A extrema direita à beira da falésia
O capitalismo percebeu que crianças e adolescentes constituem um mercado consumidor proeminente e, convenientemente, decidiu prolongar a infância das pessoas para que elas pudessem continuar a consumir os produtos que as encantam desde tenra idade
A dinâmica do capitalismo desencadeou o politicamente correto, principal arranjo ideológico que a extrema direita vem depredando. Ela o chama de socialismo porque não poderia dizer que seu alvo é o novo modelo de capitalismo que se tornou predominante. E justamente por ela ser contrária a este “novo” capitalismo que seus dias no governo de alguns países importantes já estão próximos do fim.
De acordo com Benjamin Barber, o sistema capitalista chegou a um estágio em que passou a desviar o investimento dos produtos “necessários” (comida, roupas etc.) para a produção do “desnecessário” (filmes, games etc.). Para tal promove-se a infantilização da cultura e o multiculturalismo.
Os habitantes dos países desenvolvidos, “cujas necessidades essenciais já foram satisfeitas, mas que têm meios para satisfazer necessidades ‘novas’ e inventadas”, são os grandes alvos do capitalismo que encontrou neles sua principal fonte de renda. Isso é decorrente de uma considerável melhora das condições de vida nos últimos 100 anos, em grande parte, graças ao Estado de bem estar social.
Essa região (basicamente o hemisfério norte), com maior poder de compra, ficou ávida por novas formas de consumo. O capitalismo não quer saber se várias regiões do mundo ainda estão carentes de produtos necessários, de subsistência, com pessoas morrendo de fome etc., seu objetivo é o lucro. Como disse Barber, “nesta nova época em que os necessitados estão sem renda e os abastados estão sem necessidades, a radical desigualdade é simplesmente estimada”.[1] Foi-se o tempo do capitalismo produtivista. Adentramos na era do capitalismo consumista.[2]
O capitalismo percebeu que crianças e adolescentes constituem um mercado consumidor proeminente e, convenientemente, decidiu prolongar a infância das pessoas para que elas pudessem continuar a consumir os produtos que as encantam desde tenra idade.
É por isso que as séries e filmes de heróis, videogames etc., movem milhões na indústria cultural. Homens e mulheres de meia idade gastam fortunas em jogos eletrônicos, blockbusters, bonecos colecionáveis, além de horas a fio nas redes sociais.
Outro aspecto dessa nova dinâmica capitalista é o multiculturalismo. A frustração das pessoas de não conseguirem representatividade pelos caminhos tradicionais da cidadania (partidos políticos, sindicatos etc.) levou-as a se identificar no consumo cultural.
Néstor Canclini explica que “a insatisfação com o sentido jurídico-político de cidadania conduz a uma defesa da existência, como dissemos, de uma cidadania cultural, e também de uma cidadania racial, outra de gênero, outra ecológica, e assim podemos continuar despedaçando a cidadania em uma multiplicidade infinita de reivindicações”.[3]
Assim, a indústria cultural, moda etc., investe intensamente em produtos para as mais variadas identidades. Canclini acredita que não foram as revoluções sociais, movimentos alternativos na política ou na arte que promoveram a transformação cidadã, “Mas estes meios eletrônicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo”.[4]
Há uma ampliação das mercadorias em circulação, obsolescência, produzimos mais lixo do que em qualquer outra era da história, mas não somente no sentido quantitativo, há uma diversidade estonteante, um produto para um consumidor em particular.
Deste modo, a valorização da juventude e da diversidade cultural, sexual etc. pelo mercado tornou-se um negócio indispensável para a sobrevivência do capitalismo. A partir dessa lógica comercial, vamos encontrar vários setores da economia financiando lutas femininas, promovendo propagandas contra o racismo, como vemos nos filmes de Hollywood e nos maiores campeonatos esportivos do mundo.
Mas não se trata apenas da apropriação das lutas sociais pelo mercado, antes que elas caiam nas mãos de movimentos antissistêmicos (o que é importante ressaltar), mas por uma necessidade de ampliação de mercado, colocando, assim, mais mercadorias para circular.
O capitalismo que a extrema direita defende é o do feijão com arroz do século XIX. Ou, no máximo, o fordismo da primeira metade do século XX, como se fosse ainda possível a produção em massa de um único produto, do mesmo modelo com a mesma cor.
Não é mais a ética protestante que move o capitalismo, mas o etos infantilista e o multiculturalismo. Ao se colocar contrário às diversidades, ter miopia ao olhar a cor da pele, como disse o presidente Jair Bolsonaro, rejeita-se essa nova dinâmica capitalista indispensável para a sua sobrevivência. Um discurso contra a diversidade acaba sendo contrário ao capitalismo, já que a variedade do mercado consumidor é necessária para a sobrevivência do sistema. Como todo bom comerciante, é preciso valorizar e tratar bem o seu cliente.
A queda de Trump representa este aspecto. Bush-pai foi o último presidente não reeleito, mas é preciso levar em consideração que uma guerra havia minado a sua popularidade. Era proveniente de governo republicano desgastado, pois era vice de Ronald Reagan que havia sido reeleito. Além disso, Clinton era um concorrente bastante carismático e jovem.
O cenário que pôs fim ao governo Trump é bem diferente. O adversário dos ex-presidente troglodita não era tão carismático, além disso, mesmo se não estivéssemos em uma cultura tão infantilista, que valoriza a juventude no comportamento e no fenótipo de forma psicótica, Biden ainda poderia ser considerado um senhor de idade bastante avançada.
A saída de Trump do comando da maior potência econômica do mundo pode também ser explicado pela sua inadaptabilidade a um capitalismo que busca valorizar cada vez mais a diversidade para manter a sua lucratividade e predominância.
Essa estrutura pode ser perigosa para a esquerda. Movimentos sociais e partidos deste espectro político não podem se deixar levar pela moderação do discurso liberal da Terceira Via, o qual não está interessado em extinguir as desigualdades econômicas, mas no aumento da lucratividade. Que enxerga as lutas identitárias separadas das condições de classe.
O capitalismo, com os líderes dos grandes conglomerados, talvez tenha usado a extrema direita para lembrar a todos que ele mesmo tem uma alternativa à tirania, o liberalismo. E esta seria a única via possível. Muitos foram enganados e parecem lutar para que tudo volte ao que era antes, bem como vimos nas eleições dos EUA, ou na disputa do segundo turno para a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.
Lembra aquelas histórias românticas exploradas pelos melodramas hollywoodianos nas quais um membro insatisfeito da relação procura a felicidade em outras paragens amorosas e, logo em seguida, se arrepende, voltando para o seu antigo parceiro (a), seu verdadeiro amor.
Embora tenha vida curta, a extrema direita causou um grande mal à população criando inimizades conjugais e aprovando leis impopulares valorizando os interesses dos patrões na relação entre capital e trabalho. Foi um surto que deixou marcas profundas na sociedade. Encontra-se agora à beira da falésia, e quem está prestes a empurrá-la no abismo é a direita “moderada” que segue, por sua vez, os preceitos dessa nova dinâmica do capital.
[1] BARBER, B. Consumido. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 21.
[2] Id., p. 20
[3] CANCLINI, Néstor G. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010, p. 37.
[4] Id., p. 38.