A esquerda precisa somar mais do que dividir
Por que no mundo inteiro a extrema-direita está ganhando terreno e nós indo para a marginalidade?
No último fim de semana, as redes sociais foram inundadas por ilustrações em estilo de anime, mais especificamente no traço icônico dos Estúdios Ghibli, produtora de animação japonesa fundada por Hayao Miyazaki e responsável por obras como A viagem de Chihiro. Os desenhos eram gerados instantaneamente pelo ChatGPT, aplicativo de inteligência artificial que atualizou seu software para reproduzir estilos artísticos com muita verossimilhança. Milhares de pessoas (de políticos e celebridades a vovós querendo brincar com seus familiares) correram para a plataforma para não ficar de fora da brincadeira e ver suas próprias fotos ilustradas no estilo fofo dos Estúdios Ghibli. Em apenas uma hora, o ChatGPT registrou 1 milhão de novos usuários.

Então, a reação. Ilustradores profissionais começaram a pontuar que o sequestro de estilos artísticos pela inteligência artificial infringia os direitos autorais e colocava em risco o trabalho dos artistas. Internautas recuperaram uma fala do próprio Miyazaki, dizendo que a produção de desenhos através da IA era “um insulto à própria vida”. A trend dos desenhos fofos se tornou um grande debate público sobre os limites da inteligência artificial e a valorização do trabalho artístico.
Até aí, tudo bem. Todas as questões levantadas são pertinentes e conhecidas nos debates sobre os riscos da proliferação da inteligência artificial. Outras, como o uso de água para resfriar os servidores da OpenAI (empresa proprietária do ChatGPT), os riscos de manipulação de conteúdos cada vez mais realistas para espalhar desinformação e o armazenamento de informações pessoais pelas empresas de IA, também foram questionadas. Mas o que poderia se tornar um debate construtivo sobre a necessidade de regulamentação nas novas tecnologias, logo se transformou em mais uma encruzilhada moral.
Enquanto a direita se esbanjava com seus desenhos Ghibli – o Exército de Israel e uma série de batalhões da Polícia Militar utilizaram a inteligência artificial para fazer retratos fofos de suas operações, enquanto o perfil oficial da Casa Branca publicou a ilustração de uma imigrante sendo presa –, na bolha de esquerda a adesão à trend virou um marco divisor. Quem caiu no canto da trend foi acusado de alienação, insensibilidade com os artistas e condenado à pena imposta aos traidores.
Esse modus operandi se tornou comum na esquerda conectada. Algum tema viraliza. Pessoas começam a questionar (ou como dizemos, “problematizar”) o assunto. Eis que se torna um debate entre o bem e o mal, em discussões acaloradas cujo único objetivo é afastar os que pensam diferente e promover os adeptos. No fim do dia, o debate só serviu para aborrecer ambos os lados, que vão se deitar mais nervosos e deprimidos.
Essa lógica, supostamente justiceira, é completamente instrumentalizada pelos algoritmos da rede social – a IA que nós não vemos, não faz ilustrações bonitinhas, mas controla boa parte da sua vida –, que impulsionam conteúdos divisivos para maximizar o tempo gasto pelos usuários na rede social. As big techs se deliciam quando somos impelidos a debater uma polêmica infindável nas redes sociais como se nossa vida dependesse disso. Quanto mais polêmica, mais textões, mais curtidas, mais compartilhamentos e mais tempo na frente da tela, gerando dinheiro para os patrocinadores. Não à toa, os feeds das plataformas são programados para exibir conteúdos que estimulem o conflito.
Enquanto achamos que estamos fazendo um grande bem, combatendo o mal e tornando o mundo um lugar melhor, na verdade só estamos caindo na espiral das redes sociais, criando um ambiente de mais divisão e cólera.
Parte da esquerda ou do que se denomina “ativismo”, que se formou politicamente conectada umbilicalmente às redes, aprendeu a militar assim. “Fazer política”, para essas pessoas, é um exercício permanente de combate impaciente aos erros e busca por divisões mais puras. Ao invés de procurar o que nos conecta, buscam o que separa. Se você concorda com 99% das nossas ideias, mas discorda de 1% – não serve. Se não entende nosso linguajar – ignorante. Se comete um deslize – está fora. Sem direito a recurso.
No movimento LGBT, por exemplo, a última tendência é separar cada letra da sigla em movimentos específicos, porque o outro não pode ser plenamente solidário ao seu diferente. Como um homem bissexual, entendo que parte da comunidade LGBT não respeita como deveria e muitas vezes negligência as pessoas bissexuais. Mas isso não significa que eu ache que as minhas lutas são incompatíveis com as de uma mulher lésbica ou homem trans. Na verdade, todos somos vítimas da mesma engrenagem de segregação por conta da nossa orientação sexual ou identidade de gênero – e que busca criar divisões até mesmo entre nós. Temos muito mais em comum do que diferenças.
Enquanto a esquerda se torna cada vez intolerante, a extrema-direita se vende como um porto seguro de redenção e acolhimento. Recentemente, a cantora Jojo Toddynho, que ganhou fama entre o público LGBT com o hit “Que tiro foi esse”, foi celebrada com honras ao se revelar uma “mulher preta de direita” e se juntar ao séquito da família Bolsonaro. Jojo foi redimida de seus “pecados” e acolhida como uma igual pela extrema-direita, aproveitando para disparar contra o que chamou de “perseguição da esquerda”.
Quando a esquerda parece mais intolerante do que as pessoas que fazem política na base da intimidação, do preconceito e da violência política permanente, alguma coisa está errada. É um paradoxo: eles falam de ódio, mas se acolhem; nós falamos de amor, mas não paramos de nos dividir. Parece uma coisa hipócrita – e é.
A esquerda precisa ser coerente com o tamanho do buraco em que estamos metidos. Precisamos nos perguntar: por que no mundo inteiro a extrema-direita está ganhando terreno e nós indo para a marginalidade? Se a justeza moral das nossas pautas é tão explícita e o estrago causado por eles hoje é plenamente conhecido, o que explica isso? Como Trump ganha uma eleição mesmo depois de inúmeras acusações de assédio, frases vulgares e da sua comprovada tentativa de desrespeitar o resultado das eleições?
Enquanto a extrema-direita está mandando para as cucuias todas as regras éticas de convivência em sociedade, testando cada vez mais os limites do nosso tecido social, nós nos fechamos em uma bolha cada vez menor de pessoas com paciência para aguentar nosso rígido sistema de regras. Isso é adoecedor para quem está dentro e nem um pouco convidativo para quem está fora. Sinceramente, quem quer dedicar parte do seu tempo de vida à militância política se a pena pelo erro é tão alta? Quem está procurando provação moral se alista no Exército ou vira padre.
Se a esquerda quiser levar a melhor na dura luta contra a extrema-direita precisa reaprender os princípios que antes nos uniam – a solidariedade, a empatia e o universalismo, respeitando a diversidade e valorizando a particularidade de cada pessoa. Precisamos ser mais tolerantes entre nós mesmos. Se admitimos de antemão que estamos divorciados de todas as pessoas que professam uma religião diferente da nossa, que não se interessam pelo nosso vocabulário, que reproduzem preconceitos estruturais impostos desde o nascimento pela nossa sociedade, que gostam de animações feitas por IA e que cometem erros – afinal, o que é mais humano do que errar? –, já perdemos por W.O. Se estamos em minoria, precisamos saber somar mais do que dividir.
Guilherme Cortez é deputado estadual de São Paulo pelo PSOL.