A felicidade como uma questão política
As múltiplas crises geradas pela dinâmica do modelo de desenvolvimento vigente abrem uma nova discussão: reduzir o crescimento, ou até mesmo diminuir a produção, e conseguir atender a todos. Para os defensores do decrescimento, o desafio é viver melhor com menos
Em 14 de outubro de 2008, o primeiro-ministro François Fillon não conseguiu disfarçar sua perplexidade: ele assistiu ao deputado dos Verdes, Yves Cochet, defender a tese do “decrescimento” em plena Assembleia Nacional da França.
Diagnosticando uma “crise civilizacional”, Cochet afirmou, sob protestos da direita, que “agora a busca pelo crescimento passaria a ser antieconômica, antissocial e antiecológica”. Naquele momento, seu apelo por uma “sociedade mais sóbria” tinha poucas chances de obter qualquer respaldo. Mas com o agravamento da recessão econômica, esse assunto parece ter entrado de vez na pauta dos franceses.
Assim, os questionamentos em torno do modelo de desenvolvimento surgem, sobretudo, como consequência óbvia da crise que abala o planeta. De repente, os pensadores do decrescimento passaram a ser ouvidos com mais atenção. “Andaram procurando por mim”, comemora Serge Latouche. “Nossos debates estão cada vez mais cheios de gente”, confirma Paul Ariès, outro intelectual que se tornou referência nessa corrente de pensamento.
“Nesta conjuntura, em que muitos dos nossos argumentos são comprovados pela realidade, devemos começar a indagar se haverá uma alternativa entre o decrescimento sofrido, imposto pela recessão atual, e aquele conduzido”, afirmava Nicolas Hulot durante a corrida eleitoral para o Parlamento europeu.1 Para alguns de seus partidários, o colapso atual constitui uma formidável oportunidade para essa causa. “Tomara que a crise piore!”, exclama Latouche, utilizando uma “pedagogia das catástrofes”. Sem ser tão extremista, Yves Cochet avalia, por sua vez, que somente esbarrando nos limites da biosfera a humanidade será obrigada a ser mais ponderada. “Não haverá mais crescimento em decorrência de razões objetivas. Por força das circunstâncias o decrescimento é o nosso destino”, avalia o deputado ecologista. Só nos restaria torcer, então, para que a crise acelere a conscientização da sociedade em prol do decrescimento, “para fazer com que ele seja democrático e equitativo”.
Esse ponto de vista, porém, está longe de ser compartilhado por todos. “De maneira alguma essa ‘pedagogia das catástrofes’ descreve a realidade que estamos vivendo”, rebate Vincent Cheynet. O redator-chefe do jornal La Décroissance (O Decrescimento) avalia que “se a crise oferece uma oportunidade para questionar o mundo à nossa volta e a nós mesmos, ela apresenta também o risco de engendrar tensões e gerar medo entre a população”. Para ele, “uma crise de grandes dimensões seria a pior das situações”.
Jean-Luc Pasquinet, militante do Movimento dos Opositores do Crescimento (MOC), observa que “a crise é uma oportunidade para nos lembrar que o crescimento não é mais possível”. Mas pondera: “Ao mesmo tempo, em períodos como este, as pessoas tendem a se voltar para os seus interesses particulares”. Paul Ariès também aponta a ambivalência da crise: “De um lado, ela posterga o sentimento de urgência ecológica, pois a prioridade do momento seria lutar em defesa do poder aquisitivo e dos empregos. De outro, mostra que durante décadas vivemos em cima de mentiras”2. Assim, na avaliação daqueles que duvidam que a recessão possa pavimentar o caminho do decrescimento, a inquietude disputa espaço com a esperança.
O caráter inovador e o impacto desse tema contrastam com a influência muito reduzida das forças políticas que o incorporaram em suas pautas. O Partido em Prol do Decrescimento (PPLD) foi fundado em 2006 por Vincent Cheynet, para quem “a conquista do aparelho institucional assumiu caráter emergencial”. Entretanto, querelas internas nunca permitiram que essa organização saísse do papel. “Constituir um partido político é muito difícil em meios que tendem a ser anarquistas”, lamenta Cheynet. Recentemente, alguns militantes tentaram relançar o PPLD. Embora a agremiação atraia muitos jovens, o seu porta-voz, Vincent Liégey, reconhece que o processo para retomá-la ainda está um pouco “hesitante”. Curiosamente, o PPLD recusa-se a divulgar seu número de filiados. “Não queremos nos tornar um partido de massas, não estamos à procura de novos membros nem de eleitores”, diz Rémy Cardinal, outro porta-voz desse micropartido.
Em outra iniciativa, parte dos opositores do crescimento lançou, em 2007, o MOC. O movimento já teria atraído cerca de 200 seguidores e conseguiu eleger para cargos públicos uma dezena de seus quadros, por meio de uma rede muito descentralizada. Reunindo militantes mais experientes, como Jean-Luc Pasquinet, antigo porta-voz do PPLD, e Christian Stunt, ex-integrante dos Amigos da Terra e do Partido Ecologista, o MOC comemora a presença em suas fileiras de “muitas mulheres e muitos jovens”.
Capitalismo verde?
Recentemente, MOC e PPLD deram início a um processo de aproximação, criando em parceria a Associação dos Opositores ao Crescimento (Adoc). Sob a etiqueta “Europe Décroissance” – Europa Decrescimento – eles fizeram campanha conjunta na última eleição para o Parlamento europeu. Por não disporem de muitas condições materiais e terem grandes divergências, eles nem sequer imprimiram cédulas para a votação, pedindo aos seus eleitores que o fizessem eles mesmos, acessando o site da associação. O resultado era previsível: Jean-Luc Pasquinet, que encabeçava a lista em Île-de-France (região parisiense), obteve somente 0,04% dos votos válidos.
Mas as ideias do decrescimento têm uma repercussão que de maneira alguma se compara a esses números. A popularidade do jornal mensal La Décroissance, fundado em 2004, revela o razoável impacto dessa corrente: a sua tiragem é de 20 mil exemplares, dos quais 13 mil são vendidos em bancas. A sua linha editorial se caracteriza pelo tom polêmico, cujos alvos prediletos são os expoentes de um “capitalismo verde” e de um “desenvolvimento sustentável”.
Já a revista ecologista Silence (Silêncio), cuja tiragem é de 6 mil exemplares, publicou em 1993, sem sucesso, aquele que foi o primeiríssimo dossiê a respeito do decrescimento, recheado de trechos do livro fundador do conceito criado por Nicholas Georgescu-Roegen.
Na segunda tentativa, em 2002, a situação foi bem diferente, demonstrando o poder de disseminação dessas ideias: um colóquio realizado na sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) pela associação Ligne d’Horizon e do qual participaram 700 pessoas, entre elas José Bové, Ivan Illitch e Serge Latouche, colocou o termo em evidência. A Silence alcançou grande sucesso e, posteriormente, dedicou várias edições à exploração dos mais diversos aspectos desse projeto. “O decrescimento talvez seja o grande tema do século XXI”, pondera Michel Bernard, um dos colaboradores da revista.
Desde 2008, outra publicação intelectual de qualidade, a Entropia, que se define como a “revista teórica e política do decrescimento”, vem explorando os inúmeros problemas levantados por essa perspectiva teórica.3 Essa vertente, coordenada por Jean-Claude Besson-Girard, cultiva laços mais ou menos informais com uma série de organizações: as redes antinucleares ou anti-OGMs (organismos geneticamente modificados), os movimentos internacionais “Slow Food”4 e “Slow Cities”, e muitas associações antipublicitárias. “A vontade de mudar as coisas passa pela apresentação de alternativas”, sublinha Guillaume Gamblin, um dos colaboradores da revista Silence.
As ideias relativas ao decrescimento não são nenhuma novidade. De fato, elas eram muito mais disseminadas durante os anos 1970 do que hoje. Contudo, 30 anos atrás a contestação do produtivismo estava circunscrita a um espaço ideológico fechado e não influenciava a esquerda, ainda dominada pelo Partido Comunista (PC) e por um marxismo ingenuamente “progressista”. Agora, com a crise ambiental e os questionamentos que pesam sobre o trabalho como valor, a união entre anticapitalismo e antiprodutivismo está progredindo.
“O decrescimento vem reafirmar, por meio de um vocabulário novo, antigas questões às quais o movimento operário tentava responder”, garante Paul Ariès, que foi comunista durante a juventude. “O que me atraiu nessa nova vertente foram suas afinidades com a crítica da alienação, ‘o direito à preguiça’… Ao contrário do que muitos pensam, a esquerda nem sempre optou pelo caminho do produtivismo!”
A evolução das posições de Jean-Luc Mélenchon é um sintoma da influência exercida pelo decrescimento no âmbito da esquerda. Oriundo de uma estrita tradição marxista, tendo sido inicialmente militante trotskista lambertista e depois socialista, o fundador do Partido de Esquerda (PG) elogia hoje “o poder de interrogação” que emana dos adeptos do decrescimento. “É preciso refletir de maneira diferente a respeito do nosso modo de vida e nos perguntarmos, por exemplo, se devemos avançar sempre com rapidez”, afirma. Ele também critica “o produtivismo que insinuou a ideia segundo a qual tudo o que é desejável deve se tornar necessário”.
O Novo Partido Anticapitalista (NPA) é outro interessado em se relacionar com os expoentes do decrescimento. Tanto que, no decorrer de algumas negociações, foi elencada a possibilidade de convidar um militante do decrescimento para encabeçar uma lista apoiada pelo NPA e o PG nas eleições parlamentares europeias. A proposta, contudo, acabou fracassando.
Já os Verdes, paradoxalmente, parecem não se preocupar muito com os conceitos relativos ao decrescimento, apesar dos esforços de Yves Cochet. O anseio do partido por respeitabilidade e o peso de seus parlamentares os afastou de tudo e de todos que possa atrapalhar sua expansão entre o eleitorado, e isso inclui o questionamento dos padrões produtivos. Em dezembro de 2008, a moção apresentada pelo partido no final do seu congresso fez referência, pela primeira vez, ao “decrescimento”, mas limitou este último às questões relativas à “pegada ecológica”.5
Falta de projeto
Paul Ariès se refere ao decrescimento como sendo uma “palavra-obus”, uma peça de artilharia destinada a abalar o produtivismo. Já Vincent Cheynet elogia a capacidade que esse vocábulo tem de “questionar e incomodar” a sociedade. Porém, a grande fraqueza dessa corrente é não projetar um futuro possível para a humanidade.
Suas vertentes estão, acima de tudo, às voltas com profundas divergências filosóficas. Cheynet não arreda pé de suas posições republicanas e universalistas, enquanto o africanista Latouche é “relativista cultural” assumido. “A minha perspectiva é claramente republicana, democrática e humanista”, declara Cheynet, que na juventude chegou a ser militante centrista. “O Estado-nação é, ao mesmo tempo, ultrapassado e não desejável”, rebate Latouche. Já Paul Ariès se posiciona no campo da República, ainda que siga colaborando com os católicos de esquerda da revista Golias. Pierre Rabhi, figura destacada do decrescimento que tentou ser candidato à eleição presidencial de 2002, representa, por sua vez, uma corrente espiritualista.
As concepções divergentes da democracia também atiçam as divisões. Há aqueles que querem investir nas instituições e apresentar-se nas eleições, como Cheynet. Outros privilegiam a democracia direta ou o mandato imperativo. “A desconfiança em relação à democracia representativa é muito forte nesses meios”, observa o pesquisador Fabrice Flipo. “Nós precisamos de uma consolidação da democracia direta, mas também da representativa”, pondera Paul Ariès. Já Serge Latouche tem uma maneira diferente de expressar essa ambiguidade: “Eu me considero profundamente democrata, mas não sei o que é ao certo a democracia”, afirma.
Poucos são os partidários do decrescimento que arriscam descrever algumas características da sociedade que eles almejam. Em 2002, Cheynet foi um dos raros que aceitaram se submeter a esse exercício.6
Numa “economia saudável, o transporte aéreo e os veículos dotados de motor a explosão seriam condenados a desaparecer, e as embarcações à vela, a bicicleta, o trem e a tração animal os substituiriam”. A sociedade também evoluiria rumo “ao fim dos grandes centros comerciais, em proveito das lojas de bairro e das feiras, e em direção à supressão dos caros produtos manufaturados, em proveito dos objetos produzidos localmente”. Enquanto a reabilitação da produção local é compartilhada por todas as correntes do decrescimento, a ideia de instituir moedas regionais, defendida por alguns, é vista, em geral, como uma medida demasiado extrema.
É difícil acreditar que um programa dessa natureza possa seduzir uma maioria de eleitores. Por isso, Serge Latouche prefere insistir no método de elaboração de uma “sociedade autônoma”, com os seus oito “R”: “Reavaliar, Reconceituar, Reestruturar, Redistribuir, Redimensionar (localmente), Reduzir, Reutilizar, Reciclar”7. Enquanto sonha com uma sociedade de pequenas cidades federadas, ele argumenta em favor da arbitragem política dos conflitos entre os partidários do decrescimento. Mas há quem evite questões delicadas, refugiando-se em abordagens individuais que preconizam a “sobriedade voluntária”. Outros creem nas virtudes exemplares de iniciativas locais, como a do movimento “Cidades em transição”, que reúne cerca de 130 comunas – majoritariamente na Grã-Bretanha – comprometidas com metas de decrescimento energético e de retorno a uma produção local.8
Contudo, o decrescimento ainda carece de uma definição política positiva, que tenha capacidade de mobilizar da mesma forma que o socialismo o fez nos séculos XIX e XX. “Nós enfrentamos dificuldade quando se trata de inventar uma nova narrativa para o imaginário coletivo”, deplora Yves Cochet. “Qual seria a utopia impulsionadora para responder à pergunta: como viver melhor com menos?”
A fórmula que reza que “quando há menos bens, maiores são os laços” talvez não seja satisfatória. É preciso “ampliar a gratuidade dos bens dos quais se faz bom uso e proibir aqueles que são assimilados ao mau uso”, preconiza Ariès, acrescentando que a definição dessa utilização será produto de deliberação política. Ele arremata: “O objetivo é reduzir as desigualdades sociais”. De fato, o decrescimento prejudicaria, em primeiro lugar, os mais ricos.
Em última instância, é mesmo a questão filosófica da “boa vida” que transparece como pano de fundo nesses debates. Trata-se de substituir a concepção de um desenvolvimento econômico ditado pela dinâmica própria do progresso técnico por uma lógica de arbitragem democrática.
O filósofo Patrick Viveret, interessado nos questionamentos que fundamentam o decrescimento, não aprova, contudo, as soluções propostas em seu nome. Ele recusa “a proibição de considerar a felicidade como uma questão política” sob o pretexto de que os totalitarismos se arriscaram a adotar essa abordagem. “Se nos recusamos a colocar democraticamente a questão do viver melhor, em nome do que, então, iremos fundamentar um pensamento crítico do modo de desenvolvimento atual?”
Liberais ou socialistas, os progressistas têm em comum a meta de procurar aumentar as riquezas materiais, reduzindo a questão da felicidade a um assunto de ordem privada. Se as sociedades humanas, confrontadas aos limites físicos da natureza, não questionarem esse pressuposto, abre-se a porta para um vertiginoso espaço de indeterminação política.
*Eric Dupin é jornalista.