de sequências de DNA15. Alguns estão pedindo uma lei que exige vigilância de todos os fabricantes de genomas sintéticos16.
Embora a atual regulamentação sobre os OGM seja aplicável aos organismos sintéticos, ela não prevê os casos de organismos destinados à disseminação, que devem ser avaliados de maneira especifica17. No âmbito internacional, existem discussões animadas sobre a definição de “OGM”, indicando uma forte vontade de alguns grupos de excluir os “organismos artificiais” dessa denominação. Com a consequência de evitar as restrições regulamentares.
A pesquisa de métodos biológicos para produzir energia a partir de matérias-primas agrícolas poderia desviar cada vez mais produtos agrícolas para alternativas energéticas ou químicas, em detrimento da alimentação humana. No Congresso mundial Synbio 4.0, realizado em Hong Kong, em outubro de 2008, o grupo canadense ETC (Erosão, Tecnologia e Concentração), encarregado de uma sessão sobre as implicações sociais da biologia sintética, publicou um dossiê inquietante sobre os riscos da captação de recursos alimentares18, mostrando como as indústrias do açúcar, petróleo e produtos químicos estão se reagrupando, para a grande felicidade dos fabricantes de vida artificial.