A infância ainda em risco
Vivemos em sociedades onde prevalecem a iniquidade, a concentração de renda e a desigualdade socioeconômica. Deste modo, os progressos alcançados no sistema político e no Estado de Direito convivem com atrasos espantosos na relação que os adultos mantêm com crianças e adolescentes
Depois de duas décadas1 há hoje uma geração de adultos que cresceram sob a vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança2 e com os quais nos toca assumir os grandes desafios que ainda temos de enfrentar para uma implementação adequada daquela Convenção.
A análise deste tratado não pode ser descontextualizada do processo de transição e de retorno de regimes democráticos iniciados há 20 anos na grande maioria dos países do continente. Se é verdade que avançamos no fortalecimento dos sistemas democráticos, vivemos ainda em sociedades onde prevalece a iniquidade, a concentração de renda, a desigualdade socioeconômica, inalteradas depois do fim dos regimes autoritários militares e do retorno da democracia. As distintas formas de violência contra a criança denunciam que ainda prevalecem relações entre governos e sociedades marcadas pela ilegalidade, autoritarismo e arbitrariedade. Isto em sistemas políticos que pretendem promover sua consolidação democrática, mas, nos quais, contraditoriamente, prevalece um autoritarismo como uma constante nas relações entre adultos, sejam eles agentes do Estado ou particulares e crianças e adolescentes.
Deste modo, os progressos alcançados no sistema político e no Estado de Direito convivem com atrasos espantosos na relação que as autoridades, os pais e as mães, os professores e aqueles adultos responsáveis pela proteção das crianças e adolescentes mantêm com eles.
A universalidade da Convenção
A Convenção, ratificada por 193 Estados3, é o tratado com o maior número de ratificações no mundo. Este fato mostra, na esfera política, o consenso universal que existe a respeito de temas fundamentais da infância. Ademais porque no âmbito jurídico a ratificação dos tratados internacionais de direitos humanos exige dos Estados a adoção de medidas adequadas e efetivas para assegurar o respeito e a defesa dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes.
Em 2009 se celebra o 20º aniversário da Convenção dos Direitos da Criança no dia 20 de novembro; o terceiro ano da implementação das recomendações formuladas no Informe Mundial sobre Violência contra a criança e a nomeação da Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre violência contra a criança; o 50º aniversário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); o 10º aniversário, em novembro deste ano, da Sentença do Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros) que explicitou a ideia da existência de um corpus juris de direitos humanos da infância e da adolescência4.
Todos esses processos fornecem uma plataforma extraordinária para a efetiva defesa dos direitos da criança nas Américas. A Convenção estabelece um marco normativo e ético para assegurar que exista sincronia entre teoria e ações práticas nos temas de direitos humanos das crianças. Para se lograr sua efetivação é necessário o cumprimento estrito de todos os artigos da Convenção de conformidade com os princípios de integralidade, interdependência e universalidade dos direitos humanos.
A proteção que a Convenção garante não se esgota em seu texto, senão que ao mesmo tempo, serve como norma orientadora para a interpretação e determinação do conteúdo e alcance que tem os direitos humanos das crianças e adolescentes no mundo. Por exemplo, a Corte Europeia5, assim como a Comissão e a Corte interamericanas, utilizam a Convenção como norma fundamental para a interpretação dos direitos humanos das crianças. Tanto a Comissão como a Corte interamericanas estabeleceram que a Convenção é uma norma que forma parte do corpus juris6 para a defesa e o respeito dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, que se encontram dentro da jurisdição de cada um dos Estados membros da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Como resultado da adoção da Convenção, prevalece hoje na região um novo paradigma baseado num enfoque de direitos humanos que reconhece as crianças e os adolescentes como sujeitos de direito. A Convenção também gerou mudanças importantes no âmbito dos sistemas jurídicos dos Estados membros da OEA, tanto no normativo quanto no jurisprudencial e jurisdicional. Muitos países da região incorporaram as provisões da Convenção em suas normas nacionais, tais como o Estatuto da Criança e Adolescência, ECA, no Brasil, e códigos da criança em vários países; três Estados membros da OEA, Uruguai (2007), Venezuela (2007) e Costa Rica (2008) adotaram normas que proíbem de forma expressa o castigo corporal contra a criança.
Violência
O Informe Mundial sobre Violência contra a criança7, por mim apresentado à Assembleia da ONU em outubro de 2006, demonstrou que o problema da violência contra a criança não é novo nem desconhecido. Não há nenhum lugar no mundo onde se possa dizer que não existe violência contra crianças. As formas de violência extrema têm sido condenadas internacionalmente de modo amplo.
Apesar disso, o tema geral da violência contra a criança continua sendo tratado de maneira fragmentada e muito limitada, em particular, quando se trata da violência no lar, na escola, nas instituições encarregadas de cuidar de crianças, no lugar de trabalho e na comunidade.
É comum que as crianças continuem a ser criminalizadas por encontrarem-se em situação de rua. É lamentável que as crianças em conflito com a lei sejam submetidas a detenções arbitrárias, torturas e condições de detenção que configuram processos de violência institucionalizada, violência sexual e de desumanização das crianças e dos adolescentes. É também recorrente que o aumento da violência em alguns países da região seja usado como argumento pa
ra promover estratégias repressivas contra as crianças e os adolescentes, em flagrante desrespeito dos padrões internacionais de direitos humanos.
Isto se verifica num cenário em que claramente falta sincronia entre a teoria e a realidade. Hoje são maiores os desafios para a defesa e o respeito dos direitos das crianças, se os compararmos com os avanços alcançados em 20 anos, o que estimula a perpetuação das violações dos direitos humanos das crianças e das distintas formas de violência de que são vítimas quotidianamente.
É evidente que o discurso tutelar e assistencialista, marcado por influências culturais e preconceitos, limitam o pleno reconhecimento das crianças como sujeitos de direitos. Em muitos casos se abrem espaços de participação, mas na realidade essas iniciativas terminam sendo espaços de assistencialismo de crianças, uma vez que custa muito para os adultos assumir como seus pares em igualdade de condições a interlocutores menores de 18 anos. Sob o manto do discurso tutelar desafortunadamente as crianças continuam sendo minicidadãos com minidireitos.
Deficiências normativas e institucionais
No âmbito normativo, vários países ainda apresentam deficiências e vazios. Temas como a patria potestas, o direito à identidade, as garantias judiciais para a proteção e atenção das crianças em conflito com a lei, e outros direitos, ainda carregam um enfoque tutelar que consagra as crianças como objeto de proteção, permitindo aos adultos exercer direitos de correção moderada, cujo exercício vulnera os direitos humanos das crianças.
Num recente Relatório Temático sobre o Castigo Corporal e os Direitos Humanos das Crianças e Adolescentes, a CIDH sustenta que “a autoridade parental deve ser interpretada em relação com a indivisibilidade dos direitos humanos8 para assegurar a proteção dos direitos das crianças. Nesse sentido, é necessário que a regulação sobre esta matéria no direito nacional nos Estados Membros deve estar em consonância com o respeito dos direitos humanos das crianças e adolescentes9” (tradução não oficial).
Outro tema recorrente é a falta de regulamentação adequada de todos os aspectos que formam parte dos sistemas de justiça juvenil. Atualmente a CIDH está elaborando um Relatório Temático sobre Justiça Penal Juvenil nas Américas, o qual tem por objetivo formular recomendações aos Estados para enfrentar a violência institucionalizada da qual são vítimas as crianças e os adolescentes em conflito com a lei. Esse Relatório sublinhará aspectos e problemas fundamentais que afetam os sistemas de justiça juvenil nas Américas.
Há uma brecha de governabilidade nos temas de proteção das pessoas menores de 18 anos em conflito com a lei, são os processos de judicialização, que ativam sistemas de expulsão social que, por sua vez, afetam de forma perniciosa as crianças e os adolescentes em situações de vulnerabilidade.
As graves condições de detenção e internação a que são submetidos as crianças e os adolescentes em conflito com a lei desencadeiam processos de desumanização. A isto se soma a falta de medidas alternativas efetivas e a falta de um adequado sistema de defesa legal para esse setor vulnerável da população. Nesse sentido são lamentáveis as frequentes propostas para a redução da idade de imputabilidade penal ou a ampliação temporal das penas privativas de liberdade para crianças e adolescentes, medidas que desrespeitam flagrantemente a Convenção e os padrões internacionais sobre direitos humanos.
Evidentemente, tal como foi assinalado no Informe Mundial sobre Violência Contra Criança, as respostas que devemos dar em face da falta de proteção das crianças e dos adolescentes em conflito com a lei não se esgotam no âmbito normativo, mas, pelo contrário, exigem uma visão da integralidade dos direitos humanos que requer atuar tanto na prevenção como na proteção.
No âmbito da institucionalidade, existem órgãos criados sob enfoques tutelares que, em vez de se constituírem como instituições independentes, transparentes, que contem com mecanismos acessíveis, efetivos e amigáveis, capazes de assegurar a participação protagônica de crianças, que tenham recursos humanos, financeiros e técnicos adequados para assegurar uma efetiva proteção dos direitos humanos, registram uma permanente descapitalização institucional como resultado da permanente rotatividade de funcionários, o que não permite assegurar recursos humanos especializados nos temas da criança e da adolescência.
Necessidade de políticas públicas e recursos
Corresponde aos Estados estabelecer políticas públicas de Estado que tenham continuidade e transcendam os governos de turno. Essas políticas públicas devem ser de caráter compreensivo, baseadas num enfoque de direitos humanos e em provas empíricas para analisar os fatores que perpetuam a violência e as distintas violações dos direitos humanos das crianças.
Não basta contar com políticas específicas no âmbito da infância, pelo contrário, com base no princípio da integralidade e interdependência dos direitos humanos, urge mirar as políticas de Estados sob esses dois princípios. Para assegurar a efetividade de uma política pública e imperativa é preciso assegurar recursos financeiros adequados para abordar as causas subjacentes das formas de violência e violações de direitos humanos. Assim mesmo, as políticas devem ter metas claramente definidas e devem estar fundadas em informação detalhada sobre os problemas que afetam a infância e a adolescência, que, por sua vez, devem ser monitoradas e sistematicamente avaliadas.
Dita informação deveria estar disponível em forma desagregada, conforme critérios tais como a idade, o sexo, a origem étnica, a condição socioeconômica, entre outros. A efetiva implementação das políticas públicas requer também assegurar uma efetiva coordenação e cooperação entre as diferentes instituições e os órgãos que formam parte dos sistemas nacionais de prevenção, promoção e pro
teção dos direitos das crianças e dos adolescentes no âmbito local, nacional, regional e federal. A informação, além disso, deve estar disponível para as crianças e os adolescentes numa forma adequada. Estes são atores-chave que devem ser escutados e devem expressar sua opinião livremente, na hora de avaliar e investigar as políticas da infância.
Especialmente devem priorizar-se as medidas de prevenção em face das formas de violência, que são violações de direitos humanos. Não devemos esquecer que a melhor forma de abordar a violência e evitar violações de direitos contra a infância é impedi-la antes que ocorra mediante o investimento em políticas e programas de prevenção.
O valor da cooperação internacional
No âmbito da cooperação internacional, queremos também enfatizar que é preciso ter presente o alcance e o conteúdo do artigo 34 da Convenção e as considerações do Comitê dos Direitos da Criança formuladas em sua Observação Geral 5 (2003) sobre “Medidas gerais de aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança10”, determina que a proteção das crianças requer fundamentalmente a cooperação internacional.
A Relatoria da criança da CIDH tem o compromisso de colaborar com os Estados no cumprimento de suas obrigações internacionais de conformidade com o que estabelecem a Carta da OEA, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção dos Direitos da Criança, e demais convenções internacionais; assim como promover o desenvolvimento de standards de direitos humanos através dos mecanismos com os quais conta a CIDH.
Reiteramos nossa convicção quanto à necessidade de aproveitar a força que conseguiram as organizações da sociedade civil na região e a necessidade de consolidar espaços de participação, coordenação e diálogo entre os Estados e a sociedade civil; assim como entre esses e os organismos internacionais.
A violência contra a criança é um problema urgente. Não há justificativa para nenhum tipo de violência ou violação de direitos. Todas as formas de violência e violações de direitos são capazes de ser prevenidas. Não deve haver desculpas para atrasos na ação, as obrigações dos Estados são claras.
Não podemos aspirar a viver em sociedades democráticas, inclusivas, tolerantes, livres da violência, se não empreendermos – sobre a base da participação protagônica das crianças – vivências comuns sob princípios éticos e democráticos. Para que nos tornemos conscientes da diferença entre o que fazemos e o que somos capazes de fazer. O desafio está em eliminar essa diferença em temas da infância.
Concluímos parafraseando Karl Menninger, psiquiatra norte-americano que indicou que: “tudo que se dá às crianças, as crianças darão à sociedade“.
*Paulo Sérgio Pinheiro foi membro da Comissão Nacional da Verdade e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso. Cecília Anicama é advogada especialista em direito internacional.