A Irlanda em busca de suas raízes
Renovar a República é o slogan do momento. Durante duas curtas décadas, o país experimentou uma selvagem farra das compras. Agora, o debate na mídia está tomando o caminho de volta para os princípios de nossos fundadores. O que deu errado? Quais são os valores que realmente importam? E o que queremos do futuro?Hugo Hamilton
Os irlandeses têm uma ótima relação com a imaginação. É uma daquelas coisas que nos tornaram famosos em todo o mundo. Aquele dom original para dramatizar sobre nós mesmos. Para nós, na Irlanda, é bastante frequente que a história que contamos sobre nós mesmos tenha mais importância do que a memória real dos acontecimentos. A conversa, o exagero, o boato corrente sobre nossas vidas e a do país contam tanto quanto a verdadeira realidade.
Cá estou eu, caindo direto no tipo de estereótipo nacional de onde sempre tentei escapar. Mas deve haver algo sobre a importante função que a imaginação tem desempenhado no desenvolvimento da sociedade irlandesa que ainda revela todas as nossas forças e todas as nossas falhas.
Agora, os irlandeses estão mergulhados em uma profunda fase da busca pela alma. Renovar a República é o slogan do momento. Depois de duas curtas décadas de uma selvagem farra de compras, em que a nossa imaginação se voltou para os delírios do consumo, o debate na mídia está tomando o caminho de volta para os princípios de nossos fundadores. O que deu errado? Quais são os valores que realmente importam? E o que queremos do futuro?
O caráter nacional irlandês é baseado em aspirações. Nossa história foi esculpida em sonhos nacionalistas de liberdade. Sonhos de tantos emigrantes forçados a viver longe, ansiando retornar para sua terra natal. Sonhos de prosperidade depois de um longo período de pobreza, fome e falta de oportunidade de onde o país finalmente escapou no boom dos anos 1990.
Tendo investido pesado em educação e com a ajuda de nossos sócios no clube da Europa, essa prosperidade finalmente alcançou a Irlanda e todos os nossos sonhos se tornaram realidade. Os emigrantes começaram a retornar. A famosa receptividade irlandesa abriu as portas para um número sem precedentes de imigrantes a partir da adesão de novos países da Europa Oriental, em particular.
Nessa primeira descarga de sucesso econômico, a Irlanda ainda deixou para trás as lutas sectárias e avançou em um processo de paz com a Irlanda do Norte, que permanece sendo uma das conquistas mais duradouras de nosso tempo, mesmo quando todo o resto pareça, por ora, ter virado pó.
Repentinamente, nossos sonhos se mostram como uma ação desvalorizada.
O que causou a crise atual para levar tanta ruína à Irlanda será assunto para relatórios de patologia econômica por décadas. Talvez seja a surpresa de vislumbrar nossos sonhos se transformarem em realidade que nos conduziu para tão perdidamente longe deixando-nos cegos contra as possibilidades de fracasso. Tínhamos “dinheiro em ambos os bolsos” (“money in both pockets”) como diz o ditado. Tínhamos a necessidade de apagar o passado com um lampejo de extravagância.
Esse pode ser um indicador de que foi durante a época de abundância que a Irlanda produziu suas duas memórias da pobreza mais vendidas internacionalmente: “Angela’s Ashes”, de Frank McCourt, e “Penny Apples”, de Bill Cullen, histórias que remontam a uma época em que as crianças não usavam sapatos nos pés. Em tempos de segurança econômica, um país pode se dar ao luxo de assumir seus segredos mais obscuros, como fizemos com todos os escândalos de abuso na Igreja e no sistema de ensino.
As histórias mais vendidas agora são as de ostentação dos empreiteiros e dos banqueiros. É parte da cultura irlandesa procurar alguém em quem possamos colocar a culpa pelo infortúnio. E talvez isso tenha suas raízes históricas, a noção de que somos o povo que recebeu tudo pronto pela opressão colonial, pela Igreja Católica, pela corrupção na política, pelo mau tempo.
Honestamente perdedores
Existe uma junção de elegante vitimização em nossa psique que ainda nos faz sermos líderes mundiais na busca de bodes expiatórios – e nos divertimos com isso. Preservamos a reputação de bons perdedores. Quando a Irlanda foi recentemente eliminada da Copa do Mundo pela mão teatral de Thierry Henry, o craque francês pode ter feito à Irlanda um grande favor em vários aspectos, nos devolvendo aquele status-modelo e iluminado dos honestamente perdedores, dos desamparados, dos duros de serem batidos, dos dignos e derrotados.
Mas a república irlandesa mudou. Gostamos de pensar que superamos essa autopiedade adolescente. Em um país com uma população tão destacadamente jovem, com sucessivos baby booms que agora se somam aos filhos dos imigrantes, temos desenvolvido uma nova consciência sobre os fatos concretos. Embora estejamos amarrados a um carrinho de bebê pelo sistema econômico global, começamos a despertar para as nossas próprias responsabilidades. Ou pelo menos gostaríamos de acreditar nisso.
Algumas das vozes mais estridentes e persuasivas no momento são as dos comentaristas de economia. É muito mais reconfortante dar o veredicto do que deu errado do que fazê-lo para inventar uma estratégia de recuperação. Recentemente, um dos principais jornalistas financeiros do país aderiu a um partido político. A transição para a realidade foi tão desastrosa que ele desistiu apenas seis meses depois. E talvez seja realmente à habilidade de contar histórias que desejamos regressar, em vez do envolvimento prático com o mundo real.
As histórias que contamos para embalar nosso sono, agora que ambos os bolsos estão vazios, são as histórias do absurdo desperdício de dinheiro. Lembramo-nos dos tempos em que nem sequer nos preocupávamos em comparar preços nos supermercados. Enquanto alguns alertam agora sobre a possibilidade de vermos até mesmo um retorno às “soup kitchens” (bandejão de distribuição gratuita de alimentos), todo o verdadeiro fascínio é sobre para onde foi o dinheiro. Talvez seja pura nostalgia o que nos faz querer ler sobre a desprezível riqueza em vez da desprezível pobreza.
A imagem surge a partir dos anos de explosão das listas de espera para produtos de grife nas lojas de departamento de Dublin. Itens que foram comprados na correria da euforia econômica, e pelos quais essas pessoas até gostariam de obter reembolso, se pudessem. O que você faria com uma fabulosa e peculiar cascata no quintal de casa quando se tem dificuldade para pagar a hipoteca? Especialmente quando está chovendo…
Por um breve período, chegou-se a um ponto onde o valor das coisas parecia se correlacionar diretamente com o preço da etiqueta. Como descreve a escritora irlandesa Anne Enright, sobre a excitação dos anos do boom, tudo foi alterado e jogado fora, inclusive maridos e esposas.
Histórias de ostentação estão vindo à tona particularmente em torno da indústria da construção, em quem o país confiou demasiadamente como o motor do sucesso. Como havia a ameaça de se construir sobre cada centímetro de espaço verde, a atração pela riqueza começou a absorver a grande imaginação irlandesa pela primeira vez com o puro e antiquado materialismo marxista.
Há uma história sobre a transação de uma propriedade em Dublin que rendeu um ganho de milhão de euros por mês a um empreiteiro particular. Já na casa de um magnata da capital, o teto de vidro desce sobre a piscina, que se transforma em uma pista de dança. Há também relatos como o de um famoso jogador de sinuca convidado para batizar as novas mesas, e de estrelas internacionais sendo levadas para recepções privativas.
Todos os domingos você pode ler, de novo, sobre os banquetes. Descreve-se uma das figuras de maior sucesso no setor da constução civil irlandesa jantando com seus amigos em um dos melhores restaurantes de Paris. Quando sua esposa repentinamente repara na bolsa de grife de outra cliente, ela se levanta da mesa e corre até a esquina para comprar uma Valentino similar por dois mil euros e retorna ao seu lugar.
Por que ficamos tão surpresos na Irlanda com essas histórias? Elas não são as imagens de riqueza que temos visto em filmes americanos por anos? O que nos faz pensar que os irlandeses se comportariam de forma diferente dos super-ricos de outros lugares?
Esta é a velocidade com que os irlandeses têm criado suas próprias regras de excessos, o entusiasmo com que jogamos a inferioridade de nosso passado de fome para trás convertendo a imaginação em uma substância mensurável. É também a velocidade com que batemos no solo novamente depois de um breve ataque de tontura no ar.
É a visão do vazio, conjuntos habitacionais inacabados. É a reflexão que desperdiçamos em maquiagens e acessórios. A reflexão sobre as oportunidades evaporadas. A entrega ao álcool e às drogas. A perspectiva de emigrantes deixando a Irlanda novamente em busca de empregos escassos no Canadá e na Austrália.
Criar saídas
Mas muito mais do que isso, é o fato de que essas histórias de indulgência não se encaixam facilmente na história que construímos sobre nós mesmos. Elas se chocam com o mito irlandês (Irishness) que tem se desenvolvido ao longo dos séculos e que gostamos de acreditar ainda hoje.
O que se tornou comum hoje em dia é dizer que uma geração de jovens que cresceu em tempos de relativa riqueza e estabilidade não tem a experiência dos tempos difíceis e não possui a capacidade de inventar a sua saída. Para eles, a memória da gastança irresponsável pode ser tão instrutiva que eles nunca poderão ajustar-se ao golpe da austeridade.
Na ilha de Achill, próxima à costa oeste da Irlanda, somos lembrados da humildade que sempre fez parte do modo de vida irlandês. Há um pequeno festival literário realizado anualmente para marcar a memória do escritor alemão Heinrich Boell, ganhador do prêmio Nobel, que costumava visitar a ilha nos anos 1950 e que lá teve uma pequena casa. Ele é famoso por suas advertências sobre a corrosiva praga materialista do pós-guerra.
Durante o curso de fim de semana deste ano, fizemos várias caminhadas ao longo do litoral espetacular. Tínhamos a sensação do deslocamento das rochas sob os nossos pés e da brisa vinda do Atlântico. Fomos trazidos para o pequeno porto de pesca de Purteen, onde uma vez fisgaram um tubarão-frade, secaram suas barbatanas nas paredes de pedra e exportaram para China.
Havia algo de laborioso e corajoso nesses momentos do passado. O povo era cheio de expectativa, de música e de histórias para contar. Foi um período em que a Irlanda viveu de sua imaginação. Eles até tinham um código natural, de um socialismo brando por meio do qual cuidavam uns dos outros. Pescadores retornando com a pesca podiam colocar tudo para fora do cais, virar as costas e distribuir de forma justa para as pessoas.
Foi um lembrete de onde viemos, como uma nação. E talvez este seja o momento de reavaliar aqueles instintos herdados da nossa história.
Temos uma frase na Irlanda que diz: “dê-lhe uma chicotada” (“give it a lash”). Significa algo como “faça sua tentativa” ou “aproveite sua chance”. Dita quando quer incentivar uma equipe esportiva, por exemplo, quando não há nada a perder e você pode tentar o seu melhor, porque é improvável que você vença contra as probabilidades. É parte do otimismo da Irlanda, arriscar a nossa sorte.
Olhar para a cultura
É onde colocamos as nossas energias para aquele futuro que nos importa. Em uma conferência realizada em Dublin recentemente, muitos dos empreendedores mais bem-sucedidos da Irlanda foram convidados a voltar do exterior e trazer ideias para renovar a fortuna do país. O que saiu desse fim de semana foi um forte reconhecimento do talento criativo da Irlanda. Nosso “jeito de socar é acima do nosso peso” (“punch way above our weight”), como diz o ditado, nas artes, com nossos escritores, com nossos intelectuais.
O cineasta ganhador do Oscar, Neil Jordan, disse a que veio, pois enquanto éramos desapontados por nossos políticos, por nossos banqueiros e pela Igreja, nós nunca fomos desapontados por nossos artistas. O resultado é que uma ênfase renovada está sendo colocada na criatividade irlandesa, vista como o principal recurso para sairmos das dificuldades atuais. O governo irlandês já nomeou o reconhecido ator Gabriel Byrne como o primeiro embaixador cultural oficial para a Irlanda.
Pode ser que a narrativa nos salve, afinal. Agora, a história irlandesa está sendo completada por histórias de imigrantes, pessoas que trazem suas novas influências culturais da mesma forma que os irlandeses levaram sua música com eles ao palco mundial. É um momento de profunda transformação na Irlanda. Mesmo que estejamos lamentando um pouco como nos reajustamos ao choque da recessão, esse pode, verdadeiramente, vir a ser um momento excitante de nova oportunidade, um momento de imaginação irlandesa renovada.
Hugo Hamilton é escritor, autor de Sang impur (2004) e de Comme personne (2010), ambos da editora Phébus, Paris.