“A intervenção é uma farsa, assim como a UPP”
Nascida e criada no Morro do Preventório, em Niterói (RJ), a funkeira MC Carol, de 24 anos, falou ao Le Monde Diplomatique Brasil sobre feminismo, violência, racismo, política e música
“Quantos são?”, pergunta Carolina de Oliveira Lourenço, em alusão ao número de jornalistas que estão do lado de fora, antes de abrir o portão, em uma rua pacata no bairro de São Francisco, em Niterói, no Rio de Janeiro. “Três”, responde seu empresário, que rapidamente volta ao celular para continuar a negociação que envolve uma possível turnê pela Europa, em julho. Após trancar o cachorro nos fundos do imóvel, MC Carol surge vestindo blusa amarela, shorts jeans e chinelo de dedo, em uma manhã que mistura pingos esparsos de chuva, um céu cinza e o mormaço típico da região.
A casa da funkeira é ampla, mas com poucos móveis. Duas caixas de som estão ligadas na sala. Enquanto termina de se arrumar para a entrevista, pede que a equipe do Le Monde Diplomatique Brasil monte o equipamento na área externa. A piscina está aparentemente limpa e a churrasqueira apresenta vestígios de uso recente. Uma pequena área verde mostra os sinais do outono que começa, com pétalas de flores caídas na grama bem cortada.
Ainda dentro da residência, dois livros ajudam a ocupar a mesa de cabeceira: Feminismo e marxismo (2017), de Andrea D’Atri e Diana Assunção, e A revolução e o negro (2015), que reúne textos de CLR James, Leon Trotski e George Breitman. Na TV, ela decide sobre o que quer ouvir. “Escuto Cartola, Nelson Cavaquinho. Cresci ouvindo Elis Regina, Agnaldo Timóteo… Só escuto funk em casa quando meus amigos estão aqui”, confessa MC Carol.
A sala, que agora ecoava os versos de Cartola e seu diálogo imaginário com rosas, havia recebido, semanas antes, o discurso voraz de Marielle Franco, quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro pelo Psol e brutalmente assassinada no dia 14 de março, ao lado do motorista Anderson Pedro Gomes. “A política precisa de mulher preta, lá dentro, gritando”, diria depois a cantora, ao relembrar as palavras da amiga durante o último encontro que tiveram.
Nascida no Morro do Preventório, MC Carol foi abandonada pelos pais e criada com os bisavós até os 12 anos. Aos 14, foi expulsa de casa e obrigada a morar sozinha, em um barraco sem porta. “Tinha perdido a vontade de viver. Só queria ficar em casa, no escuro”, diz. Entregou-se à bebida e passou a viver de oportunidades escassas até os 16 anos, quando começou a compor e cantar funk.
Desde então, ela afirma que o gênero mudou e agora “está derrubando tudo”. “Não tinha funk em festa de 15 anos antigamente”, comenta, para justificar a composição tardia de “Não foi Cabral”, música de grande repercussão que explica a história do Brasil em uma letra “mais consciente”, como ela define.
No fim de março, MC Carol divulgou a canção “Marielle Franco”, em homenagem à amiga e vereadora. “A gente está correndo para produzir”, disse o empresário no dia da entrevista, agendada antes da morte de Marielle. A letra avisa que “Vocês não vão nos calar/ Mesmo sangrando a gente vai tá lá/ Pra marchar e gritar”, para em seguida citar o nome de mulheres vítimas da violência do Estado.
Ao Le Monde Diplomatique Brasil, MC Carol falou sobre seu feminismo particular, a disputa da mulher negra e periférica para ocupar os espaços públicos de poder, a violência no Rio de Janeiro e o medo após o assassinato de Marielle. “Nada se compara ao que estamos vivendo neste momento.”
Veja os principais trechos da entrevista.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Até os 14 anos, você morou com seus bisavós e, depois, passou a viver sozinha. O que aconteceu?
MC CAROL – Meus bisavós me davam atenção, carinho, e eu tinha liberdade de expressão. Só que eles também tinham um filho, militar, que fazia parecer como se vivêssemos em um batalhão, educada para ser do Bope. Sofri bastante com agressões físicas e psicológicas, um terror absurdo, algo que nem eles conseguiam controlar, porque também tinham medo do próprio filho. Eu era uma criança muito agressiva e tinha vontade de ser policial para fazer as mesmas coisas que eu sofria. Com 12 anos, meu bisavô faleceu. Fui expulsa de casa e tive que morar sozinha em um barraco no meio do lixo. Estava sozinha, não tinha ajuda de ninguém, fazia uns bicos para sobreviver. Aos 15 anos parecia que eu já tinha vivido cinquenta anos, porque sentia um cansaço grande, não tinha motivação. Havia perdido a vontade de viver, de acordar, de ver o sol ou de conversar com alguém. Nesse período bebi muito. Aos 16 anos comecei a cantar funk em comunidades próximas e tudo foi melhorando.
Qual é sua primeira lembrança de opressão sofrida seja por ser mulher, negra, mulher negra… O que vem à memória?
A primeira teve a ver com o fato de ser mulher. Vi uma cena, quando era pequena, que inclusive está na música “100% feminista”, na qual relato o momento em que uma mulher leva um soco na cara por motivo nenhum. Com motivo ou sem motivo, não se justifica, mas, ainda mais por não ter motivo, aquilo me chocou muito. A partir desse dia comecei a enxergar o mundo de outro jeito, me tornei mais agressiva do que já era e coloquei na cabeça que quando crescesse ia bater, porque numa casa alguém apanha e o outro bate. Lembro-me de brigar diariamente na escola, porque meu bisavô não quis me botar no colégio da favela, em que a maioria é negra. Ele me matriculou em uma escola mais forte, com maioria branca. Sofri bastante. Um dia, perdi meu material de escola, arrumei confusão e, quando cheguei em casa, disse para o meu bisavô que queria ser igual ao Michael Jackson e trocar de cor. Ele me deu um tapa na cara. Muito da minha personalidade eu puxei dele, porque sempre ouvi que não podia abaixar a cabeça pra ninguém, não precisava me importar com as pessoas de fora. Quando entrei no funk, estava na moda aquela coisa de mulher fruta, e eu pensava “brother, vou sofrer”, mas daí eu lembrava o apoio que ele me deu e caía para dentro. Subia no palco e tacavam cerveja, latinha, e eu continuava o show até o final.
Você já sentiu medo de andar na rua por ser mulher?
Eu sempre senti medo, mas nada comparado ao que vivemos agora. Sinto medo de andar de madrugada, por ser mulher e por ser negra. Eu tenho medo por escrever algumas coisas. Fiquei com receio de escrever a música “Delação premiada”. Agora estou apavorada, para ser sincera.
Como era sua relação com a Marielle Franco?
Estive com ela duas vezes: uma aqui em casa e outra na Câmara Municipal de Niterói. Tivemos longas conversas. Vou fazer 25 anos e já conheci muita gente, mas a Marielle e a Talíria [Petrone, vereadora do Psol eleita em 2016 como a mais votada em Niterói] foram as mulheres mais fortes que conheci em toda a minha vida. Tem gente que acha que sou muito forte. Em alguns momentos, também tenho essa sensação, mas não sou forte toda hora, tenho muitas dúvidas, às vezes sou insegura. Ao observar a Marielle e a Talíria, com a personalidade delas, comecei a achar que eu também poderia ser mais forte, falar sobre alguns assuntos de que eu tinha receio. Essas conversas que nós tivemos estão guardadas na minha memória para sempre.
A Marielle te motivou a entrar na política?
Meu produtor conversou comigo sobre isso, me questionou sobre sair como deputada estadual e eu neguei na hora. Depois de um tempo, falei com algumas pessoas e muita gente achou que eu deveria tentar. Nisso, a Marielle e a Talíria vieram aqui e nós conversamos. Quando elas saíram, queria tentar até a Presidência da República [risos]. Elas me fortaleceram. A Marielle falou: “A política precisa de mulher preta, lá dentro, gritando. Tem que ver como eu chego lá, com meu salto, turbante… Eles ficam malucos!”. Elas me encorajaram.
Como você tem visto a intervenção federal no Rio de Janeiro?
A intervenção é uma farsa, assim como a UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, criada em 2008]. Não vai mudar nada.
Qual é a reação das pessoas na favela em relação à intervenção?
Sentimos muito medo, mas existem pessoas que estão revoltadas. Crianças que perderam irmãos, tios, amigos, pai, mãe nessa guerra. Como explicar para essa criança que existe um mundo legal lá fora? É muito complicado. Muitas pessoas se revoltaram, não se importam mais com nada, estão dispostas a matar ou morrer, e tudo vai continuar como está. É preciso focar as crianças. Na minha época, fiz aula de desenho, vôlei, futebol, natação, corrida. Hoje não tem mais nada. Pegaram a Casa Princesa Isabel, que fica em frente ao Morro do Preventório, onde tinha os esportes, e transformaram em uma escola bilíngue. Na minha comunidade, uma ou duas crianças estudam lá. Ou seja: o que as crianças pobres vão fazer o dia inteiro? Sabe qual é o esporte delas? Jogar sinuca dentro do bar. O que a criança vê dentro do bar? Bebida, droga e tudo que não é para a idade dela.
Vi uma frase sua sobre a sensação que uma criança carente tem ao conquistar algo. Parece que tudo vai acabar rapidamente e a pobreza vai voltar. Esse medo ainda te aflige?
No Brasil, o artista, principalmente do funk, não sabe o dia de amanhã. Inventam leis que são absurdas e não temos o que fazer. Vamos para a rua, gritamos, mas a decisão é dos políticos, então não há como prever o amanhã. Eles podem inventar uma lei e acabar com o funk. E aí? Tem gente que vive no mundo da lua, não sabe nem o nome do presidente, e eu conheço pessoas assim. Mas quem está ligado no que rola sabe do poder que eles têm para prejudicar ou acabar com o funk.
Você precisou proteger sua casa com cerca elétrica e trancou suas janelas com cadeado, por causa das ameaças do seu ex-marido. Como isso aconteceu?
Uma das coisas que eu queria colocar na política é isso: sou independente desde os 14 anos, moro sozinha, trabalho, ganho meu dinheiro e tenho que passar por essa humilhação. Fiquei pensando: “Imagina uma mulher que depende de um homem, que tem filhos com ele, que não tem para onde ir e precisa sustentar essa casa”. A justiça ajuda o homem a cometer os delitos, porque ele sabe que não vai acontecer nada se bater na mulher. Para ele ir preso precisa quase matar ou de fato matar a companheira. Eu me senti ameaçada e fui na delegacia da mulher. Cheguei lá e só tinha homem no local. Enquanto aguardava, chegou uma menina bem nova, que estava bastante assustada. Ela entrou, olhou, viu a sala cheia de homens e foi embora. Pensa comigo: se eu fui espancada, ameaçada por um homem, não vou querer desabafar com um homem! Ele não vai ter sensibilidade para entender o que eu estou passando.
Você já disse que quer ser mãe no futuro. O que você vai ensinar para seu filho ou sua filha?
Tenho um casal de sobrinhos. O menino tem 12 anos, e a menina, 11. Esses dias ela estava brincando e eu falei para o irmão dela: “Chama sua irmã, que está tarde”. Ele a chamou e ficou na rua brincando. Eu perguntei: “Por que você acha que pode ficar na rua e ela não? Você se acha melhor que ela? É por ser homem?”. Ele ficou com aquela cara… Quando eles estão aqui, um lava a louça de manhã e o outro à tarde. Comigo é igual. Não me imagino com filho homem. Se eu tiver uma menina, ela será minha cópia. Vou ensinar para ela que ela pode ser o que quiser, que eu vou apoiar.
Sua filha terá um futuro mais igual, sem tanto machismo? Como melhorar essa situação e ampliar o debate?
Vai melhorar se isso for ensinado nas escolas. Na minha época, tinha o Proerd [Programa Educacional de Resistência às Drogas], com palestras sobre drogas. Eu achava aquilo muito importante. O mesmo deve ser feito sobre o feminismo. Todo mês alguém ir às escolas, dar palestras, aconselhar e conscientizar.
Você se considera feminista, mas não gosta de regras e diz que isso gera um conflito entre suas vontades e a militância. Essas dúvidas, que envolvem a militante e a artista, aparecem nas suas músicas?
Sempre escrevi sobre coisas que vivi, a maioria baseada em fatos reais. As outras são coisas que vejo ao meu redor. Jamais vou chegar e dizer: “Não escrevi essa música, não penso assim”. Penso assim e pronto. A música “Prazer, sou amante do seu marido” foi uma coisa que durou três anos. Não posso chegar e dizer que não achei legal. Isso faz parte de um machismo. Se eu sou solteira e o cara é casado, eu sou a errada. Se eu sou casada e ele está solteiro, sou a errada também. Por ser mulher, sou a errada em todos os ângulos. O meu feminismo, a minha forma de ser e pensar é esta: se estou solteira, não quero saber se o cara é casado. As pessoas têm a ideia de que a mulher se relaciona em um dia e já quer casar. Não sou assim.
Sobre a música “Não foi Cabral”, li que você tinha receio de gravar um tema diferente do habitual, mais consciente. A música estourou dentro do funk e fora dele. O consumidor de funk é subestimado?
Quando comecei no funk só cantava em comunidade. No baile, de madrugada, o pessoal quer ouvir algo mais dançante, e falar sobre Cabral poderia ser um fracasso. Com o passar dos anos, o funk foi derrubando tudo. Casamento tem funk, festa de 15 anos… A coisa foi crescendo, mas antigamente não era assim.
Como foi ir à FGV, uma faculdade elitista, para cantar “Não foi Cabral” e estar em um ambiente que, supostamente, não é pra você?
Fiquei insegura e chocada, porque era uma faculdade com escada rolante! Foi a primeira vez que entrei em uma universidade. Todo mundo me tratou bem. Eu não tinha percebido que não tinha negros na sala. Só fui prestar atenção depois, quando vi uma foto pós-evento e recebi milhares de comentários no meu Facebook. “Só tem branco aí, Carol”, diziam. Em um país em que a maioria é negra, como isso pode acontecer? Por que os negros são maioria nos presídios? Tem alguma coisa errada aí.
O tratamento seria diferente se você não fosse artista?
Sim, e digo isso pelo que já passei na escola. Acredito que deva ser difícil para um negro estudar em uma faculdade em que a maioria é branca.
Você se considera um exemplo para outras mulheres?
Não sou exemplo para ninguém, porque sou muito louca. Faço o que eu quero. Ninguém manda em mim. Vou escrever e falar sobre o que achar importante. O que é ser exemplo? Ser certinho, e eu não sou assim. Encho a cara, faço besteira. Sou “escaralhada”!
E inspiração?
As pessoas falam isso, mas não sei se quero ser. Quando você assume essa responsabilidade, você é cobrada. Ando por alguns caminhos justamente para não ser cobrada. Tem muito artista que fala uma coisa e, quando chega a hora de mostrar a cara, não mostra. Sou isto, deste jeito, e não me cobre por coisas que eu não falei que eu era. Descobri a palavra “feminismo” há dois anos. Me perguntam: “Você é feminista?”, e eu não sei responder. O feminismo são todas essas regras? Então não sou. Eu tenho o meu feminismo particular.
*Guilherme Henrique é jornalista.