A intolerância seletiva de Locke e seus seguidores e a defesa do nazismo e do racismo
A defesa da criação de um partido nazista, supostamente justificada na ideologia liberal, deve dizer muito sobre seus proponentes
O contexto brasileiro atual nos remete à “Carta acerca da tolerância” de John Locke, publicada em 1689, na Inglaterra. Naquele momento, o Rei Carlos II tentou restaurar o catolicismo a todo custo com perseguições num país hegemonicamente protestante. Locke, protestante, se refugiou em Amsterdã, de onde escreveu a referida Carta. Interessante notar que a proposta de tolerância do filósofo inglês tem limites e serve apenas para alguns, como descreve:
“Os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados. (…) Além disso, uma pessoa que solapa e destrói por seu ateísmo toda a religião não pode, baseado na religião, reivindicar para si mesma o privilégio da tolerância”. (Locke, 1689)
Aparentemente, a contradição do autor apresenta-se quando sustenta que o ateu não deve ser aceito, o que põe em xeque sua própria “tolerância”. Mas se ampliarmos o horizonte da nossa análise, perceberemos que o liberalismo de Locke, defendido no seu clássico “Segundo Tratado de Governo”, igualmente não serve para todos, pois exclui servos brancos e escravizados ao acesso à propriedade privada, restringindo-o apenas aos proprietários. Além de ter sólidos investimentos no tráfico negreiro como acionista da Royal African Company, Locke ainda participou da redação da norma constitucional do estado da Carolina em 1669, pela qual dizia o texto: “todo homem livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos negros seja qual for sua opinião e religião” (Losurdo, 2006). Assim, o pai do liberalismo era intolerante com os africanos.
A defesa da criação de um partido nazista, supostamente justificada na ideologia liberal, deve dizer muito sobre seus proponentes. Os nazistas, quando estiveram no poder, criaram campos de concentração para matar aqueles que de maneira racista julgavam ser um perigo para seus planos, como judeus, comunistas, anarquistas, social-democratas e esquerdistas em geral. Quem defende a liberdade para essas ideias flerta desavergonhadamente com suas ações. Só de judeus assassinados foram 6 milhões! A defesa do nazismo é a defesa da morte dos seus alvos.
Em 2017, membros do MBL fizeram atos contrários à exposição do Queermuseu, em Porto Alegre. A exposição tinha como foco a temática LGBTQIA+. Isto é, para aprendizes de liberais da intolerância seletiva, uma exposição de cunho queer não deve ser consentida, mas o partido nazista deve ser tolerado.
Em resumo, a tolerância de Locke era restrita aos seus iguais e defendia nitidamente que os seus opositores ou “sub-humanos” (negros e indígenas) não deveriam ser tolerados. Quando jovens liberais no Brasil defendem a tolerância para o partido nazista e são intolerantes com uma exposição queer, ou mesmo, não se pronunciam diante dos assassinatos racistas nos últimos dias, mostram suas preferências e indicam o que o nazismo e o racismo representam para eles.
Wallace de Moraes é doutor em Ciência Política, professor dos programas de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) e de História Comparada (PPGHC) e do Departamento de Ciência Política, todos da UFRJ. Membro do Quilombo do IFCS/UFRJ e líder do grupo de Pesquisa CPDEL (Coletivo de Pesquisas Decoloniais e Libertárias). Canal no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCI6ALgmE_efoCONkrPmQ9fw.
Referências bibliográficas
DE MORAES, Wallace (2020). Necro-racista-Estado – diálogo entre as perspectivas decolonial e libertária. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/estudoslibertarios/article/view/39358.
HOBSBAWM, Eric. (1998). A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras.
LOCKE, John (1965). Two Treatises of Government – a critical edition with an introduction and apparatus criticus by Peter Laslett. New York, Cambridge University Press.
LOSURDO, Domenico (2006). Contra-história do liberalismo. Aparecida/SP: Ideias & Letras.
MACPHERSON, C. B (1978). A democracia liberal – origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
_____________ (1979). A Teoria Política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
_____________ (1981). Property – Mainstream and Critical Positions. Toronto, University Toronto Press.