A falácia da ‘reforma trabalhista’: uma análise crítica da precarização do trabalho no Brasil
A “reforma”, implementada sob o governo de Michel Temer, não apenas falhou em cumprir suas promessas, como também agravou as condições de precariedade e insegurança dos trabalhadores brasileiros
A chamada “reforma trabalhista” de 2017 no Brasil, implementada sob o governo de Michel Temer, representa um marco significativo na história das relações de trabalho no país. Contudo, uma análise crítica baseada na perspectiva historiográfica de E.P. Thompson revela que a “reforma” não apenas falhou em cumprir suas promessas, como também agravou as condições de precariedade e insegurança dos trabalhadores brasileiros.
Thompson (1963) nos ensina a olhar para a história “de baixo para cima”, considerando as experiências e lutas da classe trabalhadora. Neste sentido, ao examinarmos os efeitos da “reforma trabalhista”, sete anos após sua implementação, torna-se evidente que as promessas de geração de empregos e melhoria das condições de trabalho não se concretizaram.
Um dos principais argumentos dos defensores da “reforma trabalhista” era a criação de 6 milhões de empregos em dez anos, com 2 milhões nos primeiros dois anos (Krein, Gimenez, e Santos 2018). No entanto, os dados mostram uma realidade bem diferente. A taxa de desemprego, que estava em 12,9% em julho de 2017, manteve-se elevada nos anos seguintes, atingindo o pico de 14,9% em março de 2021.
A flexibilização das relações de trabalho, um dos pilares da “reforma trabalhista”, foi justificada como uma necessidade para a geração de empregos. Contudo, o que se observou foi um aumento significativo da informalidade e da precarização do trabalho. Segundo dados da FGV-Ibre, o Brasil tem atualmente 25,4 milhões de trabalhadores autônomos, representando uma parcela significativa da população ocupada de 100,2 milhões em março de 2024.
A pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da FGV (FGV-Ibre) revela um dado alarmante: 67,7% dos trabalhadores autônomos desejam um emprego com carteira assinada. Este número é ainda mais expressivo entre os trabalhadores de baixa renda, chegando a 75,6% para aqueles que ganham até um salário-mínimo. Estes dados evidenciam o fracasso da promessa de que a flexibilização traria melhores condições de trabalho e renda.
A insegurança financeira é uma realidade para grande parte dos trabalhadores informais. Enquanto apenas 45% deles conseguem prever sua renda para o próximo semestre, esse percentual chega a 67,5% entre funcionários com carteira assinada. Além disso, a renda dos autônomos é muito mais volátil, com 19,8% experimentando variações de mais de 20% de um mês para o outro, em comparação com apenas 4,7% dos trabalhadores com CLT.
O perfil dos trabalhadores informais também revela desigualdades estruturais no mercado de trabalho brasileiro. A maioria é composta por homens (66%) e negros (54,5%), com uma concentração significativa na faixa etária de 45 a 65 anos (38%). Estes dados reforçam a tese de que a “reforma trabalhista” não apenas falhou em promover a inclusão, mas pode ter aprofundado desigualdades existentes.
A “reforma trabalhista” também enfraqueceu significativamente os sindicatos ao acabar com a contribuição obrigatória. Esta medida, posteriormente retificada pelo STF, representou um golpe na capacidade de organização e negociação coletiva dos trabalhadores. Como aponta Souto Maior (2017), o enfraquecimento dos sindicatos desequilibra as relações de poder entre empregadores e empregados, facilitando a imposição de condições de trabalho desfavoráveis.
O argumento de que a “reforma trabalhista” aumentaria a produtividade também não se sustenta. Segundo Tobler, muitos trabalhadores estão atuando fora de suas áreas de especialização por necessidade, o que impacta negativamente a produtividade. Este fenômeno contradiz a lógica de um mercado de trabalho eficiente e demonstra as consequências negativas da precarização.
A lei das terceirizações, aprovada também em 2017, permitiu a terceirização da atividade-fim das empresas, supostamente para gerar mais empregos. Contudo, como apontam estudos anteriores à reforma, os trabalhadores terceirizados tendem a trabalhar mais horas e receber salários significativamente menores (Druck 2016).
A queda recente na taxa de desemprego, atingindo 6,9% no segundo trimestre de 2024, não pode ser atribuída diretamente à “reforma trabalhista”. Fatores como a recuperação pós-pandemia e o aumento do salário-mínimo, que estimula o consumo e a atividade econômica, têm papel mais significativo nessa redução, como argumenta o professor José Dari Krein.
A perspectiva de Thompson nos lembra que devemos analisar as mudanças nas relações de trabalho não apenas através de estatísticas, mas considerando as experiências vividas pelos trabalhadores. Neste sentido, o alto percentual de trabalhadores informais que desejam um emprego com carteira assinada é um indicador claro do fracasso da “reforma trabalhista” em proporcionar condições de trabalho satisfatórias.
A promessa de que a flexibilização e a autonomia trariam melhores oportunidades para os trabalhadores se revelou uma falácia. Como observa Krein, a ideia de que cada trabalhador tem autonomia e poder de negociação igual ao do empregador ignora as realidades estruturais do mercado de trabalho e as desigualdades de poder inerentes às relações laborais.
A “reforma trabalhista” também impôs obstáculos para o acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho, dificultando a busca por direitos e reparações. Essa medida, combinada com o enfraquecimento dos sindicatos, deixou os trabalhadores ainda mais vulneráveis diante de práticas abusivas e violações de direitos trabalhistas.
O estudo do CESIT-UNICAMP (Krein, Gimenez, and Santos 2018) demonstra que a “reforma trabalhista” não apenas falhou em gerar os empregos prometidos, como também contribuiu para a deterioração da qualidade do trabalho no Brasil. A proliferação de contratos atípicos, como o trabalho intermitente e o parcial, tem resultado em menor proteção social e maior insegurança para os trabalhadores.
A pesquisa da FGV-Ibre revela que 44% dos trabalhadores autônomos recebem até um salário-mínimo, evidenciando a precariedade econômica enfrentada por uma parcela significativa dos trabalhadores informais. Este dado contrasta fortemente com a narrativa de empreendedorismo e oportunidade frequentemente associada ao trabalho autônomo.
A “reforma trabalhista” também não conseguiu reverter a tendência de queda na participação dos salários na renda nacional, um indicador importante da distribuição de renda entre capital e trabalho. Ao contrário, ao facilitar formas de contratação mais precárias, a reforma pode ter contribuído para a concentração de renda e o aumento da desigualdade.
A “reforma trabalhista” de 2017 também trouxe mudanças significativas na regulamentação da jornada de trabalho, permitindo arranjos como o banco de horas individual e a jornada 12×36. Segundo Biavaschi et al. (2018), essas alterações potencializaram a intensificação do trabalho e a redução do tempo livre dos trabalhadores, contradizendo a narrativa de que a flexibilização traria mais liberdade e qualidade de vida.
O impacto da “reforma trabalhista” nas negociações coletivas foi substancial. Dados do DIEESE (2019) mostram uma queda no número de instrumentos coletivos registrados no Ministério do Trabalho: de 45.777 em 2016 para 32.560 em 2018. Essa redução de quase 29% indica um enfraquecimento significativo do poder de negociação dos trabalhadores, corroborando a tese de que a reforma desequilibrou as relações de trabalho em favor dos empregadores.
A prevalência do negociado sobre o legislado, um dos pontos centrais da “reforma trabalhista”, tem se mostrado problemática na prática. Estudos do CESIT-UNICAMP (Krein, Oliveira, and Filgueiras 2019) indicam que, em vez de promover negociações mais vantajosas para os trabalhadores, esta mudança tem sido utilizada principalmente para reduzir direitos e benefícios, especialmente em setores com sindicatos mais fracos.
O trabalho intermitente, modalidade introduzida pela “reforma trabalhista”, não cumpriu a promessa de gerar empregos significativos. Segundo dados do CAGED analisados pelo DIEESE (2021), até dezembro de 2020, apenas 1,4% do estoque de empregos formais era de contratos intermitentes. Além disso, a remuneração média desses trabalhadores era significativamente menor que a dos trabalhadores em contratos tradicionais.
A “reforma trabalhista” também alterou as regras para o acesso à Justiça do Trabalho, impondo o pagamento de custas processuais e honorários periciais aos reclamantes que perderem as ações. Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) mostram uma queda de 34% no número de processos trabalhistas entre 2017 e 2018. Essa redução, longe de indicar uma melhoria nas relações de trabalho, sugere um aumento da insegurança jurídica para os trabalhadores (Souto Maior 2017).
O aumento da informalidade pós-reforma tem implicações sérias para a previdência social. O IPEA (2019) aponta que a queda na formalização do trabalho resulta em menor arrecadação previdenciária, comprometendo a sustentabilidade do sistema de seguridade social no longo prazo. Isto evidencia como as consequências da “reforma trabalhista” vão além do mercado de trabalho imediato, afetando estruturas fundamentais da proteção social.
A questão de gênero também merece atenção na análise da “reforma trabalhista”. Estudos do DIEESE (2020) mostram que as mulheres foram desproporcionalmente afetadas pela precarização do trabalho. A flexibilização de jornadas e contratos atípicos tem impactado mais severamente as trabalhadoras, que já enfrentavam desafios relacionados à dupla jornada e discriminação no mercado de trabalho.
A “reforma trabalhista” não conseguiu reverter a tendência de estagnação da produtividade do trabalho no Brasil. Dados do IPEA (2020) mostram que a produtividade do trabalho no país permaneceu praticamente estagnada entre 2017 e 2019, contrariando as expectativas de que a flexibilização das relações de trabalho levaria a ganhos significativos de eficiência.
O impacto da reforma na qualificação profissional também tem sido questionado. A lógica da flexibilização e da rotatividade do trabalho tende a desestimular investimentos em treinamento e desenvolvimento de longo prazo, tanto por parte das empresas quanto dos trabalhadores. Isso pode ter implicações negativas para a competitividade da economia brasileira no cenário global (Krein, Oliveira, and Filgueiras 2019).
A pandemia de COVID-19 expôs ainda mais as fragilidades do modelo de relações de trabalho pós-reforma. A ausência de mecanismos robustos de proteção social e a alta prevalência de trabalhos precários dificultaram a implementação de políticas efetivas de proteção ao emprego e renda durante a crise sanitária. Isto ressalta a importância de um arcabouço legal que priorize a segurança e o bem-estar dos trabalhadores em cenários de crise.
Antes de concluir, é importante trazer alguns dados adicionais do IPEA e do DIEESE que corroboram a análise crítica da “reforma trabalhista”:
Segundo o IPEA (2021), a taxa de subutilização da força de trabalho, que inclui desempregados, subocupados e desalentados, atingiu 28,7% no primeiro trimestre de 2021, o maior patamar da série histórica iniciada em 2012. O dado evidencia que, mesmo com a flexibilização promovida pela reforma, o mercado de trabalho brasileiro continua incapaz de absorver adequadamente a força de trabalho disponível.
O DIEESE (2022) aponta que, entre 2017 e 2021, houve uma redução de 25,8% no número de greves no Brasil. Embora isso possa ser interpretado como uma diminuição de conflitos trabalhistas, é mais provável que reflita o enfraquecimento dos sindicatos e o aumento da insegurança dos trabalhadores em reivindicar seus direitos.
Dados do IPEA (2022) mostram que a parcela dos rendimentos do trabalho na renda nacional caiu de 44,6% em 2015 para 40,1% em 2020. A redução indica uma transferência de renda do trabalho para o capital, sugerindo que a “reforma trabalhista” pode ter contribuído para o aumento da desigualdade econômica no país.
O DIEESE (2023) destaca que, entre 2017 e 2022, houve um aumento de 38% no número de trabalhadores por conta própria sem CNPJ, categoria que inclui muitos trabalhadores em situação precária. Este dado reforça a tese de que a “reforma trabalhista” contribuiu para o aumento da informalidade e da precarização do trabalho.
É importante ressaltar que a “reforma trabalhista” foi implementada em um contexto de crise econômica e política, o que torna complexa a avaliação de seus efeitos isolados. No entanto, a persistência de altas taxas de desemprego nos anos seguintes à reforma, só revertida após a pandemia e por fatores não relacionados diretamente à reforma, sugere que suas promessas eram infundadas.
A análise crítica da “reforma trabalhista” revela que, longe de modernizar as relações de trabalho e gerar empregos de qualidade, ela contribuiu para a precarização e insegurança dos trabalhadores brasileiros. A alta porcentagem de trabalhadores informais que desejam um emprego com carteira assinada é um testemunho eloquente do fracasso desta política.
Em conclusão, a análise aprofundada dos efeitos da “reforma trabalhista”, respaldada por dados do IPEA, DIEESE e outras instituições de pesquisa, revela um cenário preocupante. As promessas de modernização das relações de trabalho, geração de empregos e aumento da produtividade não se concretizaram. Ao contrário, observa-se um aumento da precarização, da insegurança e da desigualdade no mundo do trabalho brasileiro. A perspectiva histórica de E.P. Thompson nos lembra da importância de considerar as experiências concretas dos trabalhadores nessa análise, e os dados apresentados mostram que essas experiências têm sido majoritariamente negativas. Urge, portanto, uma revisão crítica da legislação trabalhista brasileira, buscando um modelo que efetivamente promova o trabalho digno, a proteção social e o desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo.
Erik Chiconelli Gomes é Pós-Doutorando – FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP). Coordenador Acadêmico e do Grupo de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).
Referências:
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