A Era da Irresponsabilidade
Empresas que são veículos de mídia não querem se responsabilizar pelos conteúdos publicados em suas plataformas
A responsabilidade é um tema central em todos os ramos do Direito. No campo do Direito Civil, aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem está obrigado a repará-lo. Para que alguém seja responsabilizado por um crime, cuja conduta é sempre definida em lei, é necessário identificar o agente. Avanços significativos foram feitos na construção da responsabilidade civil do Estado, na seara do Direito Administrativo, o que também teve reflexos na formação consuetudinária do Direito Internacional.
Como o coração da responsabilização é o ato ilícito, o avanço na regulação dos diversos setores foi fundamental para que o mundo testemunhasse uma gradual, porém constante, construção de responsabilidades. Nesse sentido, a superação da escravização de pessoas ocorreu com a regulação trabalhista e a internalização dos custos da atividade econômica. A proteção do consumidor, do meio ambiente, de quem está no trânsito, em deslocamento pelo mundo, de quem utiliza serviços públicos, bem como a proteção dos recursos públicos, com o combate à improbidade administrativa, ampliaram-se. Enfim, a regulação se expandiu em consonância com a construção dos direitos humanos, que impulsionaram interpretações visando à efetivação de direitos.
Não querer ser responsabilizado, porém, é algo muito presente tanto em seres humanos quanto em empresas. Aliás, indignar-se com eventuais condenações é esperado, por isso, ao lado da regulação, o Estado se vale de uma estrutura para a efetivação das decisões judiciais. Atuação de oficiais de justiça, bloqueios de contas, auxílio policial, entre outros, são os meios de superar essa indignação, o que serve também como incentivador para que se evitem as violações, na esteira de sempre ser melhor que o dano não aconteça quando comparado com a necessidade de se responsabilizar alguém, tendo em vista que há casos em que a reparação é impossível, como acontece no campo ambiental, sem falar de situações que envolvem valores sentimentais aos envolvidos.
Pode-se dizer que esses instrumentos de coerção funcionam melhor quando os envolvidos não são poderosos. No entanto, como esses passaram a ser responsabilizados apenas recentemente, considerando a história da humanidade, o que se via era, esporadicamente, uma decisão que fugia do padrão, frequentemente disfarçada como uma nova interpretação do Direito. Um exemplo disso foi o caso de uma primeira-dama de um estado brasileiro que teve a prisão domiciliar concedida por ser mãe de filhos pequenos, apesar de muitas outras mulheres terem sido condenadas anteriormente sem que os órgãos julgadores se sensibilizassem com tal argumento. O aspecto positivo é que a decisão serviu de parâmetro para casos futuros. Outro exemplo é a proibição do uso de algemas, que só ganhou destaque quando empresários apareceram algemados na televisão, embora muitas pessoas já tivessem sido filmadas em situações semelhantes nos programas policiais exibidos nas tardes brasileiras.
É fato que o Direito vem chegando perto de todas as camadas sociais, levando até mesmo à prisão de pessoas que antes eram consideradas intocáveis, como ex-presidentes e generais. E isso pode incomodar muitas pessoas. O mundo do Pós-Direito desempenha um papel importante na tentativa de contornar responsabilidades. Todavia, algo mais corriqueiro tem ocorrido, pois o Pós-Direito abriu espaço para a chamada Era da Irresponsabilidade.
De fato, atualmente, existem empresas de transporte e de entrega que não se responsabilizam pelos direitos trabalhistas das pessoas que trabalham para elas, nem estão vinculadas à continuidade do serviço. Há também empresas de hospedagem que raramente são condenadas por danos ao consumidor. E, no caso mais conhecido, há empresas que são veículos de mídia e não querem se responsabilizar pelos conteúdos publicados em suas plataformas. Um exemplo disso ocorreu em 7 de janeiro de 2025, quando Zuckerberg declarou, em suas redes sociais, que não fará mais moderação de conteúdo.

Há quem queira justificar a conduta dizendo que se trata de proteção à liberdade de expressão e que o marco civil da internet já resolveria ao determinar que a retirada de conteúdo precisa de decisão judicial. Ora, só quem não vive o dia a dia do direito para imaginar que esse é o melhor caminho para proteção de direitos. Sobrecarregar o Judiciário pode fazer pessoas terem seus casos analisados com muito retardo. A saída mais recomendável sempre é regular e dizer de quem é a responsabilidade, servindo o Judiciário apenas para condenar quem não se comportou de acordo com a regulação, o que evita o aumento de judicialização.
O custo da moderação de conteúdo é apontado como outro motivo para não regular as plataformas. De fato, a regulação internaliza custos. Se não houver regulação, os prejudicados pelos danos causados em um cenário de anomia vão arcar com esse prejuízo, o que pode levar à concentração de renda, a qual é palpável atualmente.
Antes de finalizar, há também que considerar a luta geopolítica, pois o acesso à informação (lembrando do caso Cambridge Analytica) é muito importante para os governos, mas esse tema ficará para outro momento.
Por fim, qual rumo tomar? Afastar-se de todas as empresas que constroem caminhos de irresponsabilidade, o que representa voltar para o transporte público, para o táxi, para a entrega dos restaurantes, para os hotéis e para o jornalismo tradicional? Ou continuar vinculado a tais empresas? Aparentemente, o Zeitgeist tende a escolher o segundo caminho, mesmo sabendo que ele está mal sinalizado e poderá levar os usuários ao precipício. Saber se a regulação terá força para fazer frente a isso é a grande dúvida do futuro próximo. Que a decisão seja tomada com informações checadas e que seja fundamentada, porém, não parece ser momento para otimismos.
Luís Renato Vedovato é professor Associado da UNICAMP e professor de Direito Internacional na PUC de Campinas.