A fábrica de indesejados
O planeta tem atualmente 65 milhões de refugiados. Grande parte deles é obrigada a viver em campos, uma espécie de prisão a céu aberto em que os residentes são privados dos direitos fundamentais. Por seu número e perenidade, os acampamentos se tornaram um mercado em disputa entre ONGs e transnacionais
Campos de refugiados internos ou externos, acampamentos de migrantes, zonas de espera para pessoas com pendências, campos de trânsito, centros de retenção ou de detenção administrativa, centros de identificação e de expulsão, pontos de passagem fronteiriços, centros de acolhimento de pessoas em busca de asilo, “guetos”, “jungles”, “hot spots”… Essas palavras ocupam o cotidiano de todos os países desde o final dos anos 1990. Os campos não são somente locais de moradia para milhões de pessoas; eles se tornam um dos componentes principais da “sociedade global”, uma das formas de governo do mundo: uma maneira de administrar o indesejável.
Produto da desregulação internacional que se seguiu ao final da Guerra Fria, o fenômeno dos acampamentos assumiu proporções consideráveis no século XXI, num contexto de perturbações políticas, ecológicas e econômicas. Pode-se designar com esse termo o fato de uma autoridade qualquer (local, nacional ou internacional), que exerce um poder sobre um território, colocar pessoas em algum tipo de campo ou forçá-las a ali se instalarem, por um período variável de tempo.1 Em 2014, 6 milhões de pessoas, sobretudo populações em exílio – os karens de Myanmar na Tailândia, os saarauis na Argélia, os palestinos no Oriente Médio –, residiam num dos 450 campos de refugiados “oficiais”, gerenciados por agências internacionais – como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e a agência da ONU para os refugiados palestinos – ou, mais raramente, por administrações nacionais. Com frequência instalados em regime de urgência, sem que seus criadores tenham imaginado ou ainda menos planificado sua perenização, esses campos existem por vezes há vinte anos (como no Quênia), há trinta anos (como no Paquistão, na Argélia, na Zâmbia, no Sudão) ou mesmo há sessenta anos (como no Oriente Médio). Com o tempo, alguns passaram a se parecer com vastas zonas periurbanas, densas e pobres.
O planeta tinha, também em 2014, mais de mil campos de deslocados internos, que abrigavam cerca de 6 milhões de indivíduos, e vários milhares de pequenos acampamentos autoestabelecidos, os mais efêmeros e menos visíveis, que reuniam 4 milhões a 5 milhões de ocupantes, essencialmente migrantes chamados de “clandestinos”. Essas instalações provisórias, por vezes qualificadas de “selvagens”, encontram-se por toda parte, na periferia das cidades ou ao longo das fronteiras, em terrenos baldios ou em ruínas, interstícios, imóveis abandonados. Enfim, ao menos 1 milhão de migrantes viviam num dos mil centros de retenção administrativa espalhados pelo mundo (dos quais quatrocentos na Europa). Ao todo, somando os iraquianos e os sírios que fugiram de seu país nos três últimos anos, pode-se estimar que entre 17 milhões e 20 milhões de pessoas vivem hoje “acampadas”.
Para além de sua diversidade, os campos apresentam três traços comuns: a extraterritorialidade, a exceção e a exclusão. Antes de tudo, trata-se de espaços à parte, fisicamente delimitados, lugares que com frequência não figuram nos mapas. Ainda que duas a três vezes mais povoado que o departamento de Garrissa, onde se encontra, o campo de refugiados de Dadaab, no Quênia, não aparece nas representações do departamento. Os campos desfrutam igualmente de um regime de exceção: eles usam uma lei diferente daquela do Estado onde estão estabelecidos. Qualquer que seja seu grau de abertura ou fechamento, permitem assim descartar, retardar ou suspender qualquer reconhecimento de uma igualdade política entre seus ocupantes e os cidadãos ordinários. Enfim, essa forma de reagrupamento humano exerce uma função de exclusão social: ela assinala, ao mesmo tempo que dissimula, uma população em excesso, acima do limite. O fato de ser ostensivamente diferente dos outros, de não poder ser integrado, afirma uma alteridade que resulta da dupla exclusão jurídica e territorial.
Se cada tipo de campo parece acolher uma população particular – os migrantes sem autorização de permanência nos centros de retenção, os refugiados nas estruturas humanitárias etc. –, neles é possível encontrar de fato mais ou menos as mesmas pessoas, que vêm da África, da Ásia ou do Oriente Médio. As categorias institucionais de identificação aparecem como máscaras oficiais colocadas provisoriamente sobre os rostos. Assim, um deslocado interno liberiano que viveu em 2002-2003 (ou seja, na época mais forte da guerra civil) num campo na periferia de Monróvia será um refugiado se for se registrar no ano seguinte num campo do Acnur para além da fronteira norte de seu país, na Guiné Florestal; depois será um clandestino se a deixar em 2006 para buscar trabalho em Conacri, onde encontrará muitos compatriotas que vivem no “bairro dos liberianos” da capital guineana. Dali, tentará talvez atingir a Europa, pelo mar ou através do continente pelas rotas transaarianas; se chegar à França, será conduzido para uma das cem Zonas de Espera para Pessoas com Pendências (Zapi), que incluem portos e aeroportos. Será oficialmente considerado um “mantido”, antes de poder ser registrado como requerente de asilo, com fortes chances de ver seu pedido recusado. Será então retido num Centro de Retenção Administrativa (CRA), esperando que as providências necessárias para sua expulsão sejam tomadas. Se não for legalmente expulsável, será “liberado” e depois se verá, em Calais ou na periferia de Roma, como migrante clandestino num acampamento ou em uma habitação invadida [squat] de migrantes africanos.
Os campos e acampamentos de refugiados não são mais realidades confinadas às terras distantes dos países do “sul”, da mesma forma que não pertencem ao passado. Desde 2015, a chegada de refugiados do Oriente Médio fez emergir uma nova lógica de acampamento na Europa. Na Itália, na Grécia, na fronteira entre a Macedônia e a Sérvia ou entre a Hungria e a Áustria, surgiram diversos centros de recepção, de registro e de triagem dos migrantes. De caráter administrativo ou policial, eles podem ser mantidos pelas autoridades nacionais, pela União Europeia ou por atores privados. Instaladas em depósitos abandonados, casernas militares reaproveitadas ou em terrenos vazios onde contêineres foram empilhados, essas estruturas rapidamente ficam saturadas. Ficam então rodeadas de pequenos acampamentos qualificados de “selvagens” ou “clandestinos”, abertos por ONGs, por moradores ou pelos próprios migrantes. É o que se produz, por exemplo, em torno do campo de Moria, em Lesbos, o primeiro “hot spot” (centro europeu de controle) criado por Bruxelas nos confins do espaço Schengen, em outubro de 2015, para identificar e recolher impressões digitais dos refugiados. Essas instalações improvisadas, que acolhem geralmente algumas dezenas de pessoas, podem assumir dimensões consideráveis, a ponto de se parecerem com vastas favelas.
Na Grécia, ao lado do Porto de Pireu, um acampamento de barracas abriga entre 4 mil e 5 mil pessoas, e até 12 mil pessoas fixaram-se em Idomeni, na fronteira greco-macedônia, numa espécie de vasta zona de espera.2 Na França, igualmente, numerosos Centros de Acolhimento para Requerentes de Asilo (Cada) e abrigos de emergência abriram nestes últimos anos. Também eles sofrem de um déficit crônico de lugares e veem se multiplicar as instalações selvagens em seus contornos. Os migrantes rejeitados pela estrutura aberta pela prefeitura de Paris na Porte de La Chapelle no outono de 2016 são forçados a dormir em barracas, na calçada ou sob o metrô elevado.
Qual é o futuro dessa paisagem dos campos? Três caminhos existem a partir de agora. Um é o desaparecimento, como ocorreu com as destruições dos acampamentos de migrantes em Patras, na Grécia, ou em Calais, na França, em 2009, depois em 2016, ou ainda com a eliminação repetida de acampamentos “rom” em torno de Paris ou de Lyon. Tratando-se de campos de refugiados antigos, seu desaparecimento puro e simples constitui sempre um problema. Prova disso é o caso de Maheba, na Zâmbia. Esse campo aberto em 1971 deve ser fechado, sem que isso tenha ocorrido, desde 2002. Nessa data, ele contava com 58 mil ocupantes, dos quais uma grande maioria de refugiados angolanos da segunda ou até da terceira geração. Outro caminho é o da transformação progressiva, a longo prazo, que pode ir até o reconhecimento e um certo “direito à cidade”, como mostram os campos palestinos no Oriente Médio, ou a progressiva integração dos campos de deslocados internos do Sudão do Sul na periferia de Cartum. Enfim, o terceiro caminho, o mais difundido atualmente, é o da espera.
Contudo, outros cenários seriam possíveis. O avanço dos acampamentos na Europa e no mundo nada tem de fatalidade. É verdade que os fluxos de refugiados, sírios principalmente, aumentaram bastante desde 2014 e 2015, mas eles eram previsíveis, anunciados pelo agravamento constante dos conflitos no Oriente Médio, pelo crescimento das migrações durante os anos precedentes e por uma situação global em que a “comunidade internacional” fracassou em restabelecer a paz. Esses fluxos tinham, aliás, sido antecipados pelas agências das Nações Unidas e pelas organizações humanitárias, que, desde 2012, pediam em vão uma mobilização dos Estados para acolher os novos deslocados em condições tranquilas e dignas.
Chegadas maciças e aparentemente repentinas provocaram o pânico de numerosos governos despreparados, que, preocupados, transmitiram essa inquietação para seus cidadãos. Uma instrumentalização do desastre humano permitiu justificar intervenções agressivas e, assim, pela expulsão ou confinamento dos migrantes, colocar em cena uma defesa do território nacional. De vários pontos de vista, o desmantelamento da “jungle” de Calais, em outubro de 2016, desempenhou a mesma função simbólica que o acordo de março de 2016 entre a União Europeia e a Turquia3 ou que o erguimento de muros nas fronteiras de diversos países:4 demonstrar que os Estados sabem responder ao imperativo de segurança e proteger nações frágeis, descartando os estrangeiros indesejáveis.
Em 2016, a Europa recebeu três vezes menos migrantes que em 2015. Os mais de 6 mil mortos no Mediterrâneo e nos Bálcãs,5 a externalização da questão migratória (rumo à Turquia ou a países do norte da África) e o acampamento do continente foram o preço.
*Michel Agier é antropólogo do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD) e da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS). Recentemente publicou Les Migrants et nous. Comprendre Babel [Os migrantes e nós. Compreender a Babel] (CNRS Éditions, 2016) e organizou, com Anne-Virginie Madeira, a obra Définir les réfugiés [Definir os refugiados] (PUF, 2017).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017}