A falência de um modelo de gestão
Silvio Caccia Bava
Como é que chegamos ao ponto de faltar água, um bem público essencial, nas torneiras de muitas de nossas casas? O racionamento já está em vigor em regiões como a de Campinas, no interior, e na Grande São Paulo, mesmo que o governo do estado se recuse a reconhecer oficialmente essa política. No Rio de Janeiro, bairros como Brás de Pina e Cordovil, na zona norte, e Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste, sofrem há meses com a falta de água. E não há perspectivas de curto prazo para a solução desse problema. Especialistas na área alertam que o rodízio no fornecimento de água pode se tornar regular, como é hoje o rodízio da circulação dos automóveis.
Com mais essa crise instalada num ano eleitoral, procuram-se os responsáveis. E a conta cai no colo de São Pedro, que não nos mandou um volume suficiente de chuvas. Na verdade, São Paulo precisa de mais um sistema de fornecimento de água do tamanho do Sistema Cantareira, que abastece 9 milhões de pessoas. No Rio de Janeiro é a mesma coisa: a água disponível não dá para todos. Além do fornecimento de água, precisamos de políticas efetivas de preservação dos recursos hídricos e de melhor aproveitamento da água disponível.
A necessidade existe, mas os investimentos não são feitos. Em 2013, dos R$ 759,4 milhões previstos para serem investidos em saneamento pelo governo do estado do Rio de Janeiro, 16,8% (R$ 127,6 milhões) foram efetivamente gastos. O mesmo acontece em São Paulo, onde a Sabesp deixou de investir R$ 815 milhões, entre 2007 e 2011, nas redes de água e esgoto previstos nos contratos firmados com prefeituras paulistas. “A Arsesp [Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo] considera que a subexecução desses investimentos contratuais criou um benefício extraordinário, que foi apropriado pela Sabesp e, portanto, deverá ser devolvido aos usuários no ciclo tarifário seguinte (2013-2016)”.1
Depois da crise dos transportes públicos, em junho passado, que levou milhões de brasileiros às ruas em quatrocentas cidades do Brasil, temos agora a crise do fornecimento de água, e já se anunciam os apagões e a falta de luz pela sobrecarga do sistema existente e a falta de investimentos em sua melhoria. Sem falar da deterioração da telefonia, especialmente a móvel, cuja expansão não garantiu a qualidade dos serviços.
Tais crises na prestação de serviços públicos essenciais têm uma explicação mais prosaica, mundana, que não mobiliza as forças divinas.
O modelo de gestão pública, adotado principalmente a partir dos anos 1990 e que lançou e lança mão de privatizações, concessões e terceirizações, orienta-se para viabilizar o maior lucro possível para essas operadoras, mesmo sacrificando o interesse público e as necessidades básicas dos cidadãos. Nesse modelo, o Estado é capturado pelos interesses dos poderes econômicos e atua em favor deles. A simbiose entre governos e empresas se aprofunda com o financiamento por empresas privadas das campanhas eleitorais.
A situação não permite remendos no modelo atual. Impõe-se uma discussão de fundo para garantir direitos e assegurar para todos o fornecimento de serviços públicos essenciais de qualidade. A premissa é que esses serviços são bens públicos comuns, são de todos, e não propriedade de ninguém. Não podem, portanto, ser vendidos por empresas privadas, cujo objetivo maior é o lucro.
Transportes coletivos, água, luz, gás, saúde e educação devem se converter em bens públicos comuns, geridos diretamente pelo Estado e fornecidos gratuitamente para toda a população, o que significa que não é o usuário que paga diretamente a conta, e sim os impostos arrecadados de todos.
Evidentemente, um Estado em simbiose com as empresas não é capaz de fazer isso. É um Estado corrupto, que favorece interesses privados. Garantir os direitos das maiorias e a prestação de serviços públicos essenciais de qualidade requer a reapropriação da máquina pública pela cidadania, isto é, uma profunda democratização do modelo de gestão, em que a participação cidadã, pela via de plebiscitos e referendos e pela presença em canais institucionais de participação, possa definir os investimentos, ou seja, quem paga a conta, e exercer o controle social das políticas públicas.
Silvio Caccia Bava é Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.