A esquerda no nevoeiro
A esquerda vive momento complicado. Parte patina perante um governo que mais lhe parece um pesadelo, uma vez que se vê na obrigação de apoiá-lo, ainda que criticamente, enquanto para outros se confirma a necessidade de oposição. Novas linhas de força se delineiam. O nevoeiro é forte, mas cumpre tentar se nortear neleJosé Maurício Domingues
Há uma questão de curto prazo relativa ao governo atual. Enorme pragmatismo e fetichização do poder se revelam neste momento de impasse, falta de ideias e fragilidade. Mas é preciso localizar temas de trajetória histórica, diagnóstico da conjuntura e perspectivas de futuro, com destaque para a política em sua autonomia de fato.
O Brasil vive uma conjuntura particularmente complexa porque os fins de vários ciclos se cruzam e se sobredeterminam simultaneamente. O primeiro deles remete ao longo prazo. De 1930 a 1980 realizou-se uma “modernização conservadora” do país – industrialização e urbanização com manutenção do latifúndio. Sua conclusão coincidiu com a irresistível ascensão do movimento democrático, que, vindo de fato do período anterior, encontrou na luta contra o regime militar seu momento de consolidação e triunfo. Como em quase todas as transições de ditaduras para democracias – salvo as de cunho revolucionário ou por conta de derrotas militares –, foi mediante negociação que o processo institucional se concretizou. Nem se realizou a transição simplesmente pelo alto – pois a participação popular foi enorme, nos movimentos sociais e partidos, em eleições e nas ruas – nem se resumiu a democratização às instituições. O país abraçou concepções e práticas mais igualitárias.
Foi precisamente esse longo ciclo de democratização que se esgotou. As energias que mobilizou já não existem, seus quadros envelheceram, algumas de suas ideias se concretizaram, muitas foram abandonadas, suas formas de organização se encarquilharam ou se mancharam.
Aliada aos liberais, a esquerda teve papel destacado nesse processo, impulsionando os movimentos sociais e mobilizando as classes médias e populares. Isso se expressou na vitória do MDB em 1974, nas manifestações estudantis e greves operárias, na eleição de governadores em 1982, na campanha das Diretas Já em 1984, na eleição indireta de Tancredo Neves em 1985, na Constituição de 1988. A esquerda armada, a despeito do desassombro de seus combatentes, mostrou-se um enorme equívoco político. Foi rapidamente destroçada pela ditadura. A política que se revelou correta implicou aquela frente democrática, a esquerda capitaneada pelo PCB, que não foi capaz de recolher os frutos de seu acerto, de fato dissolvendo-se.
Naquele momento nascia o PT, de modo fulgurante e renovador, vinculado às grandes mobilizações populares. Tendo à frente as lideranças sindicais e recolhendo os quadros oriundos da luta armada e do trotskismo, bem como de um catolicismo que girara à esquerda, captou militantes de muitos outros movimentos sociais e organizou vastas parcelas das camadas médias, das classes populares e da intelectualidade. Afirmou-se assim como fator crucial nos momentos finais do ciclo democratizador, embora com dificuldade para reconhecer seu papel nele. Já o PCdoB adotava postura sóbria, que o levou a posicionar-se como aliado preferencial do PT. O PDT de Leonel Brizola poderia ter decolado se tivesse ganho a eleição de 1989, mas nunca voou alto.
Até a luta pelo impeachment de Collor, após dura derrota eleitoral da esquerda, a mobilização popular e o processo de democratização prosseguiram. Mesmo com as vitórias de Fernando Henrique Cardoso, havia esperança. Em especial o PT aparecia como reserva moral e política da esquerda. Mas os anos 1990 viram o declínio irremediável daquela mobilização. O Sindicato dos Petroleiros foi, logo no início do governo neoliberal do PSDB-PFL, atropelado pela repressão estatal, depois de uma greve justa, porém politicamente equivocada. A ameaça ao sindicalismo foi compreendida, e este adotou uma atitude mais prudente, em um cenário de economia deprimida e privatizações. Nesses anos, o único movimento social forte de enfrentamento ao neoliberalismo foi o MST.
O esgotamento do programa de FHC e as crises econômicas que enfrentou implicavam quase inevitavelmente a ascensão de Lula e do PT ao governo. Uma moderação crescente e seu deslocamento progressivo para a centro-esquerda, favorecido ademais pelo do PSDB à direita, permitiam-lhes sonhar com governar sem choques duros com os setores conservadores e as classes dominantes. Montou-se programa comedido (“social-desenvolvimentista”), que desaguou em larga medida em um fraco reformismo social liberal. A questão social, a despeito desses limites, ocupou o centro da agenda nacional.
Não é fácil definir o que pode se seguir a esse ciclo democratizador. O que além disso complica a situação é que o ciclo da absoluta hegemonia do PT na esquerda brasileira também se esgotou.
O partido surgiu buscando centralidade política a cada passo. Olhava para trás e via, espelhando e aparentemente a confirmando, a tese de Weffort de que a esquerda brasileira (o PCB) fora conivente com o populismo e incapaz de representar o interesse dos trabalhadores. O PT os poria em primeiro lugar. Estratégia e metas mais ambiciosas, como o socialismo, seriam construídas em sua experiência de luta. Se o PT nunca abandonou essa visão hegemonista (para além da hegemonia real que alcançou), foram se fortalecendo o pragmatismo – sindical, em larga medida – e o aparelhismo – predominante naqueles oriundos da luta armada. Ocultavam-se sob o “basismo” suposto pelo apelo aos interesses e à experiência concreta, sem que o participacionismo que o acompanhara sobrevivesse. A organização por tendências, por sua vez, tornou rígida a vida interna do partido.
Ao inclinar-se para a centro-esquerda, o PT encontrou a tradição latino-americana que tanto combateu – os partidos populares pluriclassistas e as alianças com a burguesia. Ao perceber, após o escândalo do chamado “Mensalão”, que perderia o apoio da classe média – outrora crucial para seu desempenho eleitoral, fato agora silenciado –, aprofundou a ideia de que governava para os “pobres”, contra os “ricos” e a classe média supostamente “coxinha” – taxada de conservadora. Na verdade, retomava em parte, mais democrática e generosamente, a estratégia de FHC com o Plano Real: mantinham-se os ricos – em especial o capital financeiro – protegidos e se redistribuía das classes médias para os pobres, aproveitando ainda a bonança das commodities. Por outro lado, seu programa social se esgotou com o aumento do salário mínimo, do salário, do emprego em geral e do crédito barato, e as políticas focalizadas, sobretudo o Bolsa Família. Fez-se também dependente do entrelaçamento entre os setores público e privado, na saúde e na educação superior expandidas. Muitos dos melhores quadros do PT passaram ao Estado. E o partido foi se embolando com as legendas tradicionais, setores da burguesia, sobretudo as empreiteiras, e em esquemas que, de mal necessário em razão dos custos das campanhas eleitorais, contaminaram muito de seu aparelho.
Dilma Rousseff simplesmente completou aquele programa, sem alterar sua lógica. A universalização da saúde e uma educação de qualidade, bem como o crescente gargalo dos transportes públicos ficaram de lado, enquanto a tentativa, voluntarista e tecnocrática, de criar uma “nova matriz econômica” fracassava, com taxas medíocres de crescimento e o aprofundamento da reprimarização da economia. O mal-estar social que se gestava transbordou nas manifestações de junho de 2013, às quais o PT reagiu muito mal, ainda hoje vendo-as como de direita e parcialmente responsáveis por suas agruras.
A verdade é que o partido enfrentava enormes problemas – geracionais, de quadros, autismo político, arrogância e falta de projeto e programa. O hegemonismo já cobrara alto custo com a defecção do PSB da base do governo por causa da recusa em considerar a sério a candidatura de Eduardo Campos à Presidência. Os escândalos de corrupção complicaram a situação.
O ciclo se fechava, embora tivesse ainda certa viabilidade eleitoral, com a própria Dilma e eventualmente com Lula. A incapacidade política e econômica da presidenta escolhida pelo antecessor mostrou-se, porém, catastrófica, desaguando no atual ajuste fiscal brutal e no fisiologismo aberto das negociações com o PMDB, que conspurca a imagem do governo e do PT, sem que a sociedade figure com destaque em sua linha política (a despeito de certos esforços deste último para se reconectar a ela). O fetichismo do poder se afirma e, em nome da governabilidade imediata e da luta contra o impeachment, hipoteca-se o futuro.
Aqui se localiza um terceiro ciclo, mais curto, eleitoral e de governo. Se Lula coroou o ciclo da democratização e da hegemonia do PT, Dilma conclui, ao estendê-lo, o ciclo petista hegemônico. Pode ser que Lula venha mesmo a se candidatar e vença as próximas eleições. Mas isso, em si, oferece mera sobrevida ao ciclo original.
Centro-esquerda(s) e esquerda(s)
Assim chegamos a 2015. O sistema partidário como um todo sofre em razão de sua enorme e visível distância da população. O PT em especial se encontra estreitamente vinculado ao aparelho de Estado, e o projeto de mantê-lo absorve suas energias. É verdade que Lula promoveu uma frente de esquerda, sem muita convicção – da qual, vale notar, o MTST se afastou por causa de seu caráter excessivamente governista. Não se deve desconhecer que a CUT ainda tem reservas de força e que o MST, certa capacidade de mobilização. Mas as movimentações principais vêm sendo articuladas de outras maneiras, por vezes, e por outras forças políticas, com frequência. Em particular Lula, que tem hoje relação muito vertical com seu partido, se tornou pivô do sistema político, com o PT emparedado pelo avanço do conservadorismo dentro do governo.
Ao ver o giro à direita realizado por Campos e o PSB nas eleições de 2014, Lula se perguntava sobre as razões para isso. Ele mesmo respondeu: o PT não deixava espaço para ninguém à esquerda. As coisas já não são assim.
Podia-se esperar que nas eleições de 2014 o PSOL crescesse expressivamente. Não foi o caso, talvez em virtude da polarização que o PT conseguiu impor ao pleito. As dificuldades do PSOL advêm, todavia, em larga medida de suas propostas e discurso. Ou seja, da incapacidade de reunir uma esquerda radical, socialista e consistente (o que não implicaria necessariamente um compromisso fechado com o marxismo); e, por outro lado, de parasitar a cara antiga do PT, com seu manto de pureza e autenticidade. Seus poucos laços com os movimentos sociais e a intelectualidade impõem-lhe também limites, tampouco ajudando sua organização por tendências. Além disso, tem dificuldade para abandonar o sectarismo, dialogar e fazer alianças, preso a uma política da identidade que supre a falta de programa, estratégia e tática claros.
Mesmo assim, é provável que o PSOL avance, ocupando o espaço que o PT e o PCdoB deixam vazio. Outros grupos marxistas não têm expressão, cativos de um passado encantado.
A novidade recente no novo quadro da centro-esquerda é a Rede. Seguem também em curso certa reorganização dos movimentos sociais e mudanças nas perspectivas da juventude de modo geral.
Marina Silva foi candidata em 2010, abrindo espaço próprio, de um centro indefinido, e em particular cativando a juventude. Sem conseguir viabilizar a Rede em 2014, acabou candidata do PSB após a morte de Campos e se equivocou ao apoiar Aécio Neves no segundo turno. Perdeu bastante de sua aura, e muitos deixaram a legenda. Mas tudo indica que uma forte negociação os trouxe de volta. Outros deslocamentos inclinam também a Rede à centro-esquerda. Se não tem movimentos sociais fortes em sua base, ela recolhe descontentamentos na esquerda, em especial no PT e no PSOL, tendo como trunfos o ambientalismo, que galvaniza a juventude, e a ideia de que é possível fazer política de outra maneira. O PDT pode ainda retomar certo protagonismo caso Ciro Gomes seja de fato candidato à Presidência, representando até certo ponto outro elemento de pluralização da centro-esquerda (o que parece, afirmações em contrário não obstante, muito improvável no caso do PSB).
Essa reorganização da centro-esquerda pode ser decisiva, pois é preciso seduzir – pela política, com propostas avançadas de direitos universais e atenção redobrada à questão ambiental – vastos setores da classe média. Dificilmente voltarão a apoiar o PT, mas muitos possuem perspectiva progressista.
Além disso, novos movimentos sociais e certa renovação de alguns dos mais tradicionais se apresentam com destaque para a ideia de horizontalidade. Vinculam-se a mudanças moleculares anteriores às manifestações de 2013. Delas herdam militantes e um espírito fluido e aberto.
Depois de 2018 nada restará daquele ciclo original, e um novo desenho deverá se consolidar. Nele o PT seguirá tendo força e protagonismo; pode até renascer, mas dificilmente poderá reivindicar absoluta preeminência e quase exclusividade. No fim das contas, essas modificações do cenário político e no seio da esquerda e da centro-esquerda vieram para ficar e podem até implicar uma reorganização mais ampla da esquerda. De todo modo, muito mais inteligência e generosidade serão necessárias no seio da esquerda nos próximos anos.
Para além do nevoeiro
Previsões sobre o desdobramento de ciclos históricos são arriscadas, mas os elementos aqui delineados parecem ter grande peso. A pluralização da centro-esquerda é bem-vinda, mas mais à esquerda os desdobramentos são menos evidentes.
De modo geral, há ainda na esquerda problemas de programa, estratégia e tática, alianças e formação de quadros, democracia interna e externa. Duas questões são candentes. Primeiro, o chamado “desenvolvimento sustentável”, cujos contornos concretos são fugidios. Precisa ser retomado, bem definido e concretizado, por razões substantivas e eleitorais. Segundo, a relação entre sociedade, movimentos sociais, partidos e Estado precisa ser renovada. Aquela sofre mutações que aumentam sua complexidade e a autonomia de indivíduos e dos movimentos. Os partidos precisam, assim, radicalmente se renovar em sua forma de mediar a política e se reconectar à população.
O momento é difícil, mas é possível abrir novos ciclos que deem continuidade às lutas e conquistas populares das últimas décadas. Para isso, é preciso, porém, reconhecer o novo e enfrentar esses desafios.
José Maurício Domingues, sociólogo, é professor do Iesp-Uerj. Seus últimos livros publicados são A América Latina e a modernidade contemporânea (2009), Desarrollo, periferia y semiperiferia en la tercera fase de la modernidad global (2012) e Global modernity, development and contemporary civilization (2012).