Transmissões por streaming e democratização do acesso: uma falsa simetria?
Plataformização da mídia e fragmentação do conteúdo têm redefinido o panorama do acesso à informação e ao futebol
Nos dias atuais, em que as tecnologias da informação moldam a nossa rotina, somos levados a acreditar que a conectividade global e a liberdade de escolha são acessíveis a todas as pessoas. No entanto, à medida que os fluxos informacionais aceleram e impõem novas dinâmicas, surge uma reflexão crucial: essas tecnologias, em vez de democratizar, podem acentuar as desigualdades existentes?
A fim de entender as relações entre o futebol e a mídia, o Observatório das Transmissões de Futebóis — um projeto desenvolvido pelo Intervozes junto ao grupo de pesquisa Crítica da Economia Política da Comunicação (CEPCOM/UFAL) — realizou um mapeamento das exibições do futebol profissional masculino e de mulheres no Brasil, via TV aberta, fechada e plataformas digitais, desde 2012 até 2024, envolvendo campeonatos nacionais, internacionais, estaduais e de seleções.
Diante da crescente presença dos serviços de streaming, a plataformização da mídia e a fragmentação do conteúdo têm redefinido o panorama do acesso à informação e ao futebol. Num contexto de ampla exploração dos dados pessoais e modulação da audiência, enquanto os torcedores sofrem com a dificuldade de acompanhar os jogos, algumas empresas brasileiras e estrangeiras, lucrando cifras gigantescas, se revezam nas transmissões esportivas.
Origem e avanço do streaming no futebol brasileiro: uma perspectiva crítica do acesso à informação
Ao observar as tendências dos principais campeonatos exibidos no Brasil, nota-se um aumento significativo das transmissões online, sobretudo a partir de 2018, com a chegada de empresas como Facebook, DAZN, Twitter e My Cujoo (vide gráfico abaixo) para o audiovisual esportivo. Antes disso, em 2012, a ESPN e o Esporte Interativo lançaram suas próprias plataformas de streaming, o WatchESPN e o EI Plus, seguindo uma experiência anunciada pelo grupo Globo, maior conglomerado midiático do país, a partir do Premiere, um canal de pay-per-view dedicado ao futebol e hospedado na TV por assinatura.
Transmissões por streaming de campeonatos nacionais, regionais, internacionais e de seleções de futebol profissional masculino e feminino no Brasil (2012-2024)
Em um cenário de convergência tecnológica e diversificação no formato dos conteúdos midiáticos, um movimento de renúncia da Globo à veiculação de eventos importantes como a Copa Libertadores da América (entre 2020 e 2022), o Campeonato Carioca (a partir de 2021), o Campeonato Paulista (a partir de 2022) e até mesmo a Fórmula 1 (a partir de 2021), permitiu a entrada de outros atores nas transmissões esportivas, o que acirrou as disputas em um mercado em expansão.
Enquanto o esporte bretão atrai interesse econômico de gigantes da comunicação, a receita advinda dos direitos de imagem tem sido cada vez mais fundamental para a sustentabilidade dos clubes, sobretudo onde há poucas formas de obter rendimentos. Nesse sentido, se por um lado, sobretudo após 2022, ganham protagonismo novos veículos estrangeiros, como Conmebol TV (parceria com a Band no Brasil), Star+/Disney+ (ESPN), Max (Warner/Discovery), Paramount+, Prime Video e Twitch (Amazon), TikTok (ByteDance) e YouTube (Alphabet); por outro, conglomerados nacionais de mídia, a exemplo de SBT, Band e Record, buscam manter alguma relevância neste importante setor da indústria cultural do país (vide gráfico abaixo).
Transmissão de torneios nacionais, internacionais e de seleções de futebol profissional masculino no Brasil (2012-2024)
No que diz respeito ao futebol masculino, a principal competição internacional de clubes, UEFA Champions League, teve um domínio da Globo, em parceria com a ESPN, nas transmissões entre 2012 e 2018, numa divisão de direitos que perdurou no Brasil até a entrada do Fox Sports, com o canal do grupo Disney transmitindo os torneios europeus enquanto o Sportv focava nos nacionais e torneios de seleções. A partir de 2015, os canais Esporte Interativo (existente até 2018), TNT e Space (propriedades do grupo Warner/Discovery) assumiram a exibição até 2024. A saída da Globo fora ocupada pelo Facebook Watch até 2021, quando o SBT entra na disputa e a Warner/Discovery ativa um canal de streaming próprio, então HBO Max.
A UEFA Europa League, por sua vez, foi exibida por Terra e Esporte Interativo até 2014. Entre 2015 e 2018, a Fox Sports ganhou destaque, sendo que em 2019, após a aquisição do veículo pelo Grupo Disney, a ESPN passou a ser a principal responsável pelas transmissões. Nesse mesmo período, o SBT e a TV Cultura também veicularam o torneio.
No continente sul-americano, desde 2012, a Copa Libertadores foi transmitida por Globo e Fox Sports. No ano de 2019, entra em cena o Facebook, que mantém a exibição do torneio até 2022, abrindo caminhos para novos formatos de transmissões. Vale ressaltar que mesmo após a aquisição da FoxSports pelo Grupo Disney, o canal continuou operando no Brasil até 2021, quando foi substituído pela ESPN. Neste ano, o SBT adquiriu os direitos da competição, junto com a Paramount+, canal norte-americano que vem assumindo um papel significativo nos últimos anos, ao lado da ESPN/Star+/Disney+.
Em relação aos torneios nacionais, tanto o Campeonato Brasileiro quanto a Copa do Brasil sempre contaram com a Globo como principal detentora dos direitos de imagem. De 2019 a 2021, a TNT exibiu jogos de alguns clubes da Série A na TV fechada, retornando em 2023 com jogos do Athlético Paranaense como mandante. Nesta mesma brecha de transmissão sob pagamento, também em 2023, a Cazé TV, em seu canal no YouTube, surge como mais uma alternativa para a torcida do Furacão – com retransmissão no Prime Video em 2024 – , que possui inclusive um canal próprio de veiculação das partidas (Rede Furacão)[1]. A partir de 2022, a Amazon, por meio da plataforma Prime Vídeo, compartilha os direitos de imagem da Copa do Brasil com a Globo.
Em relação aos campeonatos regionais, a Globo e o Esporte Interativo foram responsáveis pela maior parte das transmissões da Copa do Nordeste até 2018, quando o SBT e a Fox Sports passaram a dividir essa tarefa com plataformas de streaming ou pay-per-view criadas ou testadas para a competição (LiveFC, Nordeste FC, Nosso Futebol+, Twitch e Tik Tok). A Copa Verde, que atrai um público mais específico, teve exibições variadas por Esporte Interativo Plus, MyCujoo, TV Brasil e DAZN.
No que tange aos campeonatos de seleções, na Copa do Mundo, a Globo manteve o domínio das transmissões, com a Fox Sports e a Band oferecendo, ocasionalmente, cobertura adicional. No caso da Copa América, a Globo também se destacou como a principal emissora, sendo que a ESPN e o SBT assumiram algumas edições anteriores, no caso da TV aberta, no momento de reorganização de contratos durante a pandemia de Covid-19.
Por fim, a trajetória das transmissões dos principais campeonatos de futebol feminino tem sido marcada por significativos vazios ao longo dos anos, refletindo a atenção tardia dada ao esporte em comparação com o futebol masculino. Até 2016, competições continentais, tais como a Champions League Feminina e a Copa Libertadores da América Feminina, não contavam com uma cobertura televisiva consistente. Em contrapartida, a incorporação do futebol feminino nas plataformas digitais passou a preencher alguns espaços deixados pela televisão, sobretudo a partir de 2017, quando teve início uma mudança gradual nas transmissões da modalidade.
Acesso a internet e a contradição da audiência
Enquanto as tecnologias da informação fomentam a ideia de que vivemos em um mundo onde o acesso ao conteúdo midiático é democratizado, dados da pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Nic.br (CGI), indicam que apesar de 84% dos lares brasileiros estarem conectados à internet, as camadas mais vulneráveis da população, especialmente aquelas localizadas nas periferias urbanas e nas áreas rurais, ainda enfrentam barreiras significativas para a inclusão digital[2].
A comparação da audiência das principais plataformas de streaming e da TV aberta provoca outra importante reflexão: será que não estamos a uma falsa simetria? A título de exemplo, a Globo afirma ter alcançado, durante as Olimpíadas de 2024 em Londres, cerca de 140 milhões de telespectadores (somando Rede Globo, SporTV, Globoplay e GE.com). Por outro lado, a CazéTV no mesmo evento, alcançou aproximadamente 40 milhões de dispositivos diferentes, além de aproximadamente 2 milhões de novos inscritos.
Outro ponto central acerca da complexidade do fenômeno é justamente a distinção entre “visualização” e “audiência”. Conforme apontado no site Valor Econômico, “view” não equivale necessariamente a uma pessoa assistindo ao conteúdo, pois este pode ser gerado por acessos curtos ou interações não humanas (bots, por exemplo). Essa falha na medição da audiência online revela um problema estrutural: a incapacidade de compreender o verdadeiro impacto e alcance do streaming no Brasil. Se na televisão aberta a audiência é medida de uma forma mais precisa e controlada, com sistemas como o do Kantar IBOPE, na internet os dados podem ser superfaturados ou distorcidos. Ressalta-se ainda o enorme mercado clandestino de transmissões, via sites e equipamentos piratas, criminalizados pelo Estado.
Rivalidade e cooperação entre conglomerados nacionais e internacionais de mídia: mais do mesmo ou algo novo?
O controle das transmissões, antes concentrado em poucas emissoras de televisão, hoje está disperso entre um número crescente de atores — muitos deles ligados ao capital financeiro global. Essa diversificação, inclusive no formato dos conteúdos, embora aparente uma democratização do consumo midiático, esbarra em inúmeras distorções. Apesar do alcance relevante das plataformas digitais, uma análise mais cuidadosa revela dados inflados e pouco transparentes, já que o acesso precário à internet ainda é uma realidade em muitas regiões do Brasil.
Em meio a transformações significativas, como a possibilidade de acompanhar uma gama maior de partidas através de plataformas gratuitas, a reorganização do mercado midiático se reflete na disputa pelos direitos de transmissão das principais competições futebolísticas. Neste contexto, o monopólio de emissoras tradicionais de TV, como a Globo, Band, Record e SBT, é abalado por um grupo de empresas, frequentemente vinculadas ao capital financeiro global[3].
Principal parceira da Cazé TV, a partir do gerenciamento de marketing e direitos esportivos, a LiveMode exemplifica a adoção de uma outra estratégia: aumentar o número de transmissões, apostando que a fragmentação gera mais receita do que a concentração em uma única plataforma. Esse modelo contrasta fortemente com o da televisão aberta, havendo um confronto de paradigmas.
Apesar do sucesso recente (mesmo que com alguns fracassos) das plataformas de streaming, a TV Globo, com uma infraestrutura consolidada e redes espalhadas por todo o país, ainda consegue alcançar um público significativamente maior do que as transmissões via internet. Dados fornecidos pela própria Globo mostram que a emissora atinge um número de espectadores muito superior comparado às suas transmissões online. Esses números são fundamentais para um primeiro entendimento desta falsa simetria, onde a percepção de democratização do acesso pode, na verdade, ser uma ilusão.
Iago Vernek Fernandes é Mestrando em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, coordenador do Observatório das Transmissões de Futebóis e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação.
Jonathan Ferreira é Doutorando pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Rio Claro-SP e Université libre de Bruxelles (Centre d’étude de la vie politique), membro do grupo de estudos Mundo Dentro e Fora das Quatro Linhas (MDF4L), do Observatório das Transmissões de Futebóis e do Observatório Social do Futebol (UERJ).
[1] A transmissão dos jogos pela TNT e pela CazéTV, na Twitch e no YouTube, é resultado direto da Lei do Mandante, Lei nº 14.205/2021, que alterou as regras sobre os direitos de transmissão de eventos esportivos, permitindo que o mandante da partida decida de que forma a transmissão será realizada.
[2] Como apontam Franciani Bernardes e Aline Souza, do Intervozes, as desigualdades na conexão refletem as profundas fragmentações sociais e econômicas do país. É nesse ponto que as desigualdades territoriais se revelam: a inclusão digital não se limita ao simples ato de estar conectado, mas ao poder real de participação, criação e consumo de conteúdo — uma autonomia e possibilidade que muitos ainda não têm.
[3] A Liga Forte União (LFU), por exemplo, é controlada por grupos como a XP Investimentos, a General Atlantic (que também controla a LiveMode), e a Life Capital Partners. Essa estrutura de investimento, que se assemelha a uma rede interconectada, evidencia como diversos intermediários controlam os clubes de futebol, refletindo um movimento já consolidado na Europa.