Pós-Direito
A sociedade que viveu a pós-verdade, tão dura para quem trabalha com a ciência, passa a conviver com o pós-direito, que pode representar o fim da democracia, das liberdades individuais e uma alteração profunda no Judiciário
“Eu fui do tempo em que ‘decisão do Supremo não se discute, se cumpre’. Eu fui desse tempo. Não sou mais”, essa frase fez parte do pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, em 7 de junho de 2022, no Palácio do Planalto. Com isso, o Chefe do Executivo Federal buscou separar a história em ao menos duas fases, uma em que se reconhece a centralidade de um órgão, no caso o Supremo Tribunal Federal, para a interpretação e aplicação das normas jurídicas e um outro tempo em que a interpretação é desconcentrada e pode ser feita por qualquer um, especialmente por quem não ficou satisfeito com a decisão judicial.
Entender sucintamente se essa divisão existe, como surgiu e os motivos que levaram a ela é o foco da reflexão deste artigo, que terá como espaço temporal o período que se inicia com a Constituição Federal (CF), em 1988. A partir daí, o Direito passou a ser o centro da fundamentação das decisões no setor público, por determinação normativa, e também no setor privado, que é fiscalizado de forma mais efetiva (apesar de não ideal) pelos órgãos públicos. Não se afirma que o Direito sempre foi aplicado, mas que a CF inaugurou um tempo em que os raciocínios se pautavam no ordenamento jurídico e, mesmo quando o comportamento não era acolhido pelo direito, havia um esforço do agente para fundamentar juridicamente a conduta, deixando ao Judiciário a palavra final.
Assim como uma Unidade de Terapia Intensiva, o Poder Judiciário tem melhores resultados se a demanda por sua atuação estiver dentro das possibilidades de sua estrutura, por isso, o Direito funciona melhor se o Poder Judiciário não for o único a ter que determinar o que deve ser feito. Assim, numa sociedade que respeita os precedentes judiciais, o Direito é aplicado por todos, desafogando o Judiciário e permitindo que ele se foque em novas questões. O tempo em que não se discutem decisões judiciais é fundamental para a criação de um ambiente de respeito ao Direito e às instituições, que podem errar, como se sabe, mas que são a melhor forma, tirando todas as outras, de se construir uma democracia.

Nesse sentido, não cumprir decisões judiciais é também um caminho de enfraquecimento democrático. A divisão temporal que, segundo o presidente, teria permitido o seu não cumprimento pode ter fundamento fora do Brasil e tem relação com a busca por uma desculpa tida como boa para afastar o Direito. Foi assim na reação, em 2001, ao trágico ataque às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, que vitimou milhares de inocentes. Era necessária uma reação? Sem dúvida, mas dentro do Direito. O governo norte-americano iniciou uma cruzada para punir os supostos responsáveis pelos ataques, fazendo isso sem respeitar as normas jurídicas, o que permitiu a prisão sem acusação formal e, até mesmo, a utilização de tortura. Contribuiu para a sustentação desse caminho o convencimento da opinião pública de que aquele seria um caminho razoável para punir os responsáveis.
Ora, nesse momento, estava dada a senha para quem objetivava não cumprir o Direito. Bastava encontrar uma desculpa para agir, o que era potencializado pelo argumento constante de que o Direito, em linhas gerais, trazia maior lentidão às decisões e atrapalhava o alcance dos resultados. Então, as desculpas começaram a surgir. Veio a busca por barrar a migração, para o Brexit e outros movimentos nacionalistas; a melhora do desempenho econômico, para o não atendimento das normas de direitos sociais ou para demarcação de terras indígenas no Brasil; o ataque à imprensa, pois divulgariam informações contrárias a determinados governantes; a necessidade de desenvolvimento, para se afastarem as proteções ambientais; e, agora, é possível se identificar outras duas desculpas.
Primeiro, a necessidade de não haver uma suposta intervenção nas eleições, para restringir pesquisas eleitorais, o que está no campo da restrição à imprensa; e, além disso, a violação de normas eleitorais, como gastos que seriam proibidos ou distribuição de mentiras, chamadas de fake news, para assegurar a vitória de um dos candidatos. Tudo amparado por opinião pública que entende que essas seriam as melhores soluções para o alcance do objetivo que deseja determinado grupo majoritário.
Impossível para o Judiciário dar conta de tantas violações. E a sensação de que a lei não é aplicada incrementa a possibilidade de seu não cumprimento. E, com isso, a sociedade que viveu a pós-verdade, tão dura para quem trabalha com a ciência, passa a conviver com o pós-direito, que pode representar o fim da democracia, das liberdades individuais e uma alteração profunda no Judiciário.
Superar o pós-direito não é tarefa para um órgão apenas. Passa pela ação da sociedade como um todo. É ela que deve escolher em qual futuro quer viver. Um futuro que começou, para o Brasil, a ser trilhado pela Constituição de 1988, mas que deve envolver dois fatos que aconteceram no ano seguinte, em 1989: (i) o massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim, que culminou em junho; e (ii) a queda do Muro de Berlim, em novembro.
Em qual futuro se quer viver? Naquele em que o totalitarismo foi superado ou naquele em que não há informações sobre o que aconteceu com manifestantes pacíficos? A pergunta que parece fácil de ser respondida passa pela superação da pós-verdade, pois com ela não há espaço para o direito.
Luís Renato Vedovato é professor de Direito Internacional da Unicamp e da PUC de Campinas.