A fantasia da Filarmônica de Nova York
Tudo começou em agosto de 2007, quando o Ministério da Cultura da Coreia do Norte enviou um convite para o presidente da orquestra americana. A questão foi levada para a Casa Branca que, surpreendentemente, confirmou a realização do concerto na cidade proibida de Pyongyang
No dia 25 de fevereiro de 2008, 75 jornalistas se apinhavam no portão de embarque da Asiana Airlines, no Aeroporto Internacional de Pequim, China. Os correspondentes, vindos de todo o mundo, aguardavam ansiosos pela oportunidade de viajar ao destino proibido: Pyongyang, a capital norte-coreana. A maioria nunca tinha estado lá e alguns já haviam tentado obter, sem sucesso, um visto. De repente, as câmeras começaram a clicar furiosamente os 110 membros da Filarmônica de Nova York que se aproximavam. Carregando instrumentos em lugar de bagagem de mão, os músicos se juntaram a 25 patronos que pagaram US$ 50 mil cada um para acompanhar a Filarmônica à Coreia do Norte.
Fazia uma semana que eu vinha seguindo a orquestra no seu tour asiático. Pequim, a última parada antes de Pyongyang, era um gigantesco canteiro de obras. “O que está sendo oferecido a vocês é um privilégio”, me disse Eric Latzky, relações públicas da Filarmônica, antes da minha partida de Nova York. Aparentemente, o privilégio não incluía a oportunidade de falar com os músicos sem sua permissão, mas ele me assegurou que iria conseguir entrevistas. Durante o tour eu cansei de esperar. Quando perguntei aos músicos sobre o concerto planejado para Pyongyang, as respostas foram as mesmas: “Isto é sobre música, não política”. “Estamos trazendo música a pessoas que não têm música.” “Este é um momento histórico e estamos felizes de cumprir um papel nele.”
Recapitulando
Tudo começou em agosto de 2007, quando um mediador na Califórnia, cujo nome não foi divulgado, enviou um convite do Ministério da Cultura da Coreia do Norte. Zarin Mehta, presidente da Filarmônica, levou a questão para Christopher Hill, assistente do Secretário de Estado para assuntos da Ásia Oriental e Pacífico. “Acredite, isto foi aprovado nos níveis mais altos da Casa Branca”, disse Mehta. A Coreia do Norte prometeu que o concerto seria transmitido ao vivo pelos meios de comunicação estatais. Mas a eletricidade é rara, assim como os aparelhos de televisão. Isso sem levar em conta a reputação do regime em não cumprir a palavra dada. Então, por que fazê-lo? Mehta respondeu-me com seriedade: “Paz no mundo”. (…)
A Asiana Airlines tinha gasto perto de US$ 700 mil para fornecer um voo charter grátis para o evento da Filarmônica. A rede MBC, a principal transmissora na Coreia do Sul, enviou 15 caminhões com equipamento e 72 pessoas de sua equipe para o outro lado da zona desmilitarizada, a um custo estimado de US$ 3,2 milhões.
O silêncio se fez sentir quando o pouso foi anunciado, às 16 h. Os passageiros voltaram seus rostos para as janelas. Para os poucos de nós que tínhamos estado antes em Pyongyang, o lugar era insondável. Após seis anos, eu estava novamente observando esta terra, fonte de sofrimento e saudade para gerações de coreanos.
Em 25 de junho de 1950, quando os tanques norte-coreanos invadiram Seul, minha avó empacotou seus pertences e pegou os cinco filhos, incluindo minha mãe, então com quatro anos. Se juntou à multidão em pânico, lutando para subir num trem em direção ao Sul. No momento em que ela finalmente tinha conseguido assegurar os assentos para a sua família, alguém gritou que os homens jovens deveriam ceder seus lugares a mulheres e crianças. Seu filho de 17 anos se levantou e disse que iria no próximo trem, que nunca chegou. Seus amigos depois mencionaram tê-lo visto sendo levado por soldados norte-coreanos, com as mãos amarradas. Minha avó perambulou por Seul em busca do seu primogênito e só se tranquilizou quando um shamã local lhe disse que ele estava vivo em algum lugar perto de Pyongyang. Até sua morte, de um ataque do coração, duas décadas depois, ela olhava para o Norte como se o paralelo 38 fosse se romper a qualquer minuto e ele lhe fosse devolvido.
A guerra durou três anos e deixou 3 milhões de civis mortos, feridos ou desaparecidos – aproximadamente um décimo da população da península. As baixas militares da Coreia do Norte e dos chineses foram estimadas em 1,5 milhão. As forças da Coreia do Sul contabilizaram 415 mil mortos e 429 mil feridos; as forças americanas, 33 mil mortos e 103 mil feridos.
Quando aqueles que falando em nome da Filarmônica se referiam ao concerto como “histórico”, eu ficava pensando no que eles queriam dizer. Seis anos atrás, fui a Pyongyang somente para ficar sabendo que meu tio continuava desaparecido, meio século depois do armistício.
Desta vez, quando chegamos à capital norte-coreana, a neve estava caindo suavemente. Em cima do único prédio do terminal aeroportuário estava pendurado um retrato de Kim Sung-Il, o primeiro grande líder, cuja filosofia fundadora Juche, significando “autossuficiência”, definiu seu país. Aqui, o ano é Juche 97, de acordo com o calendário que inicia com o nascimento de Kim, em 15 de abril de 1912, “o dia do Sol”. Desde sua morte em 1994, Kim Sung-Il foi relegado ao título de “presidente eterno” ou “eterno grande líder”, enquanto que seu filho, Kim Jong-Il, assumiu o posto de “grande líder” e “grande general”. O jovem Kim, apesar de jamais ter passado um dia num quartel, detém o cargo de comandante supremo do Exército Popular da Coreia, o quarto maior do mundo, que convoca todos os homens e mulheres na faixa etária de 16 anos para cumprir de sete a dez anos de serviço militar.
Ao desembarcar na pista, encontramos um grupo de homens ostentando broches do grande líder. Enquanto os fotógrafos rodeavam a orquestra, iniciei uma conversa com um repórter do canal de televisão Chosun Central, chamado Kwon Soon Ho. “Há dois meses que estamos todos esperando sua chegada. Todos estão ansiosos para assistir o concerto na TV”, declarou o jornalista. “Nos não temos maus sentimentos em relação ao povo dos Estados Unidos. Nós somos dongbangyaeuijiguk – uma nação cortês do Oriente – e trataremos nossos convidados com respeito.”(…)
Meu quarto, no 33º andar do Hotel Internacional Yanggakdo, estava tão aquecido que quando entrei procurei imediatamente uma janela, que estava parafusada e coberta de vapor. Da janela do corredor podia ver o horizonte sombrio de prédios cinzentos rodeando a curva do rio Taedong. Eu teria gostado de observar a paisagem, mas o itinerário organizado pela Filarmônica não deixou tempo para protelações ou reflexões. Agora eram 17h30. O show de boas-vindas dos Artistas de Mansudae estava marcado para começar em meia hora, no Teatro Moranbong. Era um espetáculo de danças tradicionais, com leques e tambores.
Eu estava sentada perto de Kim Chul, representante da Associação Coreana de Intercâmbio de Arte, patrocinadora oficial do evento. Ele perdeu pouco tempo antes de me transmitir um conselho severo: “Você deve escrever boas coisas sobre nós, assim será convidada de novo”. Com o desenrolar do jantar, Chul foi ficando mais eloquente. ”Quanto você está ganhando para escrever seu ensaio?” “O seu computador tem internet?” “Quanto custa uma câmera nos Estados Unidos? Eu quero viajar e tirar fotos, mas não tenho câmera.” Perguntei a ele qual era seu salário. “Nós somos socialistas”, foi sua resposta. Enquanto a sobremesa era servida, ele sugeriu: “Talvez você gostasse de me deixar seu computador e câmera como lembranças”.
Na manhã seguinte, eu estava carregando algumas edições antigas do Rodong Shinmun, o jornal diário oficial de seis páginas, e vários repórteres se acotovelaram na minha mesa me pedindo para lhes dizer o que estava escrito em coreano, apesar de termos tradutores por toda parte. Em 24 de fevereiro, um editorial trazia a manchete, “Juche é a vida de nossa música”, expondo as posições de Kim Jong-Il sobre a música como ferramenta política. No dia seguinte, o artigo da capa era intitulado “Os sul-coreanos aplaudem o gênio artístico do grande general Kim Jong-Il” e listava alguns dos inumeráveis livros que ele escrevera. E na manhã de 26 de fevereiro havia um texto sobre a popularidade no exterior dos clássicos norte-coreanos, como “A canção do general Kim Jong-Il” e “Sem você não há país”. Na página 4, abaixo de uma coluna intitulada “Nossa música, nossa maneira” havia uma foto da chegada da Filarmônica e uma legenda de três linhas.
Na entrevista coletiva da Filarmônica, mais tarde naquele dia, eu perguntei se o concerto tinha algo a ver com as celebrações do aniversário de Kim Jong-I1, que geralmente contam com artistas estrangeiros se apresentando ao grande líder. As datas eram tão próximas que o evento poderia ser apresentado como parte dos tributos. Mehta negou isso com firmeza.
Os jornalistas foram levados para um tour de duas horas pela cidade. Um dos destinos era a estátua de bronze de 20 metros de Kim Sung-Il. Um grupo de norte-coreanos subiu os degraus e fez reverência, oferecendo buquês de flores. Todo mundo parecia estar observando todo mundo o tempo todo. Os guias e tradutores, assim como os repórteres, nos seguiam enquanto nós estudávamos seu povo. Na nossa próxima parada, o Grande Salão de Estudos do Povo, encontrei alguns patronos que estavam hospedados em diferentes hotéis e participavam de outro tour. No saguão principal, vários jovens se debruçavam sobre uma dúzia de computadores. Exceto por citações emolduradas de Kim Jong-Il cobrindo as paredes, poderíamos estar em qualquer biblioteca pública do mundo. Baek Hyang Lan, aluna veterana da Universidade Kim Sung-Il, estava procurando os escritos do grande líder. Quando lhe perguntei por que estava ali em vez da biblioteca da universidade, ela disse: “Esta instituição é grátis, assim como todas as outras instituições de ensino. Eu tenho muita sorte”. A última parada do passeio foi uma viagem de metrô a partir da estação Bu heung (Renovação). Quando o trem chegou à estação Yonggwang (Glória), a plataforma estava tomada por uma multidão. Não estava claro de onde eles tinham vindo. Os guias não me pararam quando corri atrás de uma jovem mulher com uma elegante parka rosa e jeans. Ela se identificou como Lee Eun Ju, uma estudante de 19 anos. Perguntei a ela sua opinião sobre a visita da Filarmônica: “Eu não tenho maus sentimentos para com o povo americano. Estou ansiosa para assistir o concerto na televisão”. Perguntei-lhe o que ela estava cursando. Ela respondeu: “Música”. (…)
Um pouco antes das 6 h da tarde, filas de homens em ternos escuros e mulheres vestindo ultrapassados hanboks, trajes locais típicos, começaram a ocupar o saguão de mármore branco do Grande Teatro Ocidental de Pyongyang. Quando o ministro de Cultura deixou de comparecer, depois de uma hora de espera, alguns repórteres começaram a murmurar que tudo não passava de uma armadilha para nos impedir de andar por aí fazendo perguntas.
Deixamos a sala de imprensa para encontrar o saguão fervilhando com dignitários estrangeiros. Os norte-coreanos não se detinham, seguindo diretamente para dentro do teatro, mas consegui que alguns falassem comigo. Não importava o que eu perguntava; as cinco pessoas com as quais conversei terminaram falando da “Árdua Marcha”, utilizando o eufemismo do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte para a fome dos anos 1990, que, de acordo com algumas fontes, matou 2,5 milhões de pessoas. Um velho professor de música, que não revelou o nome, disse: “Nós sobrevivemos à Árdua Marcha que nos foi imposta pelo Superpoder. Nós somos dongbangyaeuijiguk e vamos tratar nossos convidados com respeito. Mas logo nos tornaremos um país forte e poderoso, sob a direção do nosso grande líder”. Um representante da Associação Coreana de Intercâmbio de Arte me deteve: “Se você quiser conversar com o nosso povo, nós escolheremos alguns para você”. (…)
A audiência ouviu impassível enquanto o maestro Lorin Maazel explicava as três peças apresentadas naquela noite, de Dvorak, Gershwin e Bernstein. A tentativa de Maazel de dizer “Divirtam-se!” em coreano arrancou as esperadas risadas. Os eventuais pedidos de bis pareceram perfunctórios e automáticos.
Depois da abertura de Candide, de Bernstein, a Filarmônica começou a tocar algo que não estava no programa. Os homens ao meu lado pareciam saber exatamente o que era, o que me surpreendeu, porque eu não reconheci a melodia de imediato. Logo após a primeira nota, o tradutor me sussurrou o nome de uma canção folclórica que todos os coreanos aprendem e cada região tem sua própria versão, “Arirang”.
Uma vez terminado o concerto, vários repórteres estrangeiros correram para conversar com o público que saía rapidamente e de maneira ordenada, assim como a orquestra. Perguntei-me por que continuávamos com tantas questões. Provavelmente pensávamos que se insistíssemos os norte-coreanos finalmente iriam se render e nos diriam o que de fato passava em suas mentes. Mas, desde o desempenho da orquestra ao aplauso da audiência e as brilhantes luzes de Pyongyang, tudo tinha sido delicadamente ensaiado, não somente pelo regime da Coreia do Norte, como também pela Filarmônica de Nova York. A verdadeira audiência era, na verdade, a mídia, cujo papel era o de servir de testemunha a toda a produção.
Os norte-coreanos podem educadamente tolerar uma presença americana e até cortejar sua companhia. Porém, nada além de uma política externa americana responsável poderá mudar o fato de que, por 55 anos, eles têm desprezado os Estados Unidos e sua política. A referência casual de Maazel a “americanos em Pyongyang” demonstra uma tremenda falta de consideração pelo passado colonial da Coreia, como se a orquestra estivesse descendo na Lua e hasteando sua bandeira para exibir ao mundo todo. A mídia internacional fez sua parte, enviando 75 jornalistas para a cobertura do que, afinal, era apenas um concerto.
Maazel, retornando aos Estados Unidos, apareceu numa série de entrevistas para afirmar que os norte-coreanos viram e ouviram com atenção o concerto. Mais tarde, ele escreveria no seu blog que “70 milhões de coreanos o amarão para sempre!”, conforme lhe foi dito por autóctones. Já a CNN mostrou seu âncora assistindo ao concerto na televisão com uma família coreana, na sua sala de estar, provando assim para o mundo inteiro que essa família pré-selecionada tivera acesso à transmissão ao vivo do evento. Fui informada depois que o clipe da versão de “Arirang” da Filarmônica foi editado num documentário sobre o Festival “Arirang”, uma comemoração do nascimento de Kim Sung-Il que aconteceu sete semanas depois da partida da Filarmônica. Já em relação à transmissão por rádio, nada foi confirmado, exceto por um memorando interno do Departamento de Estado americano que declarou que no horário da performance, Pyongyang levou ao ar dois programas: “A perigosa estratégia americana para a Coreia do Norte” e “Quem está liderando a intensificação das tensões?”
Tudo isso seria revelado mais tarde. Mas no banquete a seguir ao concerto, só se pensava em celebrar. Mehta propôs um brinde à sua orquestra: “Para os melhores do mundo”. O vice-ministro norte-coreano da Cultura, Song Sok Hwan, disse que a Filarmônica “abriu os corações do povo da Coreia”. Latzky anunciou que o DVD do concerto estaria disponível em breve por US$ 24.99. Ninguém mencionou a ausência do grande líder. Mais tarde, os correspondentes estrangeiros deixaram a sala do banquete para comprar o estoque da edição em inglês de O grande professor dos jornalistas, de Kim Jong-Il, na loja de souvenirs do hotel.
*Suzi Kim é escritora e pesquisadora acadêmica.