A guerra na vida dos sobreviventes, dissidentes e residentes
“Tudo se modifica quando estamos a viver uma guerra. Há um processo de desumanização que atinge o outro, mas também nos atinge. Para autorizar a violência, eu tenho que desumanizar o outro. Mas esse processo é uma faca de dois gumes: eu também me desumanizo para me legitimar como autor de violência.” Confira entrevista com o escritor moçambicano Mia Couto
A guerra mostra que somos resistentes ao que podem pensar os militares.
Mia Couto
Mia Couto é representativo de um importante papel ao tratar – para além de seus poemas e seus escritos sobre a vida – de questões sociais por meio da literatura e dar notoriedade não só à guerra, mas também à cultura africana de Moçambique. Une sua obra – mais de trinta livros traduzidos em 24 países – como escritor (também) dos residentes da/na guerra à sua biografia de filho de migrantes. Traz o olhar tanto daqueles que migram de um país para o outro em razão dela quanto daqueles que a vivem, que se movimentam em seu transcorrer, que convivem com seus mortos, em sua terra. Como é migrar sem deixar o território, como se movimentar em seu plantar? Como se refazer sem sua terra ressurgir? A vivência sem o mover dos corpos, do chão, tendo de ser o mesmo, no mesmo lugar, com a vida diferente. Como vivem os que não migram na guerra? Talvez migrem de suas casas para ônibus carbonizados, como Tuahir e Muidinga em Terra sonâmbula,1 mas seu farol de referência continua a ser inalterado. Que abalos e impactos acontecem se sua cultura é a mesma e você não pode trazê-la ao acontecimento? Tudo isso ele nos disse nesta entrevista sobre Moçambique, cultura africana e marcas da guerra e da paz.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – A guerra ocupa um lugar marcante em sua literatura. O que Moçambique tem de particular dentro do cenário da guerra? O que aprender com o pós-guerra moçambicano?
MIA COUTO – Nós próprios, moçambicanos, temos um aprendizado muito fluido e nebuloso quase, porque não percebemos o que foi essa guerra. Não percebemos, portanto, o que é paz e como ela foi conquistada, pois não foi conquistada só porque houve diálogo entre forças políticas e militares. A paz nasceu de outra maneira que não podemos identificar, isto é, nasceu de um desejo de resgatar aquilo que era uma cultura, cultura antiga e diversa. Essa cultura inclui uma grande capacidade de escutar o outro, de resolver por consenso, de aceitar essa grande complexidade da sociedade moçambicana com todas as suas etnias. Essa capacidade de aceitação acontece em Moçambique não porque o povo seja particularmente diferente dos outros, mas porque há uma religiosidade que é feita de vários deuses. Essa religiosidade africana está viva e é ainda dominante, apesar de conviver com as religiões monoteístas modernas. Essa outra religiosidade africana aceita que há vários deuses, e isso obriga a uma aceitação de verdades múltiplas. A princípio parece estranho uma pessoa ser católica ou muçulmana e ao mesmo tempo ter outra religião. Aqui isso não é visto como estranho. A paz que conquistamos resultou dessa capacidade de aceitação do outro. Não sabemos como foi feito, temos medo ainda de revisitar o passado. Não sabemos dar nomes a esses processos, e ficamos com medo daquilo que não podemos dar nome. E, em geral, os moçambicanos não gostam de falar desse período da guerra. A história de Moçambique é uma história das guerras que se somaram e se seguiram. Esses conflitos geraram sempre situações mal resolvidas, e a percepção comum é que o melhor é não recordar esses momentos de tensão. O esquecimento é o remédio para essas feridas mal saradas. Não é um esquecimento fácil; não é, sobretudo, um esquecimento verdadeiro, mas funciona. O refúgio que se procura em outro lugar, em outra vida ou existência, seja o que for, não é uma coisa de agora. Mesmo que uma pessoa não migre, não saia de seu sítio, ela é um refugiado no sentido de que ela sai de si mesma à procura de um lugar utópico, num ilusório paraíso distante. Eu também sou um refugiado, pois já vivi num lugar absoluto que era a infância e agora estou atravessando os meus oceanos. É claro que o meu drama é muito menor do que o de alguém que está atravessando a geografia do medo num pequeno barco, com riscos reais de vida. Os sofrimentos não podem ser comparados, mas, de alguma maneira, acho que criamos um regime de viver que obriga quase todos nós a essa procura de um refúgio que fica além do horizonte.
Quando a reinvenção de si fica mais evidente na guerra?
Tudo se modifica quando estamos a viver uma guerra. Há um processo de desumanização que atinge o outro, mas também nos atinge. Ninguém fica imune, ileso, nesse processo todo. Para autorizar a violência, eu tenho que desumanizar o outro, porque, se eu o reconheço como humano, eu tenho um bloqueio na minha violência. O outro deve ser convertido numa coisa, num rato, num monstro. Mas esse processo é uma faca de dois gumes: eu também me desumanizo para me legitimar como autor de violência. No caso de uma guerra como a que tivemos em Moçambique, uma guerra civil, o outro era sempre tão próximo que se tornou difícil esse processo de distanciamento. A guerra nunca foi somente militar e política, era também um conflito de natureza religiosa. As pessoas estavam na iminência de serem empurradas para um vazio absoluto, e o tempo que vinha, o tempo moderno, era um tempo cego para essas pessoas, para a sua cultura rural e africana, para a sua religiosidade politeísta. Nesse outro futuro, as pessoas eram dispensadas, descartáveis. Por isso, uma parte dos camponeses não lutava apenas contra um regime político, mas contra uma coisa que nem eles sabiam definir, contra a modernidade como uma ameaça total. Era uma causa desesperada, e só assim se explica a sua violência profunda. No início eu pensava que não iria escrever sobre a guerra enquanto houvesse guerra; eu já vivia no limiar. A gente se esvazia é nas coisas pequeninas, e não nas grandes frustrações. Chegar em casa e não ter comida, ter filhos e não ter dar o que comer, não haver energia elétrica, não haver nada nas lojas. De repente, ficamos paralisados por um envolvente sentimento de impotência. Não se sabe mais contra quem vamos criar raiva. Eu não era capaz de dormir, era visitado pelos amigos que morriam, os meus colegas que foram assassinados na guerra, e tudo aquilo não me dava sequer um amparo de uma causa, de uma vingança, de uma bandeira de luta. Então, a certa altura pensei que tinha que converter em livro essa realidade tão cruel. Eu tinha que ficcionar aquela violenta irracionalidade. Foi o que fiz com o romance Terra sonâmbula. É um livro delirante, porque foi uma maneira de juntar essa gente que deambulava no limite da sua própria humanidade. A guerra proporcionou a visão do apocalipse, mas também a dimensão infinita da resposta humanizante que as pessoas construíam dentro de si e nas relações que estabeleciam com os outros. Uma aldeia era atacada, matavam gente e queimavam casas e, no meio daquele caos, havia logo quem tratasse de reconstituir a vida, e, horas depois, havia um tambor celebrando e pessoas cantando. E assim impunham a bandeira da vida acima dos escombros. A guerra revela essas pequenas histórias de resistência. E esses episódios são muito mais importantes que os relatos militares. Porque a guerra mostra que somos resistentes ao que podem pensar os militares.
Morte e vida, silêncio e vozes estão presentes em seus contos, romances e poesias. Como descreve a tessitura de não parecerem contrários, mas parte do mesmo lugar?
Acho que aqui tenho uma vantagem que é este lugar onde nasci, onde eu vivo, este lugar que sou eu. Não existe neste lugar lugar para a construção de dualidades tal como surgem nas filosofias europeias. Tudo tem outra fronteira. A diferença entre morte e vida, entre voz e silêncio, tudo isso é definido de outra maneira. Pouco me importa saber onde está a verdade: se no meu lado europeu, se no meu lado africano. Interessa-me saber que existem e coexistem verdades diversas. Um bom exemplo é o contraste entre o modo como aprendi em criança a viver os momentos de silêncio e como hoje os vivo. Por exemplo, se nesta conversa ficássemos em silêncio, em certo momento isso se tornaria constrangedor, um de nós teria que dizer qualquer coisa para rasurar esse incômodo. Mas aqui em Moçambique, não. As pessoas podem ficar em silêncio o tempo que for preciso, como se não houvesse vazio nem ausência. Por muito que estejamos calados, persiste sempre uma presença, há sempre uma voz. Não há essa dualidade entre voz e silêncio. Como se no silêncio alguém estivesse falando e a gente simplesmente tivesse apenas que aprender a escutar. No caso da vida e da morte, acontece o mesmo; as pessoas nunca morrem aqui. Os mortos estão vivos aqui. É claro que em todo lado se pensa que os mortos estão presentes, mas aqui eles não só estão presentes, como comandam uma parte da nossa vida. A diferença está no poder que eles partilham para conduzir a vida. Meu pai morreu primeiro que minha mãe, e eu pensei que aquele luto seria um teste profundo para ver o quanto eu assumia a verdade de uma impossível ausência. Estou convicto de que passei nesse teste, porque sinto que ele permanece vivo e criador da minha vida. Dou por mim espantado a olhar para as minhas mãos e a confirmar que aquelas são as mãos dele.
A identidade do “não ser” e do “vir a ser” é frequente em sua obra. Autobiografia, biografia de histórias de vida, histórias da terra ou parte identitária permanente da guerra?
Um exemplo dessa visão da identidade como coisa fluida pode ser encontrada no modo como as pessoas recebem os seus nomes. Em princípio, o nome é o emblema mais forte e mais definitivo da nossa identidade. Em certo sentido, eu sou o meu nome. Ora, em muitas culturas de Moçambique, as pessoas têm vários nomes ao longo da sua vida. As pessoas atravessam etapas que são bem claras desde que nascem, tornam-se adolescentes, casam-se, tornam-se pais e envelhecem. As pessoas recebem nomes diferentes para cada uma dessas etapas. Nesse aspecto, fui eu que atribuí a mim mesmo o nome de Mia, fui eu que assim me chamei quando tinha 3 anos de idade. Posso dizer que eu fui autor de meu próprio nome. A ideia de que os seres se vão desenvolvendo amarra-nos a uma ideia de continuidade a partir de um núcleo que, no início da nossa ontogenia, já integra aquilo que é a nossa essência. Desenvolver quer dizer negar aquilo que nos envolve, retirar essas capas das nossas sucessivas aparências e libertar esse núcleo para que, num certo momento, ele se revele por inteiro. Essa é uma ideia equivocada, porque muito daquilo que acreditamos ser uma essência é o resultado de trocas profundas que nos fazem nascer e morrer infinitas vezes. Algumas culturas moçambicanas aceitam mais esse sentido de mutabilidade, como se a pessoa viajasse dentro dela, como se fosse se descobrindo pessoas diferentes, à medida que ela está em trânsito. Quando eu chego a um lugar e surjo como um estranho, as pessoas querem saber em que estágio da minha viagem me encontro. Uma das primeiras perguntas é se sou um pai, ou uma mãe. Se essa condição paterna ou materna se confirma, eu terei que ser tratado de outra maneira; o vínculo de relação passa a ser diferente.
Em muitas entrevistas, o senhor diz que tem uma forma caótica de escrita e é levado por alguma coisa a escrever. Diante disso, poderíamos pensar sobre a relação da intuição com o escritor?
Eu tenho uma certa dúvida sobre as palavras. O que a gente chama de intuição? Está sempre implícita não apenas uma distinção, mas uma hierarquia; intuição é menos que raciocínio, pensamento é menos que sentimento. É difícil aceitarmos que sentir é um modo de pensar. A poesia não é apenas um gênero literário. É um modo de entender o mundo, de deixar que esse cosmo de revele dentro de nós. Na verdade, temos caminhos múltiplos para perceber o mundo, de sermos este mundo. Um dos professores que me marcaram muito (ao longo da minha vida tive certamente mais que trinta professores, mas só me lembro de três. O que aconteceu para que os outros se tivessem apagado?) era um ser sem medo de ser original e sabia que a sua missão não era dar “aulas”, mas lições. Esse homem levava-nos para o campo e mandava que desenhássemos as paisagens. E dizia: “A vossa mão tem outra maneira de pensar. A mão é um outro cérebro e, ao desenhar, ela se apercebe de coisas que a vossa cabeça nunca irá entender”. Eu gosto de pensar assim, que não pensamos só com o cérebro, pensamos com o corpo todo, e cada parte do nosso corpo tem a sua maneira de apreender as coisas e os outros. O conhecimento resulta não de um estatuto, mas de uma conversa. Muito do mundo é feito de caos, e isso nos dá medo, porque pensamos que o saber resulta da arrumação dos conceitos; a sabedoria tem a aparência ordenada de uma biblioteca. Nem tudo se traduz em figura, número, letra. Para isso que nos chega desse modo caótico, o melhor caminho é a intuição. Sou muito sensível à beleza não apenas pela força estética, mas porque existem verdades que só se podem dizer por via da beleza. Recordo uma vez que era suposto fazer uma palestra em São Paulo e eu levava uma comunicação preparada, mas, quando cheguei ao Parque do Ibirapuera, encontrei uma árvore que me desarrumou todo. Aquela criatura causou em mim uma impressão tão forte que eu esqueci tudo o que trazia para dizer. “Essa árvore vai dizer tudo o que quero.” Fotografei aquela monumental criatura e projetei a imagem em todos os encontros. E acho que consegui transmitir o meu fascínio. Porque aquela árvore não era uma criatura. Nela morava o tempo, a nossa relação com a terra, a nossa relação com o sagrado.
*Beatriz Brandão é jornalista, escritora, doutora em Ciências Sociais e professora de Sociologia da UFRJ. Maylta dos Anjos é doutora em Ciências Sociais e professora do IFRJ.
1 Considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.