A Índia busca um novo lugar
Em um momento de disputas estratégicas na Ásia, a entrada dos indianos no seleto clube de países que comercializam armas nucleares é uma das maiores alterações na ordem internacional. O país, que ainda está aprendendo a lidar com o poder chinês, também começa a se tornar uma potência
Em 6 de setembro de 2008 o Nuclear Suppliers Group (NSG) – cartel formado pelas 45 nações que controlam o comércio de insumos nucleares – decidiu, por unanimidade, alterar suas regras. O motivo? Permitir à Índia o acesso a combustível e equipamentos fornecidos por seus membros. A deliberação foi aprovada apesar de a nação asiática continuar fora do Tratado de Não-Proliferação Nuclear e de se recusar a aceitar as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica.
A entrada dos indianos no seleto clube de países que possuem armas nucleares e detêm o direito de comercializar esse material é simplesmente uma das maiores alterações na ordem internacional desde o colapso da União Soviética e a ascensão da China. A decisão do NSG, que beneficia principalmente França e Rússia, grandes fornecedoras de material nuclear, não poderia ter sido tomada sem o incentivo dos Estados Unidos. O país enxerga nesse acordo nuclear o pilar de uma futura aliança estratégica entre Washington e Nova Délhi, com vistas ao reforço de sua hegemonia na Ásia.
Ascensão espetacular
Afinal, os americanos sabem que, se o centro de gravidade político se deslocou definitivamente para o leste, uma das razões para tal é a emergência da Índia como força estratégica e econômica. De 2003 a 2008, o país registrou taxas anuais de crescimento da ordem de 8,75%, bem acima da média global, e suas reservas internacionais se expandiram de modo flagrante1. Ainda que a ascensão dos indianos tenha sido menos espetacular que a dos chineses, o efeito acumulado da transformação em curso em ambos os países forneceu à Ásia um papel inédito: pela primeira vez desde o surgimento do capitalismo e da modernidade ocidental, existe a possibilidade real de que poderes estrangeiros não sejam mais capazes de dominar o Oriente.
Isso acontece em um momento de disputas estratégicas na Ásia, complicando ainda mais as equações. Um dos fatores mais espantosos atualmente é que os americanos se dizem também uma potência “asiática” – o secretário de Defesa Robert Gates descreveu os Estados Unidos como uma “nação do Pacífico com um papel duradouro na Ásia”, creditando ao seu país certa ajuda no processo de ascensão asiático2. Nessa condição, os EUA não aceitam uma correlação de forças que os exclua. Preocupados com o crescimento militar do chamado “poder nacional compreensivo” chinês, os americanos também estão conscientes de que deixar a Índia solta e sem amarras pode gerar um incômodo futuro.
A China já expressou suas reservas às pretensões americanas de ser reconhecida como uma potência asiática. Posição diferente da indiana, que não vê grandes problemas desde que esse poder seja usado com responsabilidade e promova a estabilidade.
Porém, os efeitos “apaziguadores” da presença militar americana praticamente inexistem. Basta lembrarmos que a administração Bush empreende uma guerra desastrosa no Iraque, quase iniciou outra no Irã e ainda provocou a emergência da Coréia do Norte como uma potência nuclear declarada. Mesmo no caso do Afeganistão, onde o conflito é apoiado pelo establishment indiano, Washington fez vistas grossas às ligações militares subterrâneas entre o Paquistão e os “neotalebãs” e lançou operações de combate, ao invés de fomentar a paz no país.
Ao que parece, o futuro do continente depende muito dos próximos passos dados pela Índia no cenário político internacional. Mas o país está numa encruzilhada, sem conseguir prever seu próprio papel no mundo e a natureza de suas relações futuras com os Estados Unidos e a China. Ainda que as duas grandes potências de nosso tempo projetem um vulto gigantesco sobre os cálculos estratégicos de Nova Délhi, a Índia não pode ser considerada puramente americocêntrica ou sinocêntrica.
De fato, os indianos tentam se afirmar como uma potência autônoma e, para tanto, articulam sua política externa em cinco grandes níveis. O primeiro diz respeito à vizinhança imediata, o sul da Ásia. Aí, a estratégia consiste em desenvolver uma “conectividade” física e econômica com todos os seus vizinhos, embora a disputa na Caxemira limite o alcance dos arranjos práticos com Islamabad. É verdade que as relações da Índia com todos os países fronteiriços, e não somente o Paquistão, nunca foram boas. Mas neste espaço econômico o capital indiano encontra uma vasta terra-de-ninguém para sua expansão, sem resistências. Isso pode ser atestado pelo vertiginoso crescimento do comércio indiano na região, ainda que esta represente apenas 5,5% do total das exportações do país, contra 15% para o nordeste da Ásia e expressivos 21% para a área conhecida como “Ásia ocidental e norte da África”, de acordo com estatísticas do Ministério do Comércio3.
O segundo nível se refere a todo o continente asiático, considerado um espaço geoestratégico. No primeiro ímpeto de independência, líderes indianos como Nehru davam enorme importância à Ásia. É neste contexto que ocorre a famosa Asia Relations Conference em Nova Délhi, em 1946, um ano antes de o país se tornar uma nação livre. Pouco depois, em 1955 a Índia foi uma participante entusiasmada da Conferência de Bandung. Eventos posteriores, entretanto, levaram a Ásia a adquirir menor relevância dentro da concepção indiana de política externa. Assim, mesmo que seus líderes falassem em “Ásia”, o que queriam dizer era “China”. Mas isso mudou: hoje a Índia está consciente de sua localização estratégica no sul do continente e, para garantir essa posição e defender seus interesses, avalia que é preciso haver paz e estabilidade.
O compromisso indiano com a enorme lista de problemas globais é o terceiro ponto da política externa do país. Seja no que concerne ao comércio, ao terrorismo, às mudanças climáticas ou à segurança energética e alimentar, a Índia começou a se posicionar de maneira vigorosa, freqüentemente buscando formar alianças ou coalizões.
É preciso manter todos os aliados
O quarto nível de interação desse Estado com o mundo tem a ver com a emergência recente do capital indiano como um ator global. Da Europa até a Bolívia, onde a firma Jindal é grande investidora do setor de aço e ferro, o governo da Índia assume um novo rol de desafios. Acostumada a se defender contra as demandas estrangeiras, Nova Délhi é agora chamada para fazer lobby em nome de “suas” multinacionais em setores tão díspares quanto óleo e gás, aço, produtos farmacêuticos, tecnologia da informação e transporte.
O último nível da política externa indiana é o das relações com as grandes forças mundiais. Embora Estados Unidos e China sejam os dois parceiros mais relevantes, Nova Délhi tem tido o cuidado de manter e até mesmo ampliar seus negócios com Rússia, Japão e União Européia, especialmente com França e Grã-Bretanha. E dado cada vez mais importância a outras potências emergentes, como o Brasil e a África do Sul, com as quais formou um novo grupo conhecido como o Fórum IBAS (Índia, Brasil e África do Sul).
A Índia participa ainda do RIC (Rússia, Índia e China), que conta com reuniões anuais entre os respectivos ministros de Relações Exteriores. Em sua conferência mais recente, em Yekaterinburg, o grupo incorporou o Brasil, passando a se chamar BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China).
Mas, apesar de chineses e indianos compartilharem muitos interesses, especialmente no tocante aos problemas globais, sua relação não está bem resolvida. A Índia continua identificando o país vizinho como o maior e único desafio à sua política externa e acredita que a oportunidade para redefinir isso é apelar para a ajuda de Washington, ainda que seja óbvia a falta de harmonia com os EUA em questões-chave. Um exemplo recente desse desacordo é a recepção fria que os americanos deram à proposta indiana de uma rede de energia asiática. Uma reação semelhante foi esboçada com a participação da Índia na Organização de Cooperação de Xangai.
Ainda assim, Washington acredita que uma parceria com Nova Délhi seja fundamental para ajudar os americanos a definir os arranjos institucionais na Ásia. Ao mesmo tempo, o governo indiano vê a presença dos EUA no leste asiático como benigna, apesar de não cogitar uma parceria com Washington em outras regiões. Afinal, isso significaria desamparar ou abandonar parceiros já estabelecidos, como a Rússia, ou atores potencialmente importantes, como o Irã. Outra área na qual podem surgir atritos é a da cooperação em assuntos de defesa.
Com este cenário no horizonte, o Defence Framework Agreement (Acordo de Estruturação de Defesa), estabelecido por Índia e EUA em junho de 2005, buscou fortalecer os laços militares entre os dois países4. Enquanto o interesse primordial dos indianos está na transferência de tecnologia com vistas à fabricação doméstica de equipamentos de ponta, os americanos se interessam mais em substituir a Rússia como maior fornecedora de armamentos, sem o compromisso de exportar seu know-how.
Ademais, os EUA consideram prioridade o acesso aos portos indianos e suas dependências, assim como o desenvolvimento de uma “interoperacionalidade” com as forças armadas do parceiro asiático, visando a ações conjuntas na região. O governo de Nova Délhi se dispôs a colaborar com essa agenda5, o que pode ser comprovado pela escala crescente de exercícios militares conjuntos. Como observou recentemente Stephen P. Cohen, acadêmico americano, “Índia e União Soviética nunca mantiveram laços militares do tipo que Índia e EUA têm hoje”6. Contudo, os indianos relutam em levar esse tipo de compromisso longe demais. Com certeza, o entusiasmo em Nova Délhi com a assinatura do Logistics Support Agreement (Acordo de Suporte Logístico), tão esperado pelo Pentágono, é bastante pequeno.
Dada a derrota para a China na guerra por fronteiras de 1962, a idéia de uma parceria estratégica com os EUA aparece como um grande consolo para a classe média indiana, incluindo as forças armadas. Enquanto cresce econômica e militarmente, a Índia aprende aos poucos a ser mais confiante em sua capacidade de lidar com a realidade do poder chinês. “A China de hoje não é a mesma de 30 anos atrás, com a qual cautelosamente começávamos a negociar”, avalia um alto oficial indiano. “Mas nós tendemos a esquecer que a Índia de hoje tampouco é o mesmo país. E temos a predisposição de esquecer tudo o que já atingimos. Estamos em um patamar nunca antes alcançado no nosso relacionamento entre as duas nações”, completa7.
Em busca do equilíbrio
Talvez por isso o discurso oficial de Nova Délhi sobre o resto da Ásia esteja mudando gradualmente. Há três anos, o secretário de Relações Exteriores, Shyam Saran, podia advogar uma colaboração entre EUA e Índia para “um equilíbrio melhor na região”8. Hoje, o ministro indiano de Relações Exteriores, Pranab Mukherjee, fala apenas na necessidade de uma estrutura de segurança para a Ásia, sem insistir muito na participação e liderança dos EUA9.
E quando o assunto é Pequim, os oficiais indianos se perguntam se o continente é grande o bastante para acomodar a ascensão de ambas as nações. Boa parte dos analistas e policymakers acreditam que a resposta é “não” e que posteriormente Nova Délhi precisará de Washington em busca de um maior equilíbrio com a China.
Eventos recentes, como a oferta americana de cooperação nuclear e a declaração de que os EUA desejam ajudar a Índia a emergir como grande potência10, levaram alguns a concluir que os policymakers dos EUA já incluíram os indianos em sua política de cerco à China.
A preocupação com as conseqüências dessa parceria estratégica levou a China a se juntar ao punhado de países que tentaram impedir o Nuclear Suppliers Group de mudar suas regras e permitir o comércio com Nova Délhi11.
Assim como a estratégia de Washington em relação a Pequim não pode ser reduzida a um cerco ou uma contenção, a política da Índia para americanos e chineses sugere uma tática em curso que é mais complicada e ambígua. Há avanços e recuos, mas a natureza democrática da Índia parece conseguir corrigir essas diferenças sempre que necessário.
A decisão histórica da NSG de abrir as portas do comércio nuclear para a Índia oferecerá o primeiro teste concreto para o governo indiano. O cartel formado para restringir as vendas à Índia logo após seu primeiro teste nuclear em 1974 reverteu seu curso, sobretudo impelido pelos Estados Unidos.
Graças às extravagâncias da política interna americana, essa mudança nas regras globais permitirá à Índia comprar seus equipamentos nucleares dos outros países em condições mais favoráveis do que aquelas oferecidas por companhias dos EUA.
Será que a Índia, parafraseando Schwarzenberg, surpreenderá o mundo com “a profundidade de sua ingratidão” e negará aos Estados Unidos uma fatia no negócio multibilionário de importação nuclear? Ou se sentirá constrangida e aceitará o jogo de Washington nos campos econômico, militar e político, mesmo que isso lhe custe a estabilidade da maior parte do continente asiático? Os próximos anos nos darão a resposta.
*Siddhart Varadarajan é editor de assuntos estratégicos do jornali indiano The Hindu.