A Europa diante da hegemonia alemã
A negociação do orçamento de 2014/20 da U.E divide os países-membros. Enquanto o desejo britânico de obter um “desconto” atrai as atenções, o conjunto do projeto vacila. Decididos a reduzir um orçamento já restrito, os países do Norte enfrentam os do Sul, que, reclamam por recursos. Mais uma vez, Berlim conduz a dançaPerry Anderson
Diante da polêmica suscitada pelo fato de pessoas como Menahem Begin, Henry Kissinger e Barack Obama serem agraciadas com o Prêmio Nobel da Paz, o romancista Gabriel García Márquez tinha o costume de dizer que a homenagem deveria ser rebatizada de “Prêmio Nobel da Guerra”. Este ano, o prêmio apresenta um perfil menos belicoso, mas também propício a ironias. Feliz a União Europeia, gratificada com o que ficará na memória como o Prêmio Nobel do Narcisismo. Uma vez mais, a Academia Real das Ciências da Suécia, em Oslo, se superou. A única chance de não decepcionar no ano que vem é entregar o prêmio a si mesma.
Contudo, a recompensa conferida – não sem disputa – a Bruxelas e Estrasburgo certamente veio em um momento oportuno. Os primeiros anos do século XXI viram as vaidades europeias crescer. A União se considerava o “arquétipo” universal do desenvolvimento social e político, o modelo de civilização ideal formulado pelo historiador britânico Tony Judt e depois retomado por outros pilares da sabedoria europeia. Desde 2009, esses clamores de satisfação foram silenciados pelas adversidades da zona do euro. Porém, seria prematuro pensar que desapareceram por completo. O recente livro do sociólogo alemão Jürgen Habermas sobre a União Europeia – Zur VerfassungEuropas [Sobre a constituição da Europa, 2011] – é um exemplo patente.1 Grande parte da obra se concentra no capítulo “A crise da União Europeia à luz de uma constitucionalização do direito internacional”, exemplo notável de introversão intelectual. Com quase sessenta páginas, essa dissertação indigesta desdobra uma centena de referências, das quais três quartos se referem a autores alemães – entre eles, o próprio autor e três de seus associados, que monopolizam uma menção a cada duas citações. As citações restantes se referem exclusivamente a autores anglo-americanos. Entre eles, Habermas confere lugar de destaque (uma menção a cada três) a um de seus admiradores, o cientista político britânico David Held, muito falado em 2011 por suas complacências acadêmicas em relação ao filho de Muamar Kadafi.2 Nenhuma outra cultura europeia teve direito a ser citada nessa exibição ingênua de provincialismo.
O tema do artigo é ainda mais surpreendente. Em 2008, Habermas havia criticado duramente o Tratado de Lisboa pelo acordo não trazer nenhuma solução ao déficit democrático da União nem oferecer qualquer horizonte moral e político. Segundo ele, a única consequência da adoção do tratado seria a abertura de um “abismo entre as elites políticas e os cidadãos”.3 Defendia, assim, um grande referendo de escala europeia sobre temas como a harmonização social e fiscal, a aglutinação das forças militares e, mais importante, a eleição por sufrágio universal de uma presidência europeia capaz de tirar o continente das “vias da ortodoxia neoliberal”. Ao notar como esse entusiasmo de Habermas a favor da expressão da vontade popular – pela qual o filósofo jamais havia demonstrado qualquer interesse em seu próprio país – contrastava com suas visões tradicionais, pensei que, uma vez que o Tratado de Lisboa fosse aprovado e retificado, Habermas terminaria por endossá-lo discretamente.4
Em direção a um éden insuperável
Essa suspeita se revelou aquém da realidade. Abraçando com exaltação a causa que outrora criticara virulentamente, o pensador da modernidade explica hoje que o Tratado de Lisboa, longe de ter aberto o “abismo entre elites e populações”, representa, ao contrário, um progresso sem precedentes para a liberdade humana, uma refundação da soberania europeia de base cidadã, uma matriz luminosa de onde nasceria o Parlamento do mundo futuro. A Europa de Lisboa se situaria na vanguarda de um “processo de civilização” que pacificaria a relação entre Estados, limitaria o uso da violência à proteção dos direitos humanos e abriria um caminho idílico que conectaria a indispensável – ainda que imperfeita – “comunidade internacional” de hoje à “comunidade cosmopolita” de amanhã. Essa Europa, em resumo, forjaria uma União empenhada em acolher em seu seio todas as almas do planeta.
Com essas exaltações, o narcisismo europeu das décadas passadas, longe de dissipar-se, atingiu um novo patamar de paroxismo. Que o Tratado de Lisboa se dirija aos Estados e não às populações, que ele tenha sido imposto ignorando e desprezando a vontade popular expressada por referendos em três ocasiões, que ele consolide uma estrutura considerada cada vez menos digna de confiança pelos indivíduos, que ele codifique não um santuário de direitos humanos, mas um conglomerado de interesses reticente em relação aos atos de tortura ou de ocupação militar cometidos por esse ou aquele aliado, tudo isso desaparece em uma autoedificação beata.
Nenhum espírito individual equivale a uma mentalidade coletiva. Agraciado com inúmeros prêmios europeus, com mais medalhas que um general soviético da era de Brejnev, Habermas é, sem dúvida, vítima – em parte – da importância que lhe outorgam: assim como antes dele o filósofo norte-americano John Rawls, o octogenário de Frankfurt evolui em um universo mental repleto de admiradores e discípulos. É muito comparado a Immanuel Kant, mas parece, antes, um avatar contemporâneo de Gottfried Wilhelm Leibniz ao construir com paradoxos obscuros e eufemismos imperturbáveis uma teodiceia na qual as inconveniências da desregulação financeira coexistem com a emergência resplandecente do cosmopolitismo. Nessa emulsão conceitual, o Ocidente, a democracia e os direitos humanos se misturam para oferecer à humanidade seu éden insuperável. A propensão de Habermas para tornar a Europa o umbigo do mundo sem dar muita importância à vida concreta de seus habitantes reflete, assim, uma tendência de fundo. E as atribulações da moeda comum não são suficientes para revertê-la.
Inútil insistir sobre a crise do euro, que levou o Velho Continente a essa confusão e à recessão mais severa e mais longa desde a Segunda Guerra Mundial. Para compreender as causas desse fenômeno, é preciso observar com mais cuidado sua dinâmica subjacente. Em poucas palavras, a crise resulta do encontro de duas fatalidades independentes uma da outra. A primeira é a implosão generalizada do capital fictício que recheou os mercados ao longo do ciclo de financeirização, iniciado no começo da década de 1980 à medida que os lucros tirados da economia real diminuíam sob o efeito da competição internacional e as taxas de crescimento caíam de uma década para outra. Os mecanismos dessa erosão foram minuciosamente descritos pelo historiador Robert Brenner em sua imponente história do capitalismo desde 1945.5 A alavancagem que ela opera sobre as dívidas privadas e soberanas, a consequente alta vertiginosa das taxas de lucro e o forte controle do capital sobre responsáveis políticos revelam sua implacável lógica, evidenciada nos trabalhos recentes de Wolfgang Streeck.6 A economia norte-americana e seus efeitos sistêmicos no mundo ilustram perfeitamente esse fenômeno.
Durante esse tempo, na Europa, iniciou-se outra trajetória a favor da reunificação alemã, seguida pela União Monetária de Maastricht – com a diligência de Berlim – e pelo pacto de estabilidade. A política monetária da União estava, naquele momento, submetida a um Banco Central Europeu (BCE) cuja concepção parecia se inspirar nas teorias ultraliberais de Friedrich Hayek: sem a necessidade de prestar contas aos eleitores ou aos governantes, o todo-poderoso BCE respondia ao único objetivo de garantir a estabilidade dos preços. Por meio da zona do euro, a instituição presidia uma economia tentacular hoje estendida aos países do Leste Europeu, que abastece o resto do continente com mão de obra barata. Com o argumento de compensar o custo da reunificação e o declínio das taxas de crescimento que provocou, o capital alemão impôs aos trabalhadores um arrocho salarial drástico – aceito pelos sindicatos sob a ameaça de deslocamento das fábricas para Polônia, Eslováquia ou outros lugares.
Ausência de uma comunidade de destinos
Os efeitos devastadores dessa política sobre a Europa meridional eram totalmente previsíveis. Galvanizadas pela dupla oferta da produtividade em alta e custo do trabalho em baixa, as indústrias exportadoras alemãs se tornaram mais competitivas do que nunca e abocanham uma porção crescente dos mercados da zona do euro. Na periferia da moeda única, a perda da competitividade induzida pelo “modelo alemão” é artificialmente compensada por um fluxo de crédito com baixas taxas de juros, de acordo com a filosofia monetária decretada por Bruxelas e Berlim.
No fim de 2008, quando a crise financeira norte-americana – que, em realidade, é uma crise da superfinanceirização – golpeou a Europa, a credibilidade em relação ao pagamento das dívidas acumuladas pelos países do Sul caiu vertiginosamente e provocou o medo de uma reação em cadeia de bancarrotas dos Estados. Mas, enquanto nos Estados Unidos o colossal abastecimento dos fundos públicos devolvia a saúde financeira aos bancos e o Banco Central emitia papel-moeda para estimular a demanda, a zona do euro batia a cabeça em suas próprias grades. Por um lado, o statusdo BCE o proíbe formalmente de comprar dívidas de um país-membro. Por outro, a gritante falta de uma Schicksalsgemeinschaft– essa “comunidade de destinos” analisada pelo sociólogo Max Weber – tornava ilusória a aplicação de uma ordem política solidária, na qual os maiores pagariam um preço alto pelo descuido de ignorar as necessidades elementares dos menores. No simulacro do federalismo europeu, não há lugar para uma “transferência à União” como praticada nos Estados Unidos.
Assim, quando a crise irrompe no cenário europeu, a coesão da zona do euro não se dá por medidas sociais capazes de conter as populações mais afetadas, e sim pela dominação política do membro mais influente, porque está em melhores condições financeiras. É dessa forma que a Alemanha, à frente de uma coalizão de Estados nórdicos, impõe aos países do Sul – a seu bel-prazer – programas de austeridade draconianos, impensáveis para seus próprios cidadãos, mas cômodos na medida em que não permitem a esses países recorrer à desvalorização da moeda e tornar suas exportações mais atrativas.
Submetidos a uma pressão esmagadora, os governos desses “pequenos” Estados caem como pinos de boliche. Na Irlanda, Polônia e Espanha, as maiorias parlamentares em exercício no início da crise foram derrotadas nas urnas – com a ironia de que os sucessores se mostraram ainda mais austeros com suas respectivas populações. Na Itália, o descrédito do presidente do conselho Silvio Berlusconi e as intervenções externas precipitaram a formação de um governo de alternância composto de tecnocratas que nem sequer passou por eleições. Na Grécia, o executivo instalado no poder por Berlim, Paris e Bruxelas criou uma situação similar à da Áustria em 1922, quando um alto-comissário contratado em Viena pela aliança franco-britânica, sob a bandeira da Sociedade das Nações, zelava por uma administração que satisfizesse os vencedores. O homem escolhido para o cargo foi o prefeito reacionário de Roterdã, Alfred Zimmerman, que se opôs à tentativa da Holanda de apoiar a revolução alemã de novembro de 1918. Em Viena, onde permaneceria na função até 1926, o alto-comissário ficou conhecido por sua determinação em reivindicar “mais economia, mais sacrifício de todas as categorias da população”, além de exigir do governo austríaco que “estabilizasse o orçamento em um nível consideravelmente mais baixo”.7
Em todos os países nos quais foram administradas, as prescrições com o objetivo de restaurar a “confiança” dos credores se traduziram em amputações de gastos sociais, desregulação dos mercados e privatização de bens públicos: o repertório padrão da doxa liberal combinado a uma – não comum – pressão fiscal decuplicada. Para perenizar esse tratamento de choque, Berlim e Paris chegaram a formalizar o dogma do equilíbrio orçamentário na Constituição de dezessete países-membros da zona do euro. Nos Estados Unidos, essa pretensa “regra de ouro” foi julgada extravagante, assim como a obrigação de andar com um pé só.
Uma nova “relação especial”
A dose cavalar do remédio administrado em 2011 pelos doutores da Troika [FMI, União Europeia e BCE] não salvou a zona do euro. O parcelamento das dívidas soberanas não conseguiu trazer de volta os bons tempos antes da crise, ao contrário, facilitou ainda mais sua acumulação: segundo algumas estimativas, os créditos bancários eventualmente não recuperáveis atingiriam 1,3 bilhão de euros. Os problemas são mais profundos; os terapeutas, menos preparados; e seus remédios, menos eficazes que os círculos dirigentes gostariam de admitir. Enquanto o espectro do calote estiver presente, as medidas tomadas às pressas e sem cautela pela chanceler alemã Angela Merkel e por Nicolas Sarkozy quando era dirigente da França correm o risco de revelar suas imperfeições. É certo que a parceria germano-francesa jamais refletiu equilíbrio. “Não está excluída a possibilidade de o poder alemão adotar uma forma mais brutal, que se experimentaria por meio dos mercados, e não do alto de um gabinete ministerial ou do conselho de administração do Banco Central. É muito cedo para descartar a hipótese de uma Grossmacht[grande potência] regional”, escrevíamos antes da crise.8 A Alemanha – cuja política de baixos salários no interior e alto fluxo de capital no exterior tem uma responsabilidade determinante na crise do euro – também se mostrou inclinada a lavar as mãos, sinal de uma hegemonia mais acentuada sobre a União. De uma ponta a outra do país, vozes se levantam para incentivar Berlim a afirmar com orgulho sua liderança.
Em artigo anunciado na primeira página da Merkur, a revista intelectual alemã mais influente, o jurista Christoph Schönberger explica que o tipo de hegemonia que a Alemanha está destinada a exercer na Europa não tem nada a ver com o deplorável discurso “anti-imperialista à la Gramsci”. Ela deve ser compreendida no sentido constitucional – a função de guia é conferida ao Estado mais poderoso de um sistema federal – dado pelo jurista Heinrich Triepel, em vez de pensá-la no sentido da Prússia na Alemanha dos séculos XIX e XX. A União Europeia corresponderia precisamente a esse modelo: um consórcio essencialmente intergovernamental reunido em um Conselho Europeu cujas deliberações são necessariamente “insonorizadas” e cujo exercício somente a ficção científica poderia imaginar que se tornaria, um dia, “a flor azul da democracia, pura de qualquer resíduo institucional terrestre”.9 Porém, enquanto os Estados representados pelo Conselho Europeu forem desiguais em tamanho e peso, será pouco realista pensar que podem coordenar a União em pé de igualdade. Para funcionar, defende o artigo, a comunidade requer que o Estado com maior população e riqueza lhe dê coesão e direção. A Europa precisa da hegemonia alemã, e os alemães devem parar de agir timidamente. A França, cujo arsenal nuclear e sede permanente do Conselho de Segurança da ONU não possuem mais tanta importância, deveria rever suas pretensões. A Alemanha deveria tratar a França como Otto von Bismarck fazia com a Baviera nesse outro sistema federal que foi o Segundo Reich, em que se gratificava o parceiro inferior com favores simbólicos e consolações burocráticas.10
A França aceitará tão facilmente ser rebaixada ao mesmo estatuto da Baviera no seio do Segundo Reich? Ainda não se sabe. A opinião de Bismarck sobre os bávaros é bem conhecida: “No meio do caminho entre um austríaco e um ser humano”. Sob a presidência de Nicolas Sarkozy, a analogia talvez não parecesse insólita, já que Paris seguia as prioridades de Berlim. Hoje, contudo, o paralelo seria outro, mais contemporâneo, mais conveniente. A ansiedade demonstrada pela classe política francesa de jamais se separar dos projetos alemães para a União e associar-se permanentemente à Alemanha remete a outra “relação especial”: à dos ingleses que se transformaram desesperadamente em ajudante de ordens dos Estados Unidos. É possível questionar a duração dessa autossubordinação francesa sem qualquer reação. As fanfarronices de Volker Kauder, secretário-geral da União Cristã-Democrata da Alemanha (CDU) – “a Europa atualmente fala alemão” –, suscitam mais ressentimento que docilidade. Acontece que, já há alguns anos, em razão principalmente da distorção notável empreendida pelo sistema eleitoral francês, não há classe política na União mais unanimemente conformista em seus pontos de vista que a da França. Esperar de François Hollande um pouco mais de independência econômica ou estratégica seria a vitória da esperança sobre a experiência. Pela mesma razão, em nenhum outro país o abismo entre a opinião popular e as exortações oficiais é tão profundo.
Hollande chegou ao poder da mesma forma que Mariano Rajoy na Espanha: como a única solução à mão, sem qualquer convicção dos eleitores. E também poderá ser imediatamente enfraquecido diante da chegada da austeridade. No seio do sistema neoliberal europeu, do qual ele se tornou o intendente francês, apenas na Grécia eclodiram revoltas populares importantes – ainda que a Espanha dê sinais premonitórios de levante. Além disso, as elites ainda precisam escutar as massas. Certamente, nada garante que provações mais agudas produzam reações populares; é mais provável que as paralisem, como demonstrou a passividade dos russos sob o governo catastrófico de Boris Ieltsin. Mas os povos da União são menos passivos e, por menor que seja a deterioração das condições de vida, sua paciência pode se esgotar. Nos bastidores de todos os cenários, existe uma realidade inconteste: mesmo que a crise do euro possa ser resolvida sem que os mais fracos padeçam – o que é muito improvável –, a diminuição subjacente do crescimento é inevitável.
Perry Anderson é historiador e autor do ensaio Le nouveau Vieux Monde. Sur le destin d’un auxiliaire de l’ordre américain [O novo Velho Mundo. Sobre o destino de um auxiliar da ordem norte-americana], Agone, Marselha, 2011.