A indústria de alimentos ultraprocessados é cringe
Estudo do Idec desconstrói a falsa percepção de que agrotóxicos estão presentes apenas em alimentos in natura e permite afirmar que os ultraprocessados são prejudiciais em diversos aspectos
A cada ano que passa, algumas expressões são incorporadas ao nosso vocabulário – seja de forma natural ou por influência de gerações mais novas. Recentemente, o termo cringe foi amplamente debatido pelas redes sociais e mídia em geral. Em tradução literal, significa algo vergonhoso, mas também pode ser entendido como hábitos fora de moda, que causam “vergonha alheia” ou são vistos como datados.
Se associarmos a mesma expressão para o dia a dia de práticas organizacionais, poderíamos listar dezenas de indústrias que são cringe – por continuarem mantendo práticas enganosas para o consumidor, sob a miopia do governo e das agências reguladoras. A gigante Nestlé é um exemplo clássico do emprego do termo por reconhecer que mais de 60% dos seus produtos não são saudáveis e nunca o serão, de acordo com documentos internos que vieram a público.
O vazamento foi publicado em primeira mão em 31 de maio, pelo Financial Times e, para nós do Idec, não causou espanto. Apenas corrobora com a nossa convicção de que os grandes fabricantes de alimentos precisam se reinventar, mas enquanto isso não for exigido deles – principalmente por parte do Estado e dos órgãos reguladores – vão empurrando o problema com a barriga. Tem coisa mais cringe do que isso?
O Idec vem monitorando as indústrias de alimentos ultraprocessados há anos e em meados de julho apontou irregularidades na linha “saudável” da Nestlé, a Nesfit, que ostenta ilustrações de mel nas suas embalagens, mas não possui o alimento na composição. A denúncia foi encaminhada ao Procon, relatando que quatro produtos destacam o ingrediente, o que configura propaganda enganosa. Em razão da disparidade de informações entre a publicidade e a lista de ingredientes, a Nestlé viola de forma direta os direitos do consumidor, induzindo-o ao erro em relação às características de um produto.
A Nestlé também figura na lista de outro estudo recente do Idec, o qual aponta a presença de agrotóxicos em 27 produtos comuns à mesa do brasileiro. No cereal matinal Nesfit (ele de novo) foram encontrados resíduos de dois tipos de agrotóxicos. Já o biscoito recheado Bono apresentou três tipos de agrotóxicos e o biscoito recheado Negresco, dois. Em ambos, ainda foi identificada a presença de glifosato e butóxido de piperonila, um ingrediente ativo potencializador dos princípios ativos dos agrotóxicos.
O recente estudo desconstrói a falsa percepção de que agrotóxicos estão presentes apenas em alimentos in natura e nos permite afirmar que os ultraprocessados são prejudiciais em diversos aspectos, atestando mais uma vez como é algo “cringe”: por um lado, são produtos que colocam em risco o meio ambiente, por contarem com um sistema produtivo que, entre outros, depende do uso de agrotóxicos; por outro, conforme muitos profissionais de saúde já alertaram, por serem produtos com alto teor de açúcar, sal e gordura, estão diretamente associados a doenças crônicas não transmissíveis, prejudicando a qualidade de vida e provocando mortes precoces.
Em meio a este cenário, ainda é preciso lidar com a forte influência política de ruralistas que se articulam para afrouxar ainda mais a liberação de substâncias tóxicas. Os impactos dos agrotóxicos para a saúde envolvem ainda intoxicações agudas, quer intencionais ou não, sobretudo entre trabalhadores rurais. Há também discussões a respeito de possíveis efeitos crônicos decorrentes do acúmulo de pequenas quantidades de agrotóxicos no organismo com o passar do tempo. Em 2015, a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc), da Organização Mundial da Saúde (OMS), concluiu com base em centenas de pesquisas que o glifosato, um dos agrotóxicos mais populares no país, era “provavelmente carcinogênico” para humanos.
Num país assolado pela pandemia, combater a fome é prioridade. São quase 117 milhões de brasileiros que não se alimentam como deveriam. Contudo, o acesso à alimentação saudável precisa ser garantido a toda a população. No estudo do Idec, por exemplo, foram encontrados resíduos de agrotóxicos em todos os ultraprocessados à base de trigo. Os brasileiros têm o direito de saber o que comem e não podem ficar à mercê de estratégias publicitárias das marcas de produtos ultraprocessados que oferecem recompensas falsas e fazem promessas enganosas, como melhorar a nossa saúde e bem-estar.
Os órgãos responsáveis por regular e fiscalizar o mercado de consumo precisam atuar de forma efetiva, coibindo práticas que impactam negativamente os consumidores. Os grandes conglomerados, sobretudo, devem rever suas práticas urgentemente. E a nós consumidores e consumidoras cabe cobrar das indústrias de alimentos atitudes mais transparentes, comportamentos éticos e a não aceitar mais hábitos fora de moda, que causam vergonha alheia e, pior, prejudicam nossa saúde. Isso sim é estar “up to date”.
Teresa Liporace é diretora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).