A escalada da violência contra crianças no Afeganistão
Quais são as consequências da situação atual no Afeganistão para as crianças do país? Relatórios já apontavam violações graves de Direitos Humanos acontecendo em 2021, mas os avanços recentes do Talibã ligam o alerta para uma rápida escalada da violência contra essas crianças
O mundo inteiro ficou em alerta quando o Talibã voltou à capital do Afeganistão, Cabul, no dia 15 de agosto. Contudo, as movimentações do grupo estavam acontecendo desde maio, quando reuniram 85 mil combatentes, de acordo com as estimativas da Otan — um número significativamente maior do que 20 anos atrás.
No mês de julho, o grupo já havia tomado metade do território nacional e, de acordo com relatório publicado em conjunto pelo escritório de direitos humanos da ONU (OHCHR) e a Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (Unama), mais mulheres e crianças foram mortas e feridas na primeira metade de 2021 do que nos primeiros seis meses de qualquer ano desde que os registros começaram em 2009.
O Unicef soltou um comunicado de imprensa alertando para a rápida escalada de violações graves contra crianças, apontando que pelo menos 27 haviam sido mortas enquanto 136 ficaram feridas em apenas três dias. Esses números foram registrados em três províncias: Kandahar, Khost e Paktia; e o chefe de operações de campo, Mustapha Ben Messaoud, observou que é notável que há um “aumento muito significativo” das mortes infantis no Afeganistão nessas últimas quatro semanas.
Hoje, a estimativa do Unicef é de que uma em cada duas crianças menores de cinco anos no país sofre de desnutrição aguda grave — e com a falta de acesso a água potável e higiene nos acampamentos humanitários, o risco de cólera e outras doenças segue aumentando de forma exponencial. Além disso, a mais recente onda de infecção de Covid-19 já estava “matando 100 pessoas por dia […] e esses são apenas os casos que são contados”, o que aumentou ainda mais os riscos à vida dessas crianças.
Tendo em vista a situação humanitária e ecoando os temores internacionais sobre o impacto dos combates recentes sobre os civis, o porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Tomson Phiri, afirma que o conflito “acelerou muito mais rápido do que todos prevíamos e a situação tem todas as marcas de uma catástrofe humanitária”. É difícil enxergar quais raízes estão diretamente ligadas aos movimentos recentes de expansão do Talibã e quais violações já estavam estabelecidas nos últimos anos, mas é inegável o aumento da violência nos últimos meses trouxe consequências devastadoras.

Crianças foram deliberadamente alvejadas em pelo menos uma ocasião: um ataque no dia 8 de maio, em frente à escola Sayed ul-Shuhuda, na cidade de Cabul com mais de 300 vítimas civis, sendo a maioria delas meninas com menos de 18 anos. Totalizando 85 mortes, nenhum grupo assumiu a responsabilidade do ataque, mas tanto a Unama quanto a missão da ONU registraram o ressurgimento de ataques, assassinatos, maus-tratos, perseguição e discriminação nas comunidades afetadas pelos combates da expansão do Talibã desde sua reorganização.
À medida que os combates se intensificam, a Unama demonstrou estar particularmente preocupada com o aumento agudo no número de vítimas civis após 1º de maio, com quase o mesmo número de mortes dos quatro meses anteriores sendo registrado apenas no período de maio a junho. De acordo com o relatório, mulheres e crianças representaram quase metade de todas vítimas civis: 32% eram crianças (468 mortos e 1.214 feridos) enquanto 14% foram mulheres (219 mortas e 508 feridas). A trajetória assustadora desses números aponta para o impacto devastador do conflito sobre os civis.
Dessa forma, a escalada de violência no Afeganistão e suas consequências para as crianças ligam o alerta para um possível número sem precedentes de mortes este ano se a situação não se estabilizar. Por isso, é imprescindível acompanhar a resposta da comunidade internacional em relação à crise de deslocamento forçado que irá se intensificar nos próximos dias, da qual 80% dos quase 250.000 afegãos forçados a fugir desde o final de maio são mulheres e crianças. Com inúmeras vidas em risco, falar sobre a abertura de fronteiras é essencial.
Leonardo Rodrigues Taquece é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e membro dos grupos de Estudos sobre a Infância nas Relações Internacionais (GeiRI), Defesa e Segurança Internacionais (GEDES) e Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH).