A intervenção de interesses privados na segurança pública no Rio de Janeiro
Circulam entre policiais e moradores de favelas rumores de que alguns chefes do tráfico estariam agora incentivando roubos e participando de seus lucros, em vez de reprimi-los. É a resposta a essa transformação que parece pautar as recentes iniciativas de reforço na segurança pública, que culminaram com a intervenção federal
“Salve-se quem puder.” No que tange às políticas de segurança pública, o Rio de Janeiro parece levar esse dito popular ao paroxismo. Mas quem pode se salvar? Eis o não dito que ajuda a entender como se trata menos de inação que de um tipo específico de ação pública. Aquela que se propõe a salvar uns em detrimento de outros, antes a vida social das coisas que a das pessoas. Num estado que ostenta uma taxa de letalidade violenta acima da média nacional – concentrada nos jovens pretos, pobres e periféricos –, a prioridade dos órgãos de segurança pública tem sido a defesa da propriedade, não da vida, derramando-se, inclusive, muito sangue para esse fim. Sustentamos aqui a hipótese de que as políticas de uso da força legal no Rio de Janeiro se dirigem principalmente à proteção patrimonial e têm sido cada vez mais pautadas por grupos cujo interesse é salvar-se das crescentes ameaças à posse e circulação de riquezas no estado.
Já há algumas décadas ouve-se falar que as mortes em favelas e periferias são produto de uma violenta e fracassada guerra às drogas. No entanto, a circunscrição territorial da repressão a um mercado reconhecidamente transnacional, operando por atores muito mais diversificados que os pretos e pobres mortos em favelas, indica haver outra preocupação que se sobrepõe ao combate às drogas. É bem verdade que o traficante figura no imaginário popular como o inimigo público número um, eclipsando o ladrão. Só que as prisões em flagrante no Rio de Janeiro têm ocorrido antes por crimes contra o patrimônio, como roubo (34%), furto (26%) e receptação (4%), que somam 64% do total de flagrantes, do que por tráfico de drogas (22%).1 Ainda do ponto de vista da violência extralegal (e suas conhecidas relações com os poderes oficiais), desde os primeiros esquadrões da morte dos anos 1950 até suas metamorfoses nos dias atuais, é o ladrão, e não o traficante, o alvo preferencial dos grupos de extermínio.
Qualquer “dono de morro” carioca sabe como preservar o cotidiano de suas “bocas de fumo” mediante a negociação do “arrego” com as forças da ordem, mas não pode se salvar das operações dessas mesmas forças quando da recuperação de veículos roubados. Por isso, traficantes sempre se esforçaram para controlar a atuação de assaltantes, por vezes sacrificando-lhes a vida para manter seus negócios. Nos últimos cinco anos, entretanto, a incidência de roubos no estado cresceu 83%, o que aponta para uma transformação em curso nos mercados criminais fluminenses. Circulam entre policiais e moradores de favelas rumores de que alguns chefes do tráfico estariam agora incentivando roubos e participando de seus lucros, em vez de reprimi-los. É a resposta a essa transformação que parece pautar as recentes iniciativas de reforço na segurança pública, que culminaram com a intervenção federal.
Desde 2009, a defesa patrimonial possui inscrição oficial e dirige as ações e esforços policiais em sua atuação cotidiana. Os indicadores estratégicos de criminalidade no estado do Rio de Janeiro são três: letalidade violenta, roubo de veículos e roubo de rua. Note-se que, dos três indicadores, dois se referem a crimes patrimoniais, e há pressões de entidades patronais para que o roubo de cargas seja incluído como quarto indicador. Para o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), tratou-se de produzir “indicadores com maior impacto na sensação de insegurança da população”, que serviriam para o monitoramento das ações em toda a área de segurança no estado.2 Já a estratégia gerencial, concebida por consultorias privadas, é construir indicadores de performance capazes de induzir a ação dos profissionais de segurança pública em certa direção.
No entanto, o gerencialismo da administração pública do Rio de Janeiro vai muito mal, a ponto de, em 2016, o governo decretar estado de calamidade pública no âmbito da administração financeira. Passamos por um dos momentos mais graves da história fluminense, que é tecnicamente uma crise de Estado. Produziu-se a incapacidade de arrecadação por meio de programas de isenção fiscal politicamente orientados, desencadeando a inviabilidade operativa da administração, o fechamento de setores estratégicos, atrasos no pagamento dos salários de servidores, sucateamento de serviços públicos e mesmo de obras do passado recente de megalomaníacos eventos, para ficar apenas em alguns (poucos) exemplos. Esse cenário de terra arrasada foi provocado pelos desmandos, a pilhagem e a péssima administração de políticos investigados que levaram a população do estado a um poço cujo fundo parece não ter fim.
Segundo a parte desse mesmo grupo político encastelada em Brasília, a salvação passaria pela chantagem aceita de joelhos de um empréstimo junto ao grupo francês Paribas e pelo voluntarismo militarista da intervenção federal na segurança pública. O aceno positivo de parte da população junto aos salvadores parece mais o gesto do náufrago segurando a primeira coisa que vê pela frente do que a subscrição consciente de suas consequências. Alguns chamariam isso de “doutrina do choque”, no caso do Rio de Janeiro, choque feito por fios de alta-tensão. Com inflação acima da média nacional, elevado custo de vida e desemprego crescente, o Rio atravessa uma grave recessão econômica, cujo indicador mais visível seja talvez o crescimento da população em situação de rua, que triplicou na capital nos últimos anos. É em meio a esse atordoamento que se fortalece a adesão às promessas de lei e ordem.
A compreensão desse momento deve passar pela atenção às relações entre os grupos políticos que há tempos governam o estado do Rio de Janeiro e poderosos grupos privados, que têm direcionado as políticas de segurança pública cada vez mais para a defesa patrimonial. Isso não é novidade, e há uma longa história que poderia ser contada. Mas nos concentraremos em apenas alguns pontos dos desdobramentos recentes desse percurso.
A chamada Segurança Presente constitui um movimento importante. Gestada no interior de articulações entre a Secretaria de Estado de Governo e setores empresariais, ela teve início no fim de 2015 por meio de um convênio entre a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e a Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio) (decretos n. 45.475/2015 e n. 45.702/2016). Com investimentos partilhados entre os poderes públicos e a entidade patronal, estimados em quase R$ 50 milhões anuais, estabeleceu-se uma gratificação temporária a agentes das Forças Armadas, policiais civis e policiais militares que reforçam o patrulhamento de áreas específicas.
Trata-se de um programa de proteção patrimonial cujo objetivo é estimular o comércio carioca. Por isso, sua atuação se concentra em áreas de apelo turístico, como o Aterro do Flamengo e a Lagoa Rodrigo de Freitas, ou de forte atividade comercial, como o Centro, a Lapa e o Méier. Logo no início do Segurança Presente, o então secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, se disse não informado sobre o programa e classificou a iniciativa como segurança privada semelhante à “vigilância de shopping”. Para Beltrame, “o problema desse tipo de patrulhamento é que eles (os agentes) não trabalham em cima da mancha criminal. Quem paga leva”.3 Já o então secretário de Governo do Estado, Paulo Melo, esclareceu, em defesa ao programa, que a escolha das áreas foi feita a pedido do cliente e que, “como em qualquer lugar do mundo, quem financia escolhe”.4
Além de violar a universalidade da segurança pública via prestações de serviços privados em áreas específicas, busca-se produzir a sensação de segurança pelo aumento da carga de trabalho dos profissionais, e não pelo reforço de seu contingente. A oficialização do “bico”, que retira desses profissionais seu tempo de descanso, com impactos sobre sua saúde mental e integridade física, foi agravada pelo contexto de penúria do estado, quando policiais passaram a receber precariamente seus salários. A “venda do descanso” não incorporado à folha de pagamento (com valores variando entre R$ 150 e R$ 200 por turno adicional de oito horas) apresentou-se como salvação.
Uma dinâmica perversa parece ter sido gestada nas polícias. O sinal amarelo foi acionado pelo registro de diminuição do efetivo para o patrulhamento em alguns bairros, porque policiais preferem trabalhar para as “Operações Presente”, com pagamentos mais generosos que aqueles feitos por meio do Regime Adicional de Serviço (RAS). O sinal vermelho foi ligado quando o já citado deputado Paulo Melo foi preso junto com Jorge Picciani, presidente da Alerj, acusados de receber propinas de empresários dos ônibus. Além disso, Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio, preso em desdobramento da Operação Lava Jato que visava o grupo do ex-governador Sérgio Cabral, está sendo acusado pelo Ministério Público de fabricar dossiês com dados sigilosos coletados por policiais civis. As relações perigosas entre meios empresariais, políticos, policiais e criminosos parece ter sido favorecida por esse movimento de salvaguarda patrimonial. Seria esse o sentido oculto da frase de Paulo Melo: “Quem financia escolhe”?
Para nós, a intervenção federal no Rio de Janeiro pode ser pensada também por meio do direcionamento das ações de segurança pública para a atuação na proteção patrimonial construída nas relações entre entidades empresariais e poderes públicos. “Pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública” foi o argumento constitucional evocado para fundamentar a intervenção, cuja plausibilidade fora preparada durante o Carnaval pela cobertura midiática de roubos e arrastões nas ruas da capital. A ênfase conferida aos crimes contra o patrimônio na construção do imaginário de descontrole na segurança do Rio aponta para o sentido da “ordem pública” que se viu comprometido. Só não foi explicitado o tipo de roubo que realmente preocupa as autoridades a ponto de articularem uma intervenção.
A maioria das operações do Exército no Rio de Janeiro, antes e depois da intervenção, tem tido como foco o combate ao roubo de cargas. Entre as poucas exceções estão as patrulhas em pontos turísticos realizadas, segundo os jornais, com o intuito de proporcionar maior sensação de segurança à população. De resto, a prioridade de enfrentamento ao roubo de cargas se explicita nos bloqueios do Exército em estradas e operações em áreas a que a imprensa se refere como notórios centros de distribuição de cargas roubadas, como a Vila Kennedy e os complexos do Lins, Chapadão e Pedreira.
É de fato preocupante o crescimento de 200% na incidência de roubos de carga nos últimos cinco anos no Rio de Janeiro, que produz um impacto econômico concreto, à medida que aumenta o preço de fretes e seguros e incide sobre o preço final dos produtos ao consumidor. Empresas têm deixado de operar no Rio de Janeiro e os Correios passaram a cobrar uma taxa adicional no frete para o estado. Em relatório publicado em 2016, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) estimou um prejuízo de R$ 6,1 bilhões proporcionado por esse tipo de crime entre 2011 e 2015. Representantes dessa e de outras entidades patronais, como a Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) e a Federação dos Transportadores de Cargas do Estado do Rio de Janeiro (Fetranscarga), reuniram-se diversas vezes com autoridades públicas estaduais e federais das áreas de segurança e defesa para exigir maior segurança patrimonial e alertar para o risco de desabastecimento. Não resta dúvida de que a forte pressão política exercida por essas entidades foi determinante para o decreto da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e, depois, a intervenção. Não questionamos aqui a legitimidade dessa pressão. É, contudo, digno de nota que, no poço sem fim em que se encontra o Rio de Janeiro, foram esses os únicos gritos de socorro atendidos. Em meio ao “salve-se quem puder”, quem poderá se salvar?
No entanto, sabemos também que cada um se salva como pode, e o aumento dos roubos de carga parece subscrever a essa lógica. Temos trabalhado com a hipótese de que a crise econômica contribuiu para as recentes transformações nos mercados criminais no Rio de Janeiro. E não se trata de fazer suposições simplórias, como a de que desempregados tenham passado a roubar. Nossa hipótese é de que a crise afetou tanto os comércios legais como o tráfico de drogas, estimulando, de um lado, a receptação de cargas roubadas por comerciantes e, de outro, as guerras concorrenciais entre facções e uma mudança na relação do tráfico com os roubos.
“Roubo de carga no Rio de Janeiro é saque”, afirmou o presidente da Fetranscarga em evento público realizado na OAB-RJ. Segundo ele, cargas visadas por quadrilhas especializadas no resto do país, como o aço e o café cru, não são roubadas no Rio de Janeiro, onde se rouba sobretudo aquilo que é possível distribuir em poucas horas dentro das favelas para os receptadores a que se tem acesso. A imprensa tem divulgado imagens de caminhões sendo descarregados por pessoas que, como num saque, apressadamente levam consigo o que podem. É muitas vezes possível ao consumidor final detectar a origem dessas mercadorias, especialmente quando os preços são muito baixos. No entanto, lembremos, cada um se salva como pode.
E, em meio ao “salve-se quem puder” do Rio de Janeiro, nem quem pensou poder se salvar tem conseguido. Apesar de todos os reforços no policiamento ostensivo e da média de cinco mortes por dia “em decorrência de oposição à intervenção policial”, os crimes contra o patrimônio, incluso o roubo de carga, continuam aumentando. O que temos visto são agentes das forças de ordem matando e morrendo em malsucedidas ações dirigidas à proteção patrimonial. Vemos o estado colocar o valor das coisas acima do valor das pessoas, como faz o ladrão. Este, quando rouba à mão armada, produz uma equivalência circunstancial entre vidas e coisas de tipo “dá-me tuas coisas e deixo-te a vida”. Arrisca inclusive a própria vida, liberdade e integridade física para subtrair bens das vítimas. Espera-se do estado que não aja como um ladrão.
*Carolina Christoph Grillo é pós-doutoranda Fapesp do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo; Daniel Veloso Hirata é professor de Sociologia da Universidade Federal Fluminense.