A França na Otan
Há 43 anos, o fundador da V República havia se retirado do comando integrado da Otan, época em que a União Soviética mantinha sob controle autoritário um bom número de países da Europa. Agora, Sarkozy anunciou que a decisão do general De Gaulle de retirar o país dessa organização era coisa do passado
Nicolas Sarkozy gostaria que seu mandato marcasse a ruptura com um “modelo social francês” ao qual a falência do capitalismo financeiro à moda americana acaba de proporcionar algum alento.
Agora, será que ele resolveu acabar com outra tradição francesa, a da independência nacional?
Ainda que ele nunca tivesse mencionado tal “ruptura” durante sua campanha eleitoral, e que ele tenha condicionado o retorno da França ao comando integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a um reforço da defesa europeia, Sarkozy anunciou que a decisão do general de Gaulle de retirar o país desta organização era coisa do passado.
Há 43 anos, o fundador da V República havia se retirado do comando integrado da Otan, época em que a União Soviética mantinha sob seu controle autoritário um bom número de países da Europa. Podemos nos perguntar por qual motivo – ou tendo em vista quais guerras – a França haveria de dar essa guinada, agora que o pacto de Varsóvia deixou de existir e que muitos de seus antigos membros (Polônia, Hungria, Romênia etc.) foram incorporados à União Europeia (UE) e à Aliança Atlântica.
Será que se trata de garantir um emprego para oitocentos oficiais franceses em Norfolk, na Virgínia, no quartel-general da Otan? Ou de agradar aos industriais do armamento, amigos do senhor Sarkozy, que calculam que um retorno da França à Otan lhes permitirá vender maior quantidade de equipamentos militares? Ou ainda, de convencer os americanos de que, a partir do momento em que Paris deixa de atuar por conta própria, Sarkozy possa se tornar um protagonista em seu círculo de influência?
Mais provavelmente, o Elysée espera tirar partido da simpatia que o novo presidente dos Estados Unidos inspira para superar uma imperdoável exceção francesa. Aquela que viu Paris se erguer contra todos os doutores Fantásticos do “choque das civilizações” no momento da guerra no Iraque. Posição que atraiu para as suas fileiras muitos dos atuais partidários de Sarkozy. Entre os quais Bernard Kouchner, seu ministro das Relações Exteriores.
A maior parte dos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU) não pertence nem à Otan nem à União Europeia (UE); seis dos países membros da UE tampouco são integrantes da Otan (Áustria, Chipre, Finlândia, Irlanda, Malta e Suécia). Entretanto, uma confusão já está sendo instaurada entre as três estruturas. Ela visa estender o perímetro geográfico da organização militar e lhe confiar missões de “estabilização” que extrapolam amplamente seus talentos e sua jurisdição.
Assim, invocando a transformação do planeta numa “terra sem fronteiras”, uma reduzida maioria de deputados europeus (293 votos contra 283) acaba de exigir, em 19 de fevereiro, que em “setores tais como o terrorismo internacional; […] a criminalidade organizada; as ciberameaças; a deterioração do meio-ambiente, as catástrofes naturais, entre outros 1”, uma “parceria ainda mais estreita” seja implantada entre a União Europeia e a Otan. Sob a forma de uma elegante metáfora, a exposição dos motivos deixa claro que “sem uma dimensão militar, a UE não passa de um cão que ladra, mas não morde”.
Determinados a não poupar nenhum argumento, os deputados apoiam suas declarações na recordação das “horas sombrias da nossa história”, de Hitler, de Munique, sem esquecer algumas linhas dedicadas a “Elie Wiesel, sobrevivente do holocausto”. “Quem não gostaria que alguém viesse em nosso socorro quando estamos chorando?”, argumentam então.
Secar as lágrimas dos civis nunca se constituiu como o principal talento dos oficiais americanos. Nem por ocasião da guerra do Kosovo, nem durante a guerra do Iraque, ambas conduzidas como atos de violação da Carta das Nações Unidas. Para deputados europeus, muitos Estados membros da ONU estão equivocados ao se referirem à “doutrina do não-alinhamento, herdada da época da Guerra Fria, [o que] fragiliza a aliança das democracias”…
Todos já entenderam que “a futura defesa coletiva da Europa”, à qual o chefe do Estado francês acabou aderindo, organizar-se-á unicamente no quadro da Aliança Atlântica. Misturando missões civis e militares, ela não hesitará em estender seu raio de ação muito além da antiga “Cortina de ferro”, até os confins do Paquistão.
No interior do próprio partido do presidente Sarkozy, dois antigos primeiros-ministros, Alain Juppé e Dominique de Villepin, já se dizem preocupados com tal orientação. O que constitui um sintoma eloquente do perigo da guinada que ela anuncia.
*Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).