A falta de transmissões em TV aberta e a invisibilidade dos campeonatos estaduais de futebol no Brasil
Ausência do futebol local na mídia afeta regiões do território nacional com menor investimento de federações, clubes e patrocinadores
As noites de quarta-feira – após a famosa “novela das nove” – e as tardes de domingo no imaginário do povo brasileiro têm relação direta com um programa exibido na TV aberta: a transmissão do futebol. Entretanto, apesar de ser algo que faz parte da cultura de boa parte dos telespectadores do país, a oportunidade de ver o time da sua cidade ou do seu estado “jogando na TV” não é uma realidade para todos os torcedores.
Através de um mapeamento realizado pelo Observatório das Transmissões de Futebóis, com dados sobre transmissões de futebol profissional masculino no Brasil, foi constatado que no ano de 2024 cinco campeonatos estaduais não tiveram suas partidas transmitidas em TV aberta: Acre e Amapá (Região Norte); Maranhão (Região Nordeste); além de Distrito Federal e Mato Grosso do Sul (Região Centro-Oeste).
A situação do campeonato acreano é a mais preocupante. A competição reuniu 11 times, com o Independência conquistando o título de campeão, mas sem nenhuma transmissão por vídeo. No torneio amapaense, mesmo sem transmissões provenientes de TV aberta ou fechada, algumas iniciativas locais registradas no Youtube, em canais como FAF TV, Carcará TV e Brado TV, proporcionaram ao torcedor acompanhar alguns jogos da competição.
No campeonato maranhense, mesmo com equipes tradicionais do futebol brasileiro, a exemplo de Sampaio Corrêa e Moto Club, a única opção de transmissão foi o canal Planeta Esportivo MA no Youtube.
Nos casos do Distrito Federal e do Mato Grosso do Sul, a presença de transmissões via Youtube como opção praticamente única para o torcedor se repetiu. Praticamente, pois no Distrito Federal, o R7 (portal de notícias da Record) transmitiu a final do “Candangão” (como é chamado o estadual do Distrito Federal). Já no Mato Grosso do Sul, as transmissões via Youtube foram feitas por meio dos canais FFMS TV, LUSA TV MS e Operário TV.
Vale ressaltar que a ausência de campeonatos estaduais na TV aberta não é recente, sendo recorrente em regiões do território nacional com menor investimento de federações, clubes e patrocinadores. Entre 2019 e 2024, 40 edições de campeonatos estaduais ficaram sem transmissões na TV aberta, sendo o Norte responsável por metade (20) dessas ausências, seguido pelo Nordeste com 10, o Centro Oeste com 6 e o Sul com 4. Neste período, todas as edições dos estaduais do Sudeste foram exibidas em TV aberta.
É possível fugir dos “jogos fantasmas”? O caso paraibano
A ausência de transmissões midiáticas afeta diretamente a visibilidade dos clubes menores e enfraquece o vínculo dos torcedores com os times locais. Para muitos clubes, as receitas de direitos de transmissão são cruciais para manter a operação durante a temporada, sendo fundamentais inclusive para os grandes times do futebol brasileiro. A falta de exposição também reduz as oportunidades de patrocínio, limitando ainda mais o orçamento.
Além disso, torcedores que não têm acesso a internet de qualidade – o que é uma realidade no Brasil – ou condições de pagar assinaturas de streamings, em muitos casos, ficam excluídos, agravando a desigualdade de acesso ao esporte. Enquanto campeonatos maiores possuem grande visibilidade, acirrando a disputa dos conglomerados midiáticos pelos direitos de transmissão, os estaduais comentados acima enfrentam um processo de esvaziamento, perceptível tanto nos estádios quanto em audiência.
Para fugir dos “jogos fantasmas”, termo popularmente utilizado pelos cronistas esportivos para denominar partidas que não possuem transmissão, iniciativas independentes através do Youtube ou de outras plataformas de streaming acabam sendo a única opção.
Na Paraíba, por exemplo, o campeonato estadual vive uma situação inusitada. De acordo com alguns interlocutores que participam diretamente das negociações, ao invés dos veículos de comunicação “brigarem” pelos direitos de imagem, a Federação Paraibana de Futebol (FPF-PB) financia a transmissão através de um patrocínio master. Desde 2019, a exibição do campeonato é feita pela Rede Paraíba de Comunicação (afiliada da Globo na TV aberta), por meio das suas várias empresas.
E o que os times ganham com isso? A FPF-PB isenta os mandantes do pagamento das despesas como arbitragem, aluguel do estádio, aluguel de ambulância e outras taxas, em seus jogos. No entanto, o pagamento em relação aos direitos de transmissão não existe.
Ainda sobre o estadual paraibano, em 2019, algumas partidas foram exibidas pelo ge.globo (antigo globoesporte). No período entre 2020 e 2023, o Jornal da Paraíba (empresa que pertence ao grupo citado) adotou um modelo de transmissão em pay-per-view, com os valores arrecadados com as assinaturas repassados para os clubes, de acordo com a quantidade de assinantes que manifestaram a torcida do seu clube de coração – modelo semelhante, por exemplo, ao Premiere (Globo).
É necessário lembrar que somente em 2024 a Rede Paraíba transmitiu toda a competição estadual em TV aberta (um jogo por rodada), após o interesse da Empresa Paraibana de Comunicação (rede público-estatal) em se tornar detentora dos direitos de transmissão. A última vez que este modelo havia ocorrido foi entre os anos de 2007 a 2009, através da TV Correio (afiliada da Record na Paraíba). Em anos anteriores, a afiliada da Globo no estado transmitiu somente as finais do Campeonato Paraibano em TV aberta, mesma iniciativa promovida pela TV Tambaú (SBT na Paraíba) em 2019.
Outro detalhe importante do Campeonato Paraibano 2024 é que o Botafogo da Paraíba fez uma negociação, utilizando como argumento a Lei do Mandante, em que seus jogos foram transmitidos pela TV Arapuan (Band na Paraíba). O Belo (apelido do Botafogo-PB) não aceitou a negociação com os representantes da Rede Paraíba.
Cenário geral da transmissão dos campeonatos estaduais
E quanto aos estaduais transmitidos pela TV, qual é o cenário recente?
Em 2023, enquanto afiliadas da Globo transmitiram os campeonatos de sete estados (sendo cinco na TV aberta), Record (3), Band (2) e SBT (2) controlaram outros sete torneios. Onde há pouca concorrência, a mídia público-estatal se destaca: TVE na Bahia, TV Cultura no Pará, TV Educativa no Espírito Santo, TV Assembleia do Paraná, TV Assembleia de Tocantins e TV Assembleia de Roraima – com a TV Universitária de Pernambuco e a TV Aperipê de Sergipe como pioneiras nesses estados.
Já no ano de 2024, a Globo ampliou para oito o número de estaduais televisionados, sendo sete campeonatos exibidos por suas afiliadas em TV aberta, além da Record (2), Band (4) e SBT (2) assumirem outros oito torneios. Nos outros onze campeonatos, a versão local da TV Cultura mantém quatro transmissões (Pará, Roraima, Espírito Santo e Goiás); a TV Brasil ampliou sua exibição para a afiliada do Paraná, além da Bahia, e outras três emissoras público-estatais exibem três estaduais (Tocantins, Amazonas e Bahia).
Ampliando as disputas entre conglomerados nacionais de mídia, o SBT volta para o cenário do futebol no Brasil, assumindo a transmissão de alguns torneios estaduais, após o rompimento de contrato do Grupo Globo com os clubes do Campeonato Carioca em 2020 – por causa do aproveitamento pelo Flamengo da Medida Provisória 984/2020[1].
Os campeonatos estaduais, por sinal, fizeram ressurgir também a transmissão de futebol em outra emissora nacional relevante: a Record TV. A empresa, controlada pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), propriedade do bispo evangélico Edir Macedo, exibiu o torneio carioca em 2021 e 2022, além de ter adquirido os direitos de transmissão em TV aberta do Campeonato Paulista de 2022 a 2029 – e voltará a exibir a Série A do Campeonato Brasileiro a partir do ano que vem.
Enquanto isso, a Rede Bandeirantes, reconhecida nas décadas de 1980 e 1990 como “canal dos esportes”, passou a transmitir o Campeonato Carioca em 2023, com contrato terminando em 2025 – ficando ainda com as transmissões de jogos de outras divisões nacionais, casos das séries B, C e D do Campeonato Brasileiro também a partir de 2023.
Abocanhados pelos meios de comunicação privados ou relegados à comunicação público-estatal, que é pouco valorizada por diferentes governos, os territórios da mídia no Brasil estão associados à formação de centralidades econômicas e demográficas, que se dispõem como nós da rede de produção e circulação de notícias (Fernandes; Pasti, 2022).
Se, por um lado, a FIFA, a nível global, arbitra e conduz os rumos do esporte, há uma dependência dos pequenos e médios veículos de comunicação em relação aos grandes conglomerados. Nesse sentido, a diversidade cultural que fundamenta a capilarização do futebol, quando transformada em mercadoria pela mídia, acaba por enterrar o potencial esportivo dos lugares.
Em resumo, com relação aos Campeonatos Estaduais, o monopólio da mídia segue ditando as regras do jogo. Isso quando há retorno financeiro e viabilidade política para a exibição dos jogos. Caso contrário, os torneios são esquecidos pela mídia comercial e relegados aos esforços de governos locais.
Assim, em um cenário de transformação midiática, é essencial que os estaduais encontrem formas de conectar-se ao público e aos patrocinadores, com as transmissões em vídeo sendo um instrumento fundamental nesta construção. O desafio está em equilibrar a modernização tecnológica com a manutenção das tradições que fazem parte do DNA do futebol brasileiro. Afinal, sem o devido espaço para essas competições na mídia (seja ela tradicional ou plataforma de streaming), uma parte importante da história e da cultura esportiva do Brasil corre o risco de desaparecer.
Iago Vernek é Mestrando em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC (Universidade Federal do ABC), coordenador do Observatório das Transmissões de Futebóis e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação.
Raniery Soares é Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e especialista em Jornalismo Esportivo pela Faculdade Cruzeiro do Sul. Narrador esportivo da Rádio Tabajara da Paraíba, membro do Observatório das Transmissões de Futebóis e da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).
[1] A edição da MP 984, em junho de 2020, por Jair Bolsonaro, não teve acordo no Congresso Nacional naquele momento, porém foi sancionada no ano seguinte como Lei 14.205/21. Conhecida como “Lei do Mandante”, a norma concede os direitos de imagem dos jogos apenas aos clubes “da casa”, alterando a Lei Pelé (9.615/1998), que obrigava as emissoras a negociar a exibição das partidas com mandantes e visitantes. Essa antiga prerrogativa contribuiu para a manutenção do poder da Globo no futebol, à medida que os clubes perderam poder de barganha em relação aos valores de imagem (Fernandes, et al., 2020).