A internet pode ajudar a democracia?
A corte conservadora de juízes provavelmente toma decisões dessa natureza sem conhecer o contexto do crowdfunding, ou confiando em análises superficiais como as dos sites de notícias tradicionais, que ainda nos chamam de “internautas” e colocam qualquer assunto relacionado à tecnologia como exótico e excepcionalLucas Pretti
Estas são as primeiras eleições brasileiras desde 1994 em que empresas estão proibidas de financiar candidatos. A máxima parece consensual, e temos de celebrá-la: não haverá campanhas políticas – e, portanto, mandatos – limpas e legítimas se o dinheiro continuar vindo carregado de toma lá dá cá. O que parece uma golfada de esperança num sistema político desacreditado, na prática, porém, é apenas um suspiro. Enquanto a minirreforma eleitoral (Lei n. 13.965/2015) apontou para um futuro possível, a resolução n. 27.496 (de 1º de julho de 2016) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) trancou a janela de onde poderiam vir os novos ares: candidatos não podem usar plataformas de crowdfunding para arrecadar fundos.
Para quem não sabe, crowdfunding é o mecanismo de obter financiamento pela internet para projetos, produtos ou praticamente qualquer coisa. Desde 2009, com a fundação do Kickstarter nos Estados Unidos, centenas de sites comerciais se especializaram em oferecer um ambiente em que proponentes podem receber dinheiro de financiadores. Há diversas modalidades de crowdfunding (recompensas, doações, matchfunding etc.) e sites voltados para cada setor (cultura e arte, ONGs, projetos pessoais etc.). A maioria das plataformas se mantém cobrando uma porcentagem sobre o dinheiro levantado.
No Brasil, desde 2011 há uma disputa pesada pelas ideias e bolsos dos brasileiros e brasileiras. Enquanto o Catarse, o primeiro do mercado, surfa como a plataforma mais conhecida e festejada entre os produtores culturais, é o Kickante que bate recordes de arrecadação (o projeto para salvar o Santuário Animal de Cotia arrecadou mais de R$ 1 milhão). Pela lateral, correm a carioca Benfeitoria (que inovou ao apostar no financiamento recorrente, ou seja, pagamentos fixos mensais) e a gaúcha Vakinha, mais popular, voltada para narrativas pessoais – salvar crianças, juntar dinheiro para festas etc. Além dessas, há dezenas de sites no Brasil, cujo mercado é um dos mais maduros do mundo. Não há estatísticas oficiais, mas a soma simples dos dados divulgados pelas maiores plataformas mostram que o setor movimentou mais de R$ 40 milhões em 2015. Detalhe: isso tudo vem majoritariamente de pessoas físicas identificadas utilizando cartões de crédito ou boleto bancário.
Ao proibir o uso dessas plataformas para fins eleitorais, o TSE ignora a maneira como recursos vêm sendo distribuídos em rede na contemporaneidade e, mais que isso, o potencial revolucionário dessa nova ordem. Para além do financiamento em si, o crowdfunding é a maneira que muita gente encontrou de se viabilizar como alternativa ao mercado. Se não sou herdeiro, não tenho empresas para me patrocinar, não fui escolhido por um edital do governo ou me falta o perfil empreendedor, o crowdfunding é para mim. A maioria dos projetos bem-sucedidos aposta corretamente em dois pilares narrativos – gamificação e causa –, por isso consegue tanta aderência e engajamento da multidão conectada. Foi ativando essa narrativa, por exemplo, que Barack Obama arrecadou US$ 750 milhões em 2008 e viabilizou uma eleição improvável como o primeiro negro a governar os Estados Unidos.
Entre os exemplos brasileiros, dois projetos recentes mostram a força com que apoio político individual pode se converter em dinheiro – justamente o objetivo da minirreforma eleitoral de 2015. Entre junho e julho deste ano, o projeto Jornada pela Democracia, criado pelas militantes Guiomar Lopes e Maria Celeste Martins no Catarse, arrecadou quase R$ 800 mil para financiar viagens da presidenta Dilma Rousseff pelo Brasil, no período imediatamente posterior ao seu afastamento da Presidência. Numa decisão perversa, o vice Michel Temer a proibiu de usar o avião presidencial para outras rotas fora de Porto Alegre-Brasília, e a resposta da multidão em rede foi o financiamento independente. Sim, Dilma viajou e buscou se defender da ofensiva golpista com o dinheiro arrecadado no site.
Já o candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro pelo Psol, Marcelo Freixo, optou por hospedar em seu site uma ferramenta própria de financiamento coletivo (manobra permitida pelo TSE nessas eleições). Em pouco mais de duas semanas (até o fechamento desta edição), já havia levantado mais de R$ 220 mil, fora o barulho imenso que vem fazendo nas redes sociais ao defender uma candidatura “independente, coletiva e participativa”. Na página que criou, logo abaixo do montante arrecadado, há uma representação visual digna da democracia que deveríamos almejar: o nome completo, em sequência, de todas as pessoas que doaram, uma lista que já pode ser tomada como símbolo histórico da transparência em uma campanha eleitoral brasileira financiada por pessoas físicas.
Quando se junta a estrutura técnica das plataformas de crowdfunding, operando com as subjetividades da multidão espalhada pelo mundo, à utopia de criar em conjunto o que nunca poderia ser criado, está se falando em commons. Esse termo oriundo da Idade Média pré-capitalista foi amplamente retomado por teóricos da cultura digital para expressar o tipo de produção em rede que a popularização da internet inaugurou a partir dos anos 1990 e que de fato reconfigurou o trabalho, as relações sociais e a resistência na contemporaneidade. Os filósofos Michael Hardt e Antonio Negri afirmam que a construção do common gera “novas formas de vida”, baseadas na diversidade dos indivíduos, formando um novo corpo social, a “multitude”. Esta multitude é diferente da multidão, assim como dos conceitos de “povo”, “massa” ou “classe”; ela desafia o sistema capitalista no século XXI se utilizando de uma “inteligência de enxame”, que tem na internet sua melhor representação. O que há de poderoso no crowdfunding é que, dependendo da natureza dos projetos (suas características, impacto e estética), a multidão on-line pode se transfigurar em multitude.
Essa visão toma corpo também na maior plataforma global para o empoderamento cidadão, a Change.org, usada por mais de 150 milhões de pessoas no mundo todo. No Brasil, mais de 7 milhões de usuários já geraram 280 vitórias desde 2012, inicialmente por meio de abaixo-assinados, mas agora também por mecanismos de crowdfunding. Ou seja, hoje quem usa o site muda a forma como o poder se estabelece na sociedade, na política e também financeiramente. Ao anunciar as novas ferramentas de financiamento coletivo no último mês, o CEO e fundador da Change.org, Ben Rattray, afirmou que “a internet pode ajudar a democratizar a democracia” e que esse será o foco de sua empresa a partir de então. A frase se parece com uma que Emir Sader costuma dizer: “Os problemas da democracia se resolvem com mais democracia”.
Toda essa potencialidade está sendo negada pelo sistema eleitoral brasileiro. A necessidade de uma reforma política profunda é mais do que urgente, embora a responsabilidade imediata seja do TSE. A corte conservadora de juízes provavelmente toma decisões dessa natureza sem conhecer o contexto do crowdfunding, ou confiando em análises superficiais como as dos sites de notícias tradicionais, que ainda nos chamam de “internautas” e colocam qualquer assunto relacionado à tecnologia como exótico e excepcional. Lembremos que uma das obrigatoriedades ainda impostas pelo TSE a todos os comitês eleitorais do país em 2016 é manter um número para envio de fax – como se o e-mail ainda fosse algo extraordinário usado por quem “surfa na web”. Nivelar por baixo é tudo de que a política brasileira não precisa.
Lucas Pretti é jornalista, artista multimídia e pesquisador do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Dirige a plataforma Change.org no Brasil.