A insustentável leveza olímpica
O ciclo de acumulação baseado na expulsão e na privatização da terra é intermitente e se realiza de forma cíclica sob a justificativa do desenvolvimento da cidade. Não há leveza na modernidade colonizadora que o ideal olímpico expressa.
O ideal olímpico foi forjado como um instrumento do colonialismo, que determinou e segue determinando quais práticas corporais são aceitáveis e quais devem ser perseguidas e deslegitimadas, sendo também utilizado para proteger ideologicamente as potências globais e abrir novos mercados para a exploração. Faz parte, portanto, do jogo geopolítico. Não por acaso, as imagens que mais nos emocionaram foram as de mulheres negras empunhando suas medalhas com lágrimas nos olhos, o que sempre informa sobre uma grande história de superação e resistência. São as imagens de esperança em um país que não investe de forma suficiente no esporte. Essas atletas são a exceção que confirma a regra.
O pacto colonial segue inabalável em seu objetivo de hegemonia que se relaciona profundamente com o acesso à terra. Acessar a terra é acessar o poder, tanto geopoliticamente, quanto localmente. A criminalização e a violência inerente ao processo de preparação das cidades que sediam os Jogos Olímpicos e Paralímpicos (JOP) são amplamente reconhecidas. Mesmo na França, uma potência colonial, que ao longo de sua história colocou sob seu julgo países desde a Oceania e África, até América do Sul e Caribe, a perseguição às camadas mais vulneráveis da população foi evidente. O relatório elaborado pelo coletivo “Le revers de la médaille” denuncia a “limpeza social” em curso contra populações mais vulneráveis, como pessoas em situação de rua, em moradias precárias ou dependentes de espaço público para viver e trabalhar, relacionada à organização dos JOP. Em Pequim 2008, não foi diferente: milhares de pessoas foram vítimas de remoção forçada no processo de preparação para os JOP, como atenta o relatório “Fair play for housing rights”. Mesmo em Tóquio 2021, depois de um reposicionamento do COI (Comitê Olímpico Internacional) devido às intensas críticas relacionadas aos JOP Rio 2016, diversas violações foram relatadas, e grupos da sociedade civil se organizaram na articulação “Hangorin No Kai” (Não às Olimpíadas de Tóquio) expressando críticas aos efeitos da gentrificação e da privatização dos espaços públicos.
Os JOP não inauguraram a segregação socioespacial, a periferização da moradia e a negação do direito à terra, mas, historicamente, são utilizados para aprofundar esse processo em resposta aos anseios dos especuladores locais e globais. A cada ciclo olímpico questões sobre direitos humanos, sustentabilidade e danos ambientais emergem, mas a propaganda política massiva sobre o ideal olímpico segue relativizando seus impactos. Se nos países que detém a hegemonia global as violações de direitos, especialmente aquelas relacionadas ao direito do acesso à terra, foram evidentes, no Rio de Janeiro, os impactos das Olimpíadas foram ainda mais agudos.
Os JOP Rio 2016 legitimaram a neoliberalização da cidade, que foi operada por um modelo de desenvolvimento urbano que segue as diretrizes do planejamento estratégico, cuja flexibilidade e fluidez conceitual permitiu aos donos do poder operarem uma profunda transformação urbana. As oportunidades para os negócios foram produzidas às custas dos direitos da população, constantemente violados nesse processo. A construção da ideia de legado olímpico foi estratégica e necessária para a legitimação dos JOP Rio 2016 frente à sociedade e à opinião pública.
O discurso oficial e midiático foi taxativo sobre o consenso do legado olímpico durante todo o período de preparação da cidade para os JOP Rio 2016. No momento pós-olímpico, com a impossibilidade de se comprovar a existência de um legado material para a cidade, muito ainda se falou sobre um suposto legado simbólico. O projeto que trouxe as Olimpíadas ao Rio de Janeiro foi viabilizado por um pacto entre grandes proprietários de terra, empresários do setor imobiliário, grandes empreiteiras nacionais e poder público, além da decisiva atuação da mídia hegemônica. A falta de participação popular e a ausência dos mecanismos democráticos de gestão da cidade, previstos em lei, foram marcas do período.
A releitura do Dossiê de Candidatura no Rio pós-olímpico faz parecer se tratar de uma outra cidade, ou mesmo outro país, o que se agrava com o impacto de milhares de famílias que tiveram suas vidas afetadas pelos JOP Rio 2016. Diante da discrepância entre promessa e realidade, a Autoridade Pública Olímpica (APO)[1] alegou que o Dossiê de Candidatura se configurava como um projeto conceitual e que apenas o que foi definido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) como indispensável se efetivou. O critério para estabelecer prioridades parece incógnito, mas os impactos da política urbana permaneceram.
O desenvolvimento sustentável foi um tema recorrente nos documentos de candidatura do Rio de Janeiro e apresentado como mote da concepção do Rio 2016 como “Jogos Verdes para um Planeta Azul”. A preservação da Floresta da Tijuca, incluindo o plantio de 24 milhões de árvores até 2016, foi apresentada como um dos principais legados ambientais e estava vinculada ao plano de mitigação das emissões de gases de efeito estufa relacionadas aos preparativos dos Jogos. Entretanto, apenas cerca de 8 milhões de mudas foram semeadas, em ato simbólico. Destas apenas 100 foram efetivamente plantadas. Por outro lado, as obras do BRT Transolímpica, a duplicação do Elevado do Joá e a reforma da Marina Glória acabaram com cerca de 270 mil metros quadrados de vegetação urbana.
Além dos programas apresentados no Plano de Legado, o programa dos JOP Rio 2016 definiu os objetivos de curto e longo prazo para a recuperação dos rios e córregos da cidade e particularmente da Baía de Guanabara, do sistema lagunar da Barra da Tijuca e da Lagoa Rodrigo de Freitas. A despoluição seria realizada com a efetivação da coleta e do tratamento de 80% do esgoto lançado nesses corpos hídricos até 2016. A meta foi publicamente abandonada pelo governo estadual um ano antes dos JOP, quando André Corrêa, então secretário de Meio Ambiente afirmou que “hoje ninguém assume de onde surgiu essa meta de 80%. O fato é que quem disser que a baía estará limpa em menos de 25 anos vai estar mentindo”. No momento pós-olímpico já não existiam mais metas.
A adoção das Parcerias Público-Privadas (PPPs) e concessões, legitimada pelo discurso falacioso de que graças às Olimpíadas a cidade obteria grandes ganhos com poucos gastos, foi uma das marcas do Rio Olímpico. As PPPs envolveram repasses de terra pública a empresas, bancos públicos financiando negócios especulativos, isenções fiscais a grandes empresas e flexibilização de leis urbanísticas que possibilitaram lucros privados. A degradação do meio ambiente também foi uma marca desse processo, considerando, por exemplo, o desmatamento de 58 mil metros quadrados da Área de Preservação de Marapendi para a construção do Golfe Olímpico.
A melhoria do sistema de transporte, um dos “legados olímpicos” mais promovidos pela gestão de Paes também não se efetivou. Das seis principais intervenções de mobilidade urbana vinculadas aos Jogos Rio 2016, cinco conectam a Barra da Tijuca a algum lugar ao qual ela já estava conectada, evidenciando o contínuo processo de reinvestimento em infraestrutura de localidades já bem estruturadas visando a expansão da mancha urbana para áreas de interesse do mercado em detrimento das áreas ocupadas que mais carecem de investimentos. O conceito para Acomodação do Plano de Legados dos Jogos Rio 2016 propunha o equilíbrio entre as necessidades particulares dos “clientes” dos Jogos e as necessidades de longo prazo da cidade. As acomodações já existentes seriam complementadas com novas construções, “desde que os benefícios de legado sejam significativos e garantidos.”
Nos documentos de candidatura foi afirmado que estudos detalhados, comerciais e de viabilidade de longo prazo foram desenvolvidos para cada projeto, garantindo a sua viabilidade e adequação aos planos de desenvolvimento da cidade a longo prazo e que os recursos para o financiamento de todos os empreendimentos já estavam totalmente garantidos. A Vila Olímpica e Paralímpica, cujo nome comercial é Ilha Pura, foi construída pelo Consórcio Ilha Pura, constituído pela Odebrecht e pela Carvalho Hosken, com financiamento da Caixa Econômica Federal (CEF). O Dossiê de Candidatura afirma que “após os Jogos, a Vila Olímpica e Paraolímpica se tornará um condomínio residencial, numa região da cidade com grande demanda por moradias”. Não há dados oficiais sobre a ocupação do condomínio, mas se especula que menos de 30% das unidades residenciais estão ocupadas, oito anos depois de sua inauguração.
O cartograma abaixo territorializa onde se “investiu” no Rio Olímpico. Em entrevista, Eduardo Paes afirmou que “é loucura dizer que não teve investimentos nas áreas pobres. Se as pessoas dizem isso, não conhecem a geografia da cidade”. Mas com a “geografia da cidade” representada, o óbvio se apresenta. Os gastos oficiais divulgados no Plano de Políticas Públicas e na Matriz de Responsabilidades foram confrontados com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) e Tribunal de Contas do Município (TCM-RJ), e os valores gastos em cada intervenção foram calculadas por metro quadrado considerando sua área de abrangência. Os gastos referentes ao Plano de Políticas Públicas, representados na base do cartograma, evidenciam o padrão territorial desigual no contraste entre investimentos que iniciam em até R$10,00 por metro quadrado até superar R$1.000,00. A localização dos poucos pontos vermelhos em contraposição à extensão verde diz muito sobre o projeto olímpico.
Os investimentos olímpicos: um projeto injusto para uma cidade desigual
Sob a alegação que não há recursos para tudo, obras fundamentais foram deixadas de lado. A despoluição da Baía de Guanabara, que beneficiaria não só o Rio, mas todos os municípios banhados por suas águas na região metropolitana, foi abandonada. A urbanização de favelas também ficou só na promessa. A construção da primeira fase da linha 3 do metrô, de São Gonçalo a Niterói, que atenderia os trabalhadores da maior cidade da região metropolitana depois da capital, São Gonçalo, também foi abandonada. Os impactos para a população de baixa renda foram além da falta de investimentos. Os conjuntos habitacionais financiados pelo programa federal Minha Casa Minha Vida, que deveriam suprir o déficit habitacional da cidade, foram utilizados para reassentar a população removida do período. No Rio de Janeiro pós-olímpico, a crise política, econômica e social que passa pelo decreto que instituiu o Estado de Calamidade, e posteriormente em uma situação de violência supostamente generalizada, culminou numa Intervenção Militar. A população segregada e marginalizada seguiu absorta na tentativa de sobreviver. Assim, o Rio de Janeiro se tornou uma cidade ainda mais segregada, desigual e violenta.
A realidade olímpica na cidade do Rio de Janeiro
O ciclo de acumulação baseado na expulsão e privatização da terra e ruptura forçada da vivência comunitária é intermitente e se realiza de forma cíclica sob a justificativa do progresso e desenvolvimento da cidade, e mais recentemente da competitividade urbana. A política de remoção não é uma especificidade da gestão de Eduardo Paes, mas foi a mais impactante em termos quantitativos. As gestões de Pereira Passos (1902-1906) e de Carlos Lacerda (1961-1965), que são frequentemente citados como exemplos exitosos do deslocamento massivo da população empobrecida, removeram, respectivamente, 20 mil e 30 mil, contrastando com a remoção de mais de 70 mil pessoas na gestão de Paes (2009-2016). Essa lógica reverbera no ideal higienista e segue operando como uma cruzada civilizatória no Rio de Janeiro contemporâneo. Nesse contexto, a resistência à modernidade colonizadora, patriarcal e racista se materializa nos territórios que lutaram contra a remoção e pelo direito à moradia e que resistiram à diferença colonial que desumaniza aquelas e aqueles que não correspondem às expectativas fictícias de progresso. A imagem acima sintetiza o ciclo olímpico carioca: mulheres lutando por seus territórios cotidianamente. Não há, portanto, leveza na modernidade colonizadora que o ideal olímpico expressa.
[1] A APO foi convenientemente substituída em agosto de 2017, pela Autoridade de Governança do Legado Olímpico (AGLO), autarquia federal responsável por elaborar o plano de utilização das instalações esportivas usadas nos Jogos do Rio.
Poliana Monteiro é arquiteta urbanista, Doutora em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFF) e pós-doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Atuou como assessora técnica de comunidades ameaçadas por remoção forçada no período olímpico. Colaborou com a elaboração do Plano Popular da Vila Autódromo, um instrumento de luta que comprovou tecnicamente a possibilidade de permanência da comunidade.